quarta-feira, 10 de março de 2010

O CARDEAL CEREJEIRA

D. Manuel Gonçalves Cerejeira


Foi  apresentado ontem à tarde, na Livraria Bulhosa, o livro Cardeal Cerejeira – O Príncipe da Igreja, de Irene Flunser Pimentel. Trata-se da primeira biografia sobre o eminentíssimo prelado, depois da monumental, e apologética, obra de monsenhor Moreira das Neves, O Cardeal Cerejeira – Patriarca de Lisboa, publicada em 1948. Ao longo destes mais de 60 anos, apenas uma fotobiografia, da autoria do actual Patriarca, D. José da Cruz Policarpo, Cardeal Cerejeira, editada em 2002, seria dada à estampa.
  
Figura discutida ao longo de meio século, o Cardeal Cerejeira (1888-1977) foi, na plena acepção da palavra, o último príncipe da Igreja em Portugal. Príncipe da Igreja, designação comummente atribuída aos cardeais, mas também príncipe da Igreja porque consubstanciou, na plenitude da sua acção e da sua representação, tudo o que, até ao Concílio Vaticano II, era suposto constituir missão e atributo de todos os purpurados.


 O Cardeal Cerejeira, por Eduardo Malta
Tradicionalmente apontado, durante o anterior Regime, como cúmplice do silêncio e do apoio da Igreja Portuguesa (que nele se revia e que todos nele reviam) ao Estado Novo, tem sido ignorada a sua actividade pastoral, académica e até política, ao longo do (quase) meio século em que presidiu aos destinos da diocese de Lisboa e, lato sensu, aos da Igreja Portuguesa.

 O Cardeal Cerejeira, por Henrique Medina
Doutor em Ciências Histórico-Geográficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1918, e logo a seguir professor catedrático de Ciências Históricas, Manuel Gonçalves Cerejeira, já então sacerdote, é nomeado arcebispo de Mitilene e auxiliar do Patriarca D. António Mendes Belo em 1928. Por morte deste, no ano seguinte, é designado para o substituir (1929) e, ainda no mesmo ano, elevado a cardeal da Ordem dos Presbíteros, com o título dos Santos Marcelino e Pedro pelo papa Pio XI. Tendo pedido a resignação ao cargo em 1966 (de acordo com a nova legislação canónica), esta só é aceite pelo papa Paulo VI em 1971. Morre em Lisboa em 1977.
Não é este o local para falar da vida e da obra do Cardeal Cerejeira. Homem de invulgar erudição, humanista distinto, orador notável, os seus escritos, a começar pela tese de doutoramento O Renascimento em Portugal – Clenardo e a Sociedade Portuguesa do seu Tempo, revelam uma invulgar cultura, não só religiosa mas sobretudo profana, para espanto de quantos o julgassem afastado das coisas seculares. A última lição que proferiu na Universidade de Coimbra, ao jubilar-se, é um exemplo do seu interesse e profundo conhecimento do pensamento contemporâneo, mesmo do mais marxista e ateu.  

Ao longo do Estado Novo foi hábito proclamar-se ser ele o responsável do suposto conúbio entre a Igreja e o Estado, mas também nas relações da religião com a política, como alguém disse uma vez, "o que parece é". Puro engano, ou má-fé. Sempre Salazar se mostrou cioso das suas prerrogativas e, apesar de ex-seminarista, não sei se acreditava realmente em Deus, que normalmente não invocava, preferindo referir-se à Providência. E sempre Cerejeira, não obstante uma camaradagem de muitos anos com Salazar, defendeu os interesses da instituição eclesial. Que esses interesses fossem muitas vezes convergentes ninguém o ignora, mas não é lícito admitir-se uma subordinação do Estado á Igreja ou vice-versa.

Permaneceu durante anos a tentação de dizer que ambos haviam feito um pacto para dividir Portugal, encarregando-se um do poder temporal e o outro do poder espiritual. Não acredito em tal género de pactos (o de Fausto e Mefistófeles me basta) mas se tal fora verdade, então ter-se-iam enganado no casting. Por natureza, Cerejeira era um homem mundano, extrovertido, certamente mais vocacionado para a cultura, e mesmo para a política, do que para a religião. Salazar, pelo contrário, austero e asceta, teria sido mais indicado para ocupar a Sé de Lisboa. Mas não se pode (objectivamente) reescrever a História.
Como ainda não li o livro, ignoro o que Irene Pimentel terá escrito sobre o Cardeal Cerejeira. Mas ao longo do tormentoso quase meio-século do seu magistério episcopal talvez a Igreja, e o Regime, lhe sejam devedores de uma actividade que exerceu, para os parâmetros da época, com extraordinário engenho e arte.

4 comentários:

Anónimo disse...

Excelente post,excelente e equilibrada apreciação dessa indiscutivelmente grande figura da Igreja portuguesa. É verdade que,tal como Salazar,não se adaptou aos "ventos da História" dos anos 60 e 70, mas parece mesmo assim tê-los tratado com mais subtileza do que o seu ex-colega de Coimbra.Mas os seus últimos anos devem ter sido de grande amargura com o declínio da Acção Católica,em que tanto se tinha empenhado,e o aparecimento e sucesso dos "católicos de esquerda". Veremos o que dirá e como o dirá Irene Pimentel.

Anónimo disse...

Ex.mo Sr.

tendo em conta o excelente comentário que faz em relaçao ao Cardeal Cerejeira, assim como a inclusão de imagens retiradas da biografia da autoria do padre Moreira das Neves, tomo a liberdade de perguntar se tem este livro na sua posse e se o poderá ou quererá vender.

Com os melhores cumprimentos,

J. Carvalho

N.B. - sou investigador de História e preparo um trabalho sobre o Cardeal Cerejeira. Daí a necessidade que tenho de conseguir encontrar um exemplar deste livro. Obrigado!

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Exmº Sr.
José Carvalho

Muito obrigado pelo seu comentário.

Possuo, de facto, a referida obra, mas não tenciono vendê-la, dado que se trata de um livro de muita estimação.

Julgo ser ainda possível adquiri-lo em algum bom alfarrabista.

Com os meus cumprimentos.

Anónimo disse...

Muito obrigado pela sua atenção. Farei aquilo que me diz: procurar em algum «bom alfarrabista».


Com os melhores cumprimentos,

J. Carvalho