sexta-feira, 19 de setembro de 2014
AS FRONTEIRAS DA EUROPA
O referendo de ontem na Escócia suscitou, uma vez mais, a questão da imutabilidade das fronteiras europeias definidas no pós-Segunda Guerra Mundial. Em nome dessa doutrina ou, melhor, da conveniência de manter os arranjos políticos então negociados no Velho Continente, quer pelo Ocidente, quer pelo Leste, é, sistematicamente, sustentada a tese de que tais fronteiras permaneceriam imutáveis. Nada mais ilusório. Um breve relance histórico permite verificar que, especialmente na Europa Central, as linhas divisórias dos países flutuaram ao longo do tempo, ao sabor mais de interesses alheios de que do proveito dos próprios povos.
Uma rápida análise da alteração de soberanias e fronteiras depois de 1945 revela-nos o seguinte:
- Em 1949, a Alemanha ocupada (já com as novas fronteiras estabelecidas pelos "Aliados" no pós-Guerra), originou dois estados: a República Federal da Alemanha e a República Democrática Alemã, que se reuniriam numa só república em 1990, na sequência do colapso da União Soviética.
. Em 1960, Chipre, até então colónia britânica, acedeu à independência, mas em 1974, em protesto contra um golpe pró-helénico, a Turquia invadiu o norte da ilha, proclamando a República Turca de Chipre do Norte.
- Em 1964, Malta, até então colónia britânica, proclamou a independência, mantendo a soberania da rainha Isabel II até 1974, ano em que foi proclamada a república.
- Em 1989, com o início do desmembramento da URSS, diversos países obtiveram, de facto, a completa independência (Polónia, Checoslováquia, Hungria, Roménia e Bulgária) e outros (Estónia, Letónia e Lituânia) que eram repúblicas integrantes da União Soviética passaram a ser repúblicas independentes. E passaram todos a alinhar com o campo ocidental. Da Ucrânia falaremos a seguir.
- Em 1991, abertamente apoiadas pela Santa Sé e pela Alemanha, a Croácia e a Eslovénia proclamaram-se independentes da Federação da Jugoslávia. Também nesse ano a Macedónia proclamou a sua independência. O problema mais grave verificar-se-ia na Bósnia e Herzegovina, que se tornaria igualmente independente em 1992 e, após um prolongado conflito étnico, novamente em 1995. O Montenegro, que após a desintegração da Jugoslávia se mantivera no Estado da Sérvia e do Montenegro, proclamou-se independente em 2006. O mais destrutivo e improvável conflito foi o que levou ao bombardeamento da Sérvia pela NATO (!) por insistência dos Estados Unidos e da União Europeia, acção corporizada pela velha Albright, por causa da região sérvia autónoma do Kosovo, que também viria a declarar-se unilateralmente independente em 2008, ainda que essa independência seja apenas reconhecida por alguns países (EUA, países europeus).
- Em 1993, a Checoslováquia dividiu-se, passando a constituir dois estados: República Checa e Eslováquia.
- Em 2014, após o derrube do presidente Yanukovytch por um "movimento popular" em Kiev, incentivado pela União Europeia e pelos Estados Unidos, as pretensões da nova liderança da Ucrânia em aderir à União Europeia e à NATO esbarraram com a oposição de Moscovo, que anexou a Crimeia (antigo território russo) e apoia a secessão do leste do país.
Não admira, por isso, que a Escócia, antiquíssimo país, integrado em 1707 no Reino da Grã-Bretanha (depois Reino Unido) aspire também à independência. O resultado do referendo de ontem, mostra que 45% da população pretende essa solução, apesar das pressões e chantagens exercidas pelos políticos britânicos antes do escrutínio. Estou certo de que apenas o receio das consequências imediatas, especialmente económicas e financeiras, dessa "aventura histórica" impediram a maioria dos escoceses de exprimirem as suas mais profundas convicções. Com a votação de ontem o problema ficou adiado mas não resolvido. Mais tarde o Ulster (Irlanda do Norte) acabará por integrar o Eire. O Reino Unido ficará assim reduzido à Inglaterra (que, na prática, tem designado até hoje o Reino Unido) e ao País de Gales.
Também a Catalunha, mais próxima de nós, insiste na independência. O projectado referendo do Governo Autónomo, previsto para 9 de Novembro, assegura o suspense, mas o governo de Madrid, para impedi-lo, já ameaçou retirar a autonomia à região. O País Basco, agora mais calmo devido aos reveses a ETA, será o candidato seguinte.
Mas as tentativas centrífugas não ficam por aqui.
Há muito que na Bélgica se avolumam as tensões entre valões e flamengos, já que estes ambicionam também abandonar o Reino.
Em Itália, os movimentos regionalistas pretendem a independência do Norte, que é mais rico e, segundo eles, mais produtivo.
Na Córsega, o movimento independentista em relação à França existe há anos e já provocou numerosas vítimas.
A lista poderia continuar se tivéssemos em conta que nem polacos, nem húngaros, nem romenos se encontram satisfeitos com as sua fronteiras.
Só na Alemanha não se notam tendências separatistas. Não se invoca, por exemplo, a separação da Prússia, ou da Baviera ou do Saxe. Compreende-se.
É, pois, da mais elementar prudência atender a que não existem fronteiras imutáveis, como a história passada e presente regista.
E se fizermos um rápido desvio até África, um vasto continente que era praticamente uma imensa colónia ocidental, apesar da pretensão da ONU de que os novos países mantivessem as fronteiras coloniais aquando do acesso à independência, mesmo aí houve mudanças, a mais recente a secessão do Sudão do Sul.
E no Médio Oriente, onde nunca houve sossego depois da queda do Império Otomano, mesmo os centenários Acordo Sykes/Picot e Declaração Balfour estão a ser postos em causa não exactamente pelo interesse dos povos em questão mas pelas ambições imperialistas mundiais.
Há um longo caminho à nossa frente. Quem viver, verá!
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6 comentários:
Júlio,
Queria apenas deixar três notas até porque já sabemos que coincidimos na questão substantiva:
1) Faltou referir o importante caso Kosovo que bem ilustra o primeiro caso de secessão/definição de fronteiras à custa de 78 dias de bombardeamentos aéreos da administração Clinton;
2) Não é exacto que não haja sinais de pulsão secessionista na Alemanha. Com efeito, o Bayernpartei, fundado em 1946, pugna pela independência da Bavária. Veja-se, por exemplo, isto. E a sua motivação tem muito a ver com a redistribuição de rendimentos operada entre os estados federados alemães. Neste sentido, um caso muito semelhante ao da Flandres, da Catalunha, do País Basco, do Norte de Itália como de Veneza.
Um abraço!
Eduardo Freitas
Eduardo,
Eu referi o Kosovo no parágrafo da Jugoslávia.
Quanto à Baviera não tenho acompanhado muito de perto, embora saiba que é uma região rica.
De facto, o poder económico é importante nestas motivações, embora não único. E as regiões que ambos citamos, ainda não separadas, disso são testemunho.
Abraço,
Júlio
Uma boa análise, mas falta referir algumas questões importantes: o anterior desmembramento dos impérios (otomano, russo, austro-húngaro), a tardia formação de países sem verdadeira consciência e coesão nacionais (Itália, Alemanha, ex-Jugoslávia, ex-Checoslováquia, etc), as tendências centrífugas no sentido de uma certa concepção de Europa medieval (feudal) que estão na origem de certas movimentações nacionalistas ou proto-nacionalistas, o questionamento do Estado unitário... Em suma, questões complexas que não podem ser abordadas no Facebook, mas em "posts" separados, relativamente extensos e bem fundamentados no blogue. Aqui fica a sugestão.
F.H. da Silva
Não conhecia o seu blogue e gostei muito do que li. Vou continuar a ler.
Helena Sacadura Cabral, muito obrigado pelo seu comentário.
Silésia, Prússia Oriental, ....
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