domingo, 19 de maio de 2013

A PAIXÃO ÁRABE


Num livro de quase 500 páginas, Passion arabe, Gilles Kepel (insigne arabista francês, professor em Sciences-Po até 2010, data em que a instituição encerrou o programa de Estudos Árabes, actualmente membro senior do Institut Universitaire de France, autor de uma dezena de obras sobre o mundo árabe e o islão) recolhe, em forma de diário, o seu testemunho sobre as revoluções da Primavera Árabe e a situação em que actualmente se encontram os países árabes.

Há quatro décadas que Gilles Kepel viaja frequentemente pelo mundo árabe (no quadro das suas actividades docentes), mas com muito mais frequência desde 2011, a fim de registar os eventos que abalaram e continuam a abalar os regimes dessa zona do globo. Neste período, viajou o autor pela Palestina, Israel, Egipto, Tunísia, Líbia, Oman, Iémen, Qatar, Bahreïn, Arábia Saudita, Líbano, Turquia e Síria, alguns destes países visitados mais do que uma vez.

Este périplo, escrito ao vivo e enriquecido depois no trabalho de gabinete, capta em catorze capítulos, como as estações da Paixão, as angústias íntimas dessas sociedades. Eu acrescentaria que para lá da Paixão árabe, no sentido religioso do termo, este livro revela também a imensa paixão do autor pelo universo árabe.


Esta obra dá-nos a paisagem humana e material dos países em causa, as entrevistas com gentes de todos os quadrantes (salafistas e laicos, Irmãos Muçulmanos e militares, djihadistas e intelectuais, ministros e fellahs, diplomados no desemprego e capitalistas do ouro negro), os pequenos episódios do quotidiano, e, ao mesmo tempo, a propósito das pessoas e dos acontecimentos, aproveita para nos ensinar, ou recordar, aspectos essenciais da história do Islão, da língua árabe, da religião muçulmana, de tantas coisas que nunca soubemos ou, se as soubemos, já esquecemos.

Não tomei apontamentos durante a leitura e, por isso, recordo, de cor, algumas notas curiosas. O jovem tunisino que se imolou pelo fogo em 17 Dezembro de 2010, em Sidi Bouzid, não se chamava Mohamed Bouazizi, mas sim Tarek; a expressão xeque-mate (do xadrez) diz-se em árabe ash sheikh mat, "o rei está morto"; os salafistas (generosamente apoiados pela Arábia Saudita) odeiam os Irmãos Muçulmanos (que o Qatar largamente suporta na sua política todos os azimutes) e só se aliam com estes por uma questão táctica, já que consideram a democracia apanágio dos incréus (kafir, pl. kuffar), pois o Poder reside em Deus e não no Povo; o sheik Yussef al-Qaradawi, o telepregador de Al-Jazira, chamado o "mufti mundial", membro dos Irmãos Muçulmanos, é odiado pelos salafistas que o consideram um perigoso concorrente; o Institut Arthur Rimbaud, inaugurado em Aden, pelos franceses, em 1990, acabou por ser transformado em hotel, por um investidor local, com o nome de "Rambo"; o sultão Qabus, do Oman, mandou construir um teatro de ópera em Mascate, onde jovens árabes dançam O Lago dos Cisnes em 'tutu' (para ira dos imams conservadores) e a sua guarda desfila em tronco nu no dia da festa do trono; Muammar Qaddafi, segundo a tradição dos soberanos muçulmanos, mantinha na sua residência de Bab al-Aziziyya, em Tripoli, um harém de rapazes e raparigas para os seus prazeres sexuais; a mesquita Abul-Haggag, encostada ao templo de Luqsor, danificada por um incêndio em 2009, foi restaurada, deixando a descoberto os hieróglifos e as imagens que se encontravam por baixo dos estuques e que mostram agora Osiris, Ísis, a vaca Hathor, o chacal Anúbis, etc., para grande irritação dos extremistas islâmicos; o rei do Bahreïn mandou destruir o monumento da praça da Pérola, onde se juntavam os manifestantes de Março de 2011, transformando o local em placa de mudança de auto-estradas; o sheikh salafista de Tripoli (Líbano), Salim al-Rafeï, proclama num sermão que o Irão colonizou o Iraque com a ajuda dos Estados Unidos e domina a Síria, o Líbano e a Palestina, que todos juntos, formam uma aliança contra os povos sunitas e os árabes (do Golfo), mas que a Umma sairá vitoriosa; ou ainda as lendas corsa e judaica sobre as origens maternas de Qaddafi, muito curiosas mas cuja descrição não cabe neste espaço.

Para lá de curiosidades como estas, sempre pertinentes, e que salpicam o livro, o importante é a análise do autor sobre a chamada "Primavera Árabe", que torna esta obra uma das mais importantes já publicadas sobre o assunto. De facto, Gilles Kepel, que há mais de 40 anos se dedica ao mundo árabe, é uma das maiores autoridades a nível mundial relativamente à matéria. Uma dos aspectos do livro é a inequívoca demonstração de como os movimentos islamistas se apropriaram do que, no início, foi uma revolta laica contra o despotismo dos ditadores em exercício. Mas os dólares da Arábia Saudita e dos países do Golfo encarregaram-se de estimular aqueles movimentos, alguns com real implantação, de forma a permitir-lhes ganhar as eleições que se seguiram. Assim, temos o partido Ennahdha na Tunísia, e o Hizb al-Hurriya Wal- 'Adala (Partido da Liberdade e Justiça), rosto eleitoral da organização dos Irmãos Muçulmanos (Gama'at al-Ikhwan al-Muslimin) no Egipto, que se acomodam, pelo menos tacticamente, às regras democtáticas, e que são apoiados, a contra-gosto e por ora, ainda que com algumas excepções, pelos partidos salafistas, inimigos da Democracia.

O livro termina com a entrada na Síria, aliás o primeiro país árabe que Gilles Kepel visitou, ainda estudante. A partir de Antioquia, no sandjak de Alexandrette, hoje território turco, integrado na Turquia em 1937 por decisão de Léon Blum, numa altura em que os franceses terminavam o mandato na Síria, decisão que os sírios nunca reconheceram, Kepel atravessa clandestinamente a fronteira e penetra em território sírio dito libertado, mais concretamente na aldeia de Kharbet al-Juz (a dupla ruína). A aldeia revoltou-se contra Assad, foi depois retomada pelo exército regular, que destruiu muitas casas de oposicionistas ao regime e cujos moradores se puseram em fuga para a vizinha Turquia, e novamente conquistada pelos ditos rebeldes. Em muitas casas incendiadas está esta  comum imprecação em árabe, "Yakhrib baytak!" (que a tua casa seja arruinada), o que confere um especial e oportuno significado ao nome da aldeia, a "dupla ruína". De resto, a palavra tem a mesma raiz: Kh-r-b. Os actuais detentores da aldeia pertencem às brigadas Ansar al-Cham (os partidários da Síria), salafistas djihadistas que chamam aos soldados mortos do regime, ainda com os rostos ensanguentados, "Kilab al-Assad" (os cães de Assad).

Acrescento eu que a Síria, país que visitei algumas vezes, encerra para mim um significado particular, pela sua história de muitos milénios (Damasco é a mais antiga cidade do mundo permanentemente habitada desde a sua fundação) e pela diversidade da sua população. As suas belezas naturais, as suas ruínas famosas, a coexistência de muitos credos, o palco de muitas civilizações, tornam a Síria, também chamada em árabe ash-Sham, um país de conhecimento imprescindível. Mergulhada há dois anos numa sangrenta guerra civil, cujo fim ainda não se divisa, a Síria vive uma vez mais um tempo de paixão. Esperamos e desejamos que possa ressuscitar em todo o seu esplendor.

Este livro encerra uma invulgar sabedoria, adquirida ao longo de quase meio século. Ensina-nos muito sobre a história dos países mencionados. Descrevendo as insurreições árabes, Gilles Kepel aproveitou o ensejo para nos prodigalizar uma lição de cultura. Assim, Passion arabe é verdadeiramente um livro indispensável.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente recensão e comentário. Deverá ser um livro magnífico, que espero em breve adquirir. Felicitações ao autor do post.