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Björn Andresen |
Não vou, obviamente, descrever
A Morte em Veneza, nem a novela de Thomas Mann, nem o filme de Luchino Visconti. Toda a gente conhece.
Importa, sim, mencionar alguns aspectos da génese do texto e alinhar algumas notas sobre a figura do jovem que imortalizou a película e se tornou um ícone da beleza adolescente.
Um livro de Gilbert Adair, publicado em 2001,
The Real Tadzio, contribuiu para esclarecer vários aspectos ainda controversos. E circunstâncias várias levam-me agora a elaborar sobre o tema.
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No seu
Diário, em 11 de Julho de 1950, Thomas Mann escreveu:
«Assim, dentro de três dias não voltarei a ver o rapaz, esquecerei o seu rosto. Mas não a experiência do meu coração. Ele vai juntar-se a essa galeria de que nenhuma história literária falará.»
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Em Maio de 1911, Thomas Mann (1875-1955), acompanhado de sua mulher Katia e de seu irmão Heinrich, viajou para a iha de Brioni, na costa da Dalmácia, a fim de aí passar algumas semanas de férias. Mas a estada foi curta porque o ambiente desagradou à família. Os Mann resolveram continuar a vilegiatura em Veneza, instalando-se no Grand Hôtel des Bains, no Lido.
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Grand Hôtel des Bains |
Entre os clientes do hotel figuravam uma senhora da aristocracia polaca, os seus filhos (três raparigas novas e um rapaz extraordinariamente belo que deveria ter uns catorze anos) e a respectiva preceptora. Ora é a paixão que o adolescente lhe suscitou que Thomas Mann narra em
A Morte em Veneza (
Der Tod in Venedig).
A ameaça de uma epidemia de cólera na cidade (mais fantasiada do que real) leva os Mann a renunciarem definitivamente à ideia de férias, uma semana após a chegada, regressando à sua residência de Verão em Bad Tölz, na Alta Baviera. Subjugado pelo encanto do jovem polaco, Thomas Mann escreverá
A Morte em Veneza entre Julho de 1911 e Julho de 1912. A novela foi publicada na revista "Neue Rundschau" em 1912 e saiu em livro em Fevereiro de 1913, revelando-se um assombroso êxito editorial e tornando-se a mais conhecida das obras de Mann. Está traduzida praticamente em todas as línguas europeias.
Diga-se,
en passant, que Heinrich Mann (1871-1950), também um escritor estimável, foi relegado pelo esmagador prestígio do irmão, apesar do mérito das suas obras, de que importa destacar
Professor Unrat (1905), que seria adaptada ao cinema por Josef von Sternberg em 1930, com o título
Der Blaue Engel (
The Blue Angel), com a participação de dois actores célebres: Emil Jannings e Marlene Dietrich.
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Thomas Mann |
Importa também referir, para alguém menos prevenido, que a novela de Thomas Mann não retrata exactamente a estada deste em Veneza mas, como obra de ficção que é, recria o ambiente e as circunstâncias e até atende às conveniências da época, uma época menos fundamentalista em matéria de sexo do que nos nossos dias. Assim, o jovem Tadzio (Wladyslaw Moes) por quem Mann se apaixonou tinha na altura 10 anos e não os 14 que o escritor refere; Gustav von Aschenbach, o
alter ego de Mann (que no filme de Visconti será até compositor e não escritor), encontrava-se sozinho em Veneza, enquanto este estava acompanhado pelo irmão e pela mulher, Katia, que refere nas suas memórias ter bem percebido para quem se dirigia o olhar do marido, sempre atraído pela beleza dos jovens, incluindo, mais tarde, o seu próprio filho, o atraente Klaus; Aschenbach tivera uma filha, Mann, à data, ainda não era pai; Aschenbach segue Tadzio pelas ruas de Veneza, Mann limita-se a contemplá-lo no hotel.
Nos tempos sombrios em que vivemos, regidos por códigos morais que evocam inquisições antigas, Thomas Mann, o maior escritor alemão do século XX, Prémio Nobel da Literatura em 1929, devido à sua atracção por efebos, seria hoje certamente acusado, preso e condenado ao degredo.
Está actualmente identificado o adolescente que encantou Thomas Mann e que o levou a escrever uma obra-prima da literatura universal. Durante a estada em Veneza, o escritor ouvia os outros rapazes, na praia, chamarem o jovem por um nome que lhe soava Adgio ou Adziu. Supôs que fosse Tadzio, que é o diminutivo polaco de Thaddeus. Na verdade, os amigos chamavam-no Wladzio, que é o diminutivo de Wladyslaw, o seu verdadeiro nome.
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Wladyslaw Moes |
Wladyslaw Moes nasceu em Wierbka, distrito de Pilica, no sul da Polónia, em 17 de Novembro de 1900, filho de Alexander Juliusz Moes (1856-1928), industrial e latifundiário e de sua mulher, a condessa Janina Miaczynska (1869-1946) e foi o quarto filho do casal: um irmão mais velho, Alexander, e quatro irmãs, Alexandra, Maria-Anna, Jadwiga e Barbara. Como de uso numa família rica e nobre, foi-lhes dispensada uma educação particular, com preceptores e professores em casa.
O pai era de origem holandesa e a família viera da Vestfália tendo-se instalado na Polónia cerca de 1830, onde criou uma próspera empresa têxtil na região de Bialystok. A mansão de Wierbka foi adquirida em 1851.
Sempre Wladzio, pela sua beleza e porte, despertou as atenções dos que o rodeavam. Conta-se que, no casamento de uma das suas tias, em que foi
garçon d'honneur com seis anos, impressionou de tal forma o escritor Henryk Sienkiewicz (autor de
Quo Vadis e Prémio Nobel da Literatura em 1905) que, à saída da igreja, este o convidou a subir para a sua carruagem e o sentou nos joelhos, para logo a seguir o retirar, quando notou que ele lhe tinha urinado no colo.
A elegância nas maneiras e no trajar foi sempre apanágio de Wladzio até ao fim da vida. E nem as vicissitudes por que passou durante o regime comunista na Polónia, a cujo partido se recusou a aderir, alteraram a sua maneira de ser.
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Wladzio (à esquerda) e Jaschiu (à direita), no Lido |
Na praia do Lido, o companheiro preferido de Wladzio era Jan Fudakowski, também polaco e alguns meses mais novo. Na novela, Mann chama-lhe Jaschiu, a forma de pronunciar Jasio, vocativo de Jas. Comentariam ambos, mais tarde, as férias em Veneza em 1911.
Só nos anos vinte do século passado Wladzio teve conhecimento, por um primo que lera o livro, da existência de
A Morte em Veneza, identificando-se rapidamente com a personagem criada por Mann. Mas foi a apresentação, 60 anos depois, do filme homónimo de Visconti, que verdadeiramente motivou os dois companheiros de outrora no interesse mútuo e no interesse pelas personagens da obra em que plenamente se reconheceram.
Os Fudakowski, que possuíam uma propriedade na fronteira polaco-russa, não eram íntimos dos Moes nem viajaram juntos para Veneza. Encontraram-se mais tarde no mesmo hotel. Mas os dois rapazes, que por um acaso do destino partilharam alguns momentos da sua infância, ficaram para sempre imortalizados por um grande escritor. Tendo as suas vidas sido paralelas, acabaram, contudo, por ter uma relação familiar. Um sobrinho de Wladzio casaria com a filha de um primo direito de Jaschiu.
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Wladyslaw Moes, com 16 anos |
Aquando da Primeira Guerra Mundial, os rapazes prestaram serviço no I Regimento de Cavalaria e estiveram na frente russa. No regresso da guerra, Wladzio teve de ocupar-se dos negócios da família que o pai, paralisado e próximo dos 70 anos, já não era capaz de dirigir. Interrompeu os estudos e assumiu a direcção das fábricas de papel. O irmão Alexandre pôde assim continuar os estudos. Por morte do pai, a herança foi dividida.
Wladyslaw Moes casou com Anna Belina-Brzozowska, filha do conde Wladyslaw Belina-Brzozowski e de Maria Rawita Ostrowski, em 27 de Abril de 1935, na igreja de Santo Alexandre, em Varsóvia. Tiveram dois filhos, Alexander (1936-1955) e Maria (1946-).
Na Segunda Guerra Mundial, Wladzio foi mobilizado como oficial de reserva e após a derrota da Polónia foi feito prisioneiro e enviado para um campo POW (Prisioners of War) na Alemanha, onde ficou internado durante as hostilidades. Foi libertado pelos ingleses em 1945.
Com a tomada do poder na Polónia pelo Partido Comunista, os seus bens foram confiscados pelo Estado. Durante os últimos meses da guerra, a mulher, devido à sua linhagem aristocrática, também esteve detida durante dois meses numa prisão polaca, reunindo-se mais tarde em Cracóvia com o filho Alexander, então com nove anos. Quando Wladzio regressou à Polónia, encontrando-se ocupada a sua mansão, mandaram-no para Jelenia Gora, no sudoeste do país. Foi aí que nasceu a filha Maria.
Para ganharem a vida, Anna empregou-se como secretária e Wladzio arranjou trabalho numa fábrica de papel. Conhecendo bem o ramo, obteve tal sucesso que em 1947 lhe foi oferecida uma melhor situação em troca da sua adesão ao Partido Comunista, proposta que recusou, tendo sido demitido.
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Wladyslaw Moes, em 1964 |
Mais tarde Wladzio foi guarda-livros numa empresa de exportação em Varsóvia e Anna secretária de uma editora. Viviam então em Komorow, nos subúrbios da capital. Wladzio acabou por perder esse emprego, devido a suspeições politicas, e teve de aceitar o lugar de capataz numas obras. Com o correr dos anos 50 a sua situação económica melhorou, e com o apoio da irmã Alexandra, que emigrara para os Estados Unidos, o casal comprou um pequeno
bungalow que mobilou com algumas peças que tinha conseguido salvar da mansão de Wierbka.
Em 1955, registou-se uma tragédia familiar. O filho Alexander, um robusto rapaz de 19 anos, aparentemente gozando óptima saúde, morreu vítima de leucemia.
Aproveitando a sua boa formação cultural, os Moes mudam novamente de emprego. Anna torna-se secretária da embaixada da Grécia em Varsóvia e Wladzio intérprete na embaixada do Irão.
Em 1971, a filha Maria Moes, vai para Paris. Em 1978, morre Anna. Wladyslaw Moes morre em Varsóvia, aos 86 anos, em 17 de Dezembro de 1986.
Alguns anos antes de morrer, Wladzio decidiu revisitar Veneza (como Jaschiu já o fizera), mas, por ironia do destino, devido ao alarme provocado por um eventual surto de cólera, a viagem foi cancelada no último momento.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Jaschiu fugiu para a Suécia e depois para França. Após o conflito, trabalhou na UNRRA (United Nations Relief and Rehabilitation Association), em Viena. Finalmente, estabeleceu-se em Londres, juntamente com o seu filho Wojciech. Adzio visitou-o em Wimbledon, em 1973.
Só em 1988, Maria Moes Tarchalski (pelo casamento) se encontraria com o filho de Jaschiu, Wojciech Fudakowski. Ambos foram essenciais a Gilbert Adair para reconstituir os pormenores da vida de seus pais.
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Ainda sobre Thomas Mann e sobre a sua estada no Grand Hôtel des Bains - tema de
A Morte em Veneza - importa recordar que o escritor, frequentador habitual de hotéis, apreciava o convívio não só dos jovens hóspedes mas igualmente dos solícitos empregados.
O romancista suíço Alain Claude Sulzer (n. 1953) alude no seu livro
Um Criado Exemplar (2007) (
Ein perfekter Kellner) (2004) à relação íntima que se estabeleceu num hotel suiço (Grandhotel Giessbach) entre um grande escritor alemão, Julius Klinger, e um interessante criado, Jakob, que aquele ajudou a emigrar para os Estados Unidos da América.
Ora a figura inspiradora de Sulzer é precisamente Thomas Mann, que se hospedou num hotel suíço após ter abandonado a Alemanha nazi e que manteve uma relação com um jovem empregado, um caso só reconhecido publicamente há poucos anos.
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Sendo
A Morte em Veneza justamente considerada uma obra-prima da literatura, a ela não teria podido ficar indiferente um dos maiores realizadores de cinema do século passado, Luchino Visconti (1906-1976).
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Luchino Visconti |
O cineasta italiano documentou-se exaustivamente, como era aliás seu hábito, sobre tudo que à obra respeitasse, e viajou por vários países para encontrar o jovem maravilhoso que pudesse interpretar o Tadzio por quem Thomas Mann se apaixonara.
O eleito foi um rapaz sueco de 15 anos, Björn Andresen (n. 1955), cuja imagem rapidamente se espalhou pelo mundo. Para o papel de Aschenbach, Visconti escolheu o famoso actor britânico Dirk Bogarde (1921-1999).
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Björn Andresen |
O périplo efectuado pelo realizador encontra-se documentado num curto filme,
Alla Ricerca di Tadzio (1970).
O filme
Death in Venice seria estreado no Festival de Cannes em 1971 e constituiria um sucesso mundial. Visconti transformou a personagem do escritor Gustav von Aschenbach em compositor, inspirando-se na figura de Gustav Mahler e utilizou a sua música, em especial o
adagietto da Quinta Sinfonia, contribuindo para a redescoberta e o triunfo dessa e das outras sinfonias de Mahler.
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Björn Andresen e Sergio Garfagnoli |
A carreira de Björn Andresen como actor e músico não foi famosa, à excepção do filme que lhe deu a notoriedade universal. Estudante do liceu quando seleccionado por Visconti, Andresen tinha aparecido já num filme, em 1970,
En kärlekshistoria. Posteriormente entrou em algumas outras películas, sem qualquer relevo. Sendo também músico, actua regularmente com a Sven Erics Dance Band. Reside em Estocolmo, é casado e teve dois filhos, uma rapariga e um rapaz, que morreu com SIDS (síndrome de morte súbita de criança).
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Björn Andresen |
Numa entrevista a um jornalista britânico, Björn disse: «I can't wait to age. I was born with a face I did not ask for... One of diseases of the world is that we associate beauty with youth. We are wrong. The eyes and the face are the windows of the soul and these become more beautiful with the age and pain that life brings. True ugliness comes only from having a black heart.»
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Benjamin Britten |
Além de adaptada ao cinema, foi também
A Morte em Veneza passada à cena lírica. Encorajado por Golo Mann, o filho mais novo de Thomas Mann, o compositor inglês Benjamin Britten (1913-1976) criou a ópera homónima, que foi estreada no Festival de Aldeburgh em Junho de 1973. O
libretto foi escrito por Myfanwy Piper e o tenor Peter Pears, companheiro de Britten, interpretou o papel de Aschenbach, sendo o papel de Tadzio não cantado mas dançado.
A ópera de Britten foi igualmente transposta para o cinema (1981) pelo realizador Tony Palmer, com direcção musical de Steuart Bedford e o tenor Robert Gard em Aschenbach.
A criação de Thomas Mann no papel, encontrou assim suporte fílmico e musical graças ao génio de outros dois homens excepcionais, Visconti e Britten.
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Como é sabido, Thomas Mann, Luchino Visconti e Benjamin Britten, além de dotados de extraordinária sensibilidade, eram homossexuais. Por isso, ninguém melhor do que eles para transmitir na literatura, no cinema e na música a homenagem à beleza adolescente e para exaltar na obra de arte o expoente da perfeição humana. Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma.