Por razões que não vêm para o caso, reli agora Une jeunesse française * François Mitterrand 1934-1947, do jornalista Pierre Péan, que adquirira e lera (obliquamente) aquando da sua publicação em 1994.
Este livro teve grande impacto em França, porque revelou a sinuosa trajectória política de François Mitterrand, procedendo a incómodas revelações (revelações só para o grande público já que o milieu político nada ignorava) sobre o passado do presidente, que estava então prestes a terminar o segundo mandato (1981-1988;1988-1995) e que morreria em 1996.
Antes de começar as suas investigações sobre o período em questão, Péan foi recebido por Mitterrand (1993) a quem deu conta do projecto. Naquele estilo de linguagem esfíngica que o caracterizava, o presidente começou por perguntar: «Est-ce utile?», e insistindo Péan que alguns aspectos da sua biografia não tinham sido objecto de um trabalho aprofundado, concluiu: «Si vous le pensez... Je n'ai rien à cacher. Je vous aiderai.»
É claro que durante a sua vida François Mitterrand sempre procurou esconder o que não lhe era conveniente, e que era bastante, considerando a sua frequente e rápida mudança de convicções (se é que teve algumas), mas nesta fase final da presidência (sua suprema ambição) e da vida, já pouco lhe importava a opinião dos outros. Mesmo o "segredo" da sua filha ilegítima Mazarine era do domínio público.
Ao longo de 79 anos, Mitterrand foi tudo, ou pareceu ser tudo. Começando na infância pela Acção Católica (como membro da JEC), foi depois adepto da extrema-direita durante os tempos universitários. Admirador de Charles Maurras, o ideólogo da Action Française, essa atitude colocar-lhe-ia alguns problemas pessoais, já que a Igreja mantinha certas reservas em relação ao teorizador de "politique d'abord".
Monárquico e contra-revolucionário, Mitterrand pretende exercer desde muito cedo uma influência política, o que o leva, após a invasão da França pelos alemães, a aderir ao regime de Vichy, já que professava grande devoção pelo marechal Pétain. Não tenho por esclarecido se Mitterrand foi marechalista, pétainista ou vichyssista, já que os especialistas se comprazem hoje em subtis distinções sobre o grau de adesão a uma figura em que a generalidade dos franceses (sim, a generalidade dos franceses) depositou as suas esperanças após a vitória da Alemanha de Hitler. Explicam os ditos que marechalista foi aquele que se manteve fiel à pessoa do marechal (a maioria dos franceses quase até ao fim da guerra); pétainista, aquele que se identificava com as ideias de uma "ordem nova" defendida pelo marechal a fim de redimir a França da fraqueza dos tempos conturbados, senão desde a Revolução de 1789, pelo menos desde o Front National; vichyssista, aquele que sacrificava no altar do regime (certamente em número muito menor do que os marechalistas, e sempre em contagem decrescente, já que o regime desiludia progressivamente a população e que grande número de franceses era contrário ao governo e, em especial, à figura do presidente do Conselho, Pierre Laval, que concitava os ódios nacionais).
Não sei se Mitterrand se poderá incluir em alguma destas categorias, a não ser pelo seu oportunismo político, já que a evolução da situação o levou a afastar-se progressivamente de Vichy, para, em semi-clandestinidade, aderir à Resistência, apoiar primeiro o general Giroud (adversário de De Gaulle) e depois o próprio De Gaulle, que nunca lhe manifestou especial simpatia. De resto, mais tarde, Mitterrand haveria de opor-se ao general na eleição presidencial de 1965.
De qualquer forma, terá sido "oficialmente" marechalista, pois recebera a "Francisque", condecoração do Regime que obrigava a um juramento de fidelidade ao velho marechal.
Ideologicamente, ou pragmaticamente, Mitterrand irá deslizando da direita para a esquerda, ao ponto de conseguir ser eleito, em 1981, presidente da República Francesa (enquanto 1º secretário do Partido Socialista), com o apoio do Partido Comunista Francês, ele que sempre fora anti-comunista mas elaborara para o efeito um Programa Comum da Esquerda, que levaria, aliás por pouco tempo, ministros comunistas ao governo).
Não tem este post a pretensão de se debruçar sobre os anos de juventude de Mitterrand (o livro em questão é bastante e há outras fontes, apenas recordei alguns factos) mas tão só de evidenciar um texto que resolvi citar por curiosidade, já que ao lê-lo me ocorreu uma passagem recente de um discurso alucinado do presidente da Turquia.
Ocorre que, há dias, no passado dia 5, Recep Tayyip Erdogan incentivou as mulheres a terem pelo menos três filhos, acusando as que não são mães de serem deficientes e incompletas (cito de cor).
Pois bem, François Mitterrand trabalhou em 1945/46 na revista feminina "Votre beauté", pertencente ao grupo L'Oréal. Foi um período, curto, em que Mitterrand estava sem actividade e, sendo já casado com Danielle, precisava de dinheiro. Pediu assim ao seu grande amigo e companheiro de Vichy e depois da Resistência, André Bettencourt, que lhe encontrasse um emprego. Ora André Bettencourt tinha as melhores relações com Eugène Schueller, o riquíssimo patrão da L'Oréal, cuja filha, Liliane (hoje ainda viva) haveria de desposar. Esta ligação compreende-se facilmente pois tendo Schueller sido um apoiante da Cagoule (organização fascista, anti-semita e anti-comunista) e do MRS (Movimento Social Revolucionário) que apoiava a colaboração com a Alemanha Nazi, aquando da Libertação teve problemas com as novas autoridades e foi precisamente Bettencourt quem, entretanto tornado resistente, procedeu ao branqueamento das actividades comprometedoras do patrão da famosa empresa de cosméticos.
Ora, e chegamos ao âmago da questão, no primeiro número da dita revista de 1946, Frédérique Marnais, um pseudónimo de Mitterrand (que usou vários, na Resistência e na vida civil), escreve:
«Si la natalité chez nous ne prenait pas un rythme accéléré, si elle demeurait ce qu'elle était jusqu'en 1940, dans cent ans, il n'y aurait plus de la France. On nous traite déjà de nation de vieillards et cela devient vrai, hélas!
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Et, puis, n'oubliez pas que la maternité donne à la femme le plein épanouissement de sa beauté. Une femme qui n'a pas eu d'enfants n'atteint pas au maximum de sa forme...» (p. 521)
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Eis, pois, uma concepção original da mulher sem filhos, que aproxima, com quase cem anos de intervalo, um católico francês (embora Mitterrand tenha morrido agnóstico) de um muçulmano fundamentalista.
Não obstante todas as críticas que se possam (e devam) fazer a François Mitterrand, importa todavia realçar que foi não só um político habilíssimo (ao serviço das suas ambições, certamente) mas que possuía um profundo sentido de Estado (que justificava, supõe-se, acções menos convenientes) e uma certa ideia da grandeza da França (semelhante à professada pelo general De Gaulle e daí certamente a animosidade entre os dois homens), a par de uma notável cultura histórica e literária.
Tenho para mim que os dois presidentes de maior envergadura da V República foram De Gaulle e Mitterrand. Pompidou, Giscard e mesmo Chirac cumpriram os mínimos mas não envergonharam a França. Outrotanto não se poderá dizer de Sarkozy e de Hollande, dois dos mais medíocres vultos da história francesa.
Uma última nota: há um aspecto da personalidade de François Mitterrand que deve ser especialmente evocado. Para o antigo presidente, a amizade ocupava o primeiro lugar na sua escala de valores e a ela sempre foi fiel, mesmo quando isso comportava situações embaraçosas e até perigosas. Ao longo da sua vida, Mitterrand privilegiou, por vezes de forma inconsiderada, os amigos que se lhe mantiveram inabalavelmente fiéis. Esta atitude nem sempre se compaginou com a defesa dos ideais republicanos mas constituiu uma opção deliberada que por vezes ultrapassou elementares conveniências do regime democrático. Mas seria Mitterrand um verdadeiro democrata?
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