sábado, 28 de dezembro de 2013

O OUTONO OCIDENTAL




Já se encontra nas livrarias a última obra do prof. Adriano Moreira, Memórias do Outono Ocidental - Um Século sem Bússola, onde o autor reúne vários textos já publicados «ao acaso do tempo», mas de absoluta pertinência e actualidade.

Estas reflexões de Adriano Moreira, mais do que memórias, abrangem temas variados, desde a geração grisalha (oportuníssimo), à União Europeia, à presente conjuntura económica e financeira, à lusofonia, ao declínio ocidental, às guerras mundiais, às perspectivas do futuro, et al. Lamenta-se que a edição utilize a "nova ortografia" o que contribui para aumentar a dificuldade de leitura de uma prosa já pouco linear, que é, aliás, característica do autor, sem prejuízo da notável informação que subjaz aos conceitos expressos.

Naturalmente, todo o livro está enformado pela perspectiva cristã (católica) de quem o escreve, o que condiciona, de algum modo, a nossa adesão às teses sustentadas. O mesmo se dirá quanto às convicções políticas e ideológicas do autor, que dificultam a nossa compreensão relativamente à forma como são apresentadas diversas questões. E a alguns esquecimentos, como, por exemplo, ao enumerar as minorias omita sempre as chamadas "minorias sexuais", que, como as outras, também lutam pelos seus direitos.

Ocupa-se Adriano Moreira, especialmente, em  denunciar a teologia de mercado que hoje parece dominar todo o mundo, um mundo em que o valor das coisas é progressivamente substituído pelo preço das coisas. Não que o preço, na acepção de Moreira, seja precisamente uma inovação do neo-liberalismo. Já Tosca, na ópera, perguntava a Scarpia qual o preço da libertação de Cavaradossi. O que se verifica actualmente é que as coisas passaram a ser em grande medida valorizadas em função do preço que ostentam e não do seu próprio valor intrínseco.

Também o domínio planetário do capitalismo financeiro preocupa o autor, bem como o Complexo Militar Industrial multinacional que vai provocando guerras aqui e ali para exclusiva satisfação dos seus interesses, a expensas da tragédia humana que esses conflitos, a maior parte das vezes artificiais e fomentados, provocam. Igualmente, a privatização das forças de segurança, e já hoje a privatização de guerras, merece especial relevo, pela abdicação de uma das funções da soberania, mesmo numa época de demencial fúria privatizadora. Saliente-se ainda a preocupação de Adriano Moreira sobre a ultrapassagem da fadiga fiscal que ocorre no nosso país, a sua visão das relações Estado/Igreja, a crítica ao unilateralismo americano defensor da tese de Fukuyama sobre o fim da história, a constatação de que a sabedoria está a ser subalternizada em relação ao saber.

Duas citações, colhidas no penúltimo capítulo:

«Deste modo, o citado neo-liberalismo adoptou como objectivo fundamental daquilo que ambiguamente chama e pratica com o nome de reforma do Estado, eliminar dos textos constitucionais os preceitos que afirmam o Estado Social a partir do conceito de dignidade humana, que tem principal lugar na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice em 7 de Dezembro de 2000, um conceito que apareceu pelos meados do século XII, e que implica não tratar a pessoa humana como um meio e assegurar a satisfação das suas necessidades vitais.» (pág. 371).

«O neo-liberalismo que se guia pela destruição-construtiva encontrou na crise brutal deste século sem bússola um conceito mais simples: não há dinheiro. isso não dispensa de haver princípios» (pág. 372).

A terminar,o autor cita Amin Maalouf (Le Dérèglement du monde, 2009) que alude a "um século sem bússola", em que poderão acontecer as maiores catástrofes se não for posto termo às desorientações reinantes, maxime, na Casa Europeia. E insiste em que a crise actual deve muito ao facto de os governos não terem presente a diferença fundamental entre a legitimidade da eleição e a legitimidade de exercício, o que provoca o sobressalto dos povos.

Como o livro é uma colectânea de textos, abundam as repetições, das quais o próprio autor nos adverte no início. Seriam dispensáveis, mas constituem, talvez, uma forma de melhor vincar as opiniões expendidas.

Enfim, uma lição de política e de história (com a decadência ocidental, de que já Spengler falava, em pano de fundo)

Nota 1 - Refere Adriano Moreira uma realidade que desconhecíamos:.«Em Portugal anuncia-se que os efectivos das empresas de segurança privada, sustentados pela sociedade civil, ultrapassam a soma dos efectivos da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana». E acrescenta: «O sociólogo Loïc Wacquant afirma que "a mão invisível do mercado usa uma luva de ferro, e conclui que um mau vento, que sopra da outra margem do Atlântico, fecha as fábricas e abre as prisões da velha Europa"» (pág. 344).

Nota 2 - Transcrevemos as citações de Adriano Moreira na ortografia dita "antiga", porque  nos sentimos inibidos de escrever qualquer texto utilizando o novo "Acordo".

1 comentário:

Unknown disse...

Aos 92 anos (creio que é essa a sua idade, se não for, corrijam-me) Adriano Moreira continua com uma inteligência vivíssima e defendendo de forma incisiva, embora por vezes, nem sempre "straight to the point" conceitos fundamentais da nossa cultura e civilização. É pena que neste tristonho e acinzentado Portugal dos Pequenitos não existam outras figuras como ele.