domingo, 31 de janeiro de 2010

O CENTENÁRIO DA REPÚBLICA


Iniciaram-se hoje no Porto as comemorações do centenário da proclamação da República, que terão o seu momento culminante no dia 5 de Outubro. O evento que serviu de pretexto às celebrações de hoje foi a primeira revolta republicana contra a Monarquia, que teve lugar naquela cidade em 31 de Janeiro de 1891.

Andavam os portugueses descontentes não só contra as inúmeras peripécias ocorridas durante a vigência da Monarquia Constitucional, com lutas, pronunciamentos militares, rivalidades partidárias, caciquismo eleitoral, miséria e fome, mas sobretudo contra os esbanjamentos verificados nos reinados de D. Luís e de D. Carlos.

O descontentamento com o regime monárquico agudizou-se devido à complacência de D. Carlos de Bragança e do seu governo face ao ultimato inglês de 11 de Janeiro de 1890. De facto, nesse dia, o governo britânico do primeiro-ministro Lord Salisbury (um dos expoentes máximos do imperialismo e do colonialismo da pérfida Albion) exigiu, em nome da rainha Vitória (mulher de moral duvidosa) a retirada imediata das tropas portuguesas estacionadas entre Angola e Moçambique, a fim de promover a concretização do célebre eixo Cairo/Cabo, tão caro a Cecil Rhodes, e que viria a possibilitar à Inglaterra uma extensão contínua e ininterrupta de colónias desde o Egipto até à África do Sul.

Os portugueses não aceitaram a pronta cedência do governo às vis exigências do seu mais antigo aliado [o Tratado de Windsor, de 1386, ao longo de quase sete séculos apenas serviu aos ingleses, que utilizaram Portugal como base contra as tropas de Napoleão e que responderam negativamente a Salazar quando este pediu a utilização da base de Aden, no sul da Península Arábica (outra das incontáveis colónias inglesas) para reforçar a posição portuguesa em Goa, perante a invasão da União Indiana (pense-se o que se pensar da política ultramarina portuguesa) e que ainda recentemente utilizaram os Açores para a tomada final da decisão da invasão do Iraque]. Para além de outros episódios lamentáveis passados com o governo ou com súbditos britânicos (que não se mencionam por não ser este o lugar próprio) deve realçar-se que o ultimato do governo inglês deixava implícito o bombardeamento de Lisboa, caso não fossem dadas ordens imediatas às nossas tropas para se retirarem dos territórios de que os britânicos pretendiam espoliar-nos.

Também não é este o lugar para referir todos os crimes cometidos pela Inglaterra ao longo da sua existência, mas importa realçar que o ultimato constituiu a gota de água que viria a provocar a queda de uma Monarquia já desacreditada e moribunda, até porque os laços familiares que uniam a Casa de Bragança e a família real inglesa deixavam no ar uma suspeita de cumplicidade quanto ao desfecho deste caso. A estátua
de Camões, então o bardo nacional (Fernado Pessoa ainda não havia nascido) foi coberta de crepes e Alfredo Keil, com letra de Henrique Lopes de Mendonça, compôs "A Portuguesa", que viria a ser, e ainda é, o Hino Nacional Português. 

Depois, vieram os acontecimentos que a História regista. O rei D. Carlos foi assassinado em 1 de Fevereiro de 1908 e a República seria proclamada da varanda dos Paços do Concelho de Lisboa em 5 de Outubro de 1910.

Não me parece que este deva ser um momento de confrontação entre os portugueses, que serão hoje esmagadoramente republicanos, e uma minoria de monárquicos, que tem todo o direito a existir. Antes deverá ser um momento de reflexão sobre o passado, o presente e o futuro da República.

A Primeira República, para além das medidas positivas que perfilhou, como o incremento à instrução, a separação da Igreja e do Estado e as alterações à lei civil, a consagração do voto secreto e directo (mas não universal), a legalização de direitos dos trabalhadores, etc., foi sistematicamente perturbada por golpes de Estado e levantamentos militares, devido ao egoísmo dos políticos e às rivalidades partidárias e levou a que os portugueses olhassem com esperança para o surgimento de um homem sério e de prestígio que assumiu as rédeas do Poder: Sidónio Paes. Mas o seu consulado foi breve e Sidónio acabou assassinado na Estação do Rossio. A confusão regressou, mas já era tarde. E nem o presidente-escritor Teixeira Gomes conseguiu evitar a derrocada. A eclosão do 28 de Maio de 1926, trouxe à ribalta um outro homem que, dizendo premonitoriamente que sabe o que quer e para onde vai, vai mesmo e acaba por ficar cerca de meio século. O período pós 25 de Abril de 1974 tem sido, por razões várias mas também pelas experiências anteriores (e aprende-se sempre com a experiência) menos conturbado. Mas falta-nos um desígnio nacional, e ensina a História que os povos só subsistem quando existe uma ideia que os mobiliza e congrega no cumprimento de um destino. 

Que os Portugueses, que se celebrizaram na época dos Descobrimentos, descubram um Desígnio Nacional para a Terceira República, é o que hoje se lhes pode pedir, mais do que a realização de comemorações piedosas, ainda que bem intencionadas, mas que já não convencem ninguém.

11 comentários:

A. Alós (hokaloskouros@yahoo.com.br) disse...

Olá. Estou a escrever um artigo sobre "Os pequenos mundos do Edifício Yacoubian", e através do Google cheguei ao texto que publicaste aqui no blog. Escrevo para fazer um pedidoo: gostaria de saber mais sobre assassinato de Samy N. Ali, pois um dos pontos que mais me interessa no artigo que estouy a escrever é a ficcionalização da realidade. mesmo que não disponhas de mais informações sobre isso, gostaria de trocar e-mails consigo, para compartilhar minhas interpretações sobre a leitura da obra.

Anónimo disse...

Há um potencial historiador dentro de cada um de nós. Pena que a História não se faça com opiniões.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA A. ALÓS:

O que sei sobre o assassinato do jornalista egípcio é o que consta do meu post no blogue e o que vem descrito no livro de Alaa al-Aswani, traduzido em português com o título, um pouco extravagante, de "Os pequenos mundos do Edifício Yacoubian".

Lamento não dispor de mais informações, mas o autor, que continua a exercer a profissão de dentista no Cairo, e do qual não possuo os contactos, poderá certamente elucidar quanto a outros pormenores.

Anónimo disse...

O autor do blogue tem andado certamente desde há anos muito ocupado com os seus afazers médio-orientais e afins,que não lhe permitem ter-se actualizado um pouco sobre a reavaliação dos mitos sobre a 1ª república,nem sequer completamente sobre a questão do Ultimato. Atendendo a que o autor não deve efectivamente muito tempo para analisar a historiografia recente sobre o assunto,recomendar-lhe-ia dois textos muito sumários,mas que me parecem "competentes"no sentido de bem informados e documentados. Um é o breve artigo de Rui Ramos na "Única" do último "expresso",que reduz o 31 de dezembro a uma arruaça de alguns sargentos e pouco mais,debelada pelas forças leais em cerca de quatro horas. E se as reivindicações dos rapazes tinham sobretudo a ver com soldos e promoções,poderia não ser de facto estranho o ambiente xenófobo criado com o Ultimato. Curiosamento o movimento dos sargentos nem sequer teve o beneplácito do PRP de Lisboa,que se encontrava nessa altura em conspiratas com o Partido Progressista. Fazer desta pífia passeata sargental corporativa o imponente ceremonial do inicio das comemoraçõeas republicanas dá a vontade de rir ou sorrir que provavelmente vão dar os próximos capítulos. O "Expresso" onde se encontra o artigo contibua à venda e não é caro. (Continua)

Anónimo disse...

Continuação de post anterior,em que começo por corrigir a irritante gralha de "contibua" por "continua".

quanto às supostas virtudes da 1ª república,o autor deveria fazer o esforço de ler um texto um pouco mais longo que o de Rui Ramos (que para felicidade dos preguiçosos tem só 3 páginas),pois vai das páginas 47 a 139 do "Portugal-Ensaios de História e de Política",de Vasco Pulido Valente,que como saberá é,alem de colunista,Investigador do ISCTE e autor de livros essenciais sobre a nossa história do século XIX. Leia,e talvez se lhe abram os olhos para a deavergonhada,corrupta e cruel ditadura efectiva do PRP depois Partido Democrático,dominado por Afonso Costa,que obteve o seu acumen com a intervençaõ destrada e deastrosa na I Guerra. Veio com efeito alguma esperança com Sidónio,mas a falta de apoios sólidos e alguma indefinição de objectivos resultaram no seu trágico assassinato. A partir daí a bagunça ainda foi maior,com o sinistro Costa a manobrar de Paris e de Genève. Quanto às grandes obras da I República,saiba que o caciquismo prosseguiu,se não se agravou,que foi restringido o universo dos votantes,e que apesar de tonitruantes proclamações sobre a educação,o alfabetismo pouco evoluiu,ao contrário da república que se lhe seguiu. A perseguição religiosa,erigida em prioridade do regime,atingiu extremos de vilania que ainda alienaram mais a populaçao desses tempos. Econòmicamente os progressos foram limitadíssimos,e a bancarrota esperava-nos em 1926,uma das causas do movimento de Braga. Há muito pouco que comemorar nessa república,e a propósito dos comentários que faz sobre a situação na Monarquia Liberal,aconselho-lhe tambem que se documente melhor. Foi uma época de imensa liberdade de expressão(ao contrário da república,especializada em "empastelar"jornais)e algum progresso económico,por exemplo com o já finalmente reconhecido Fontismo. A referência ao "esbanjamento" da Casa Real deve ser um toque humorístico do autor,que provavelmente ignora que a dotação da Casa Real com D.Luiz e D.Carlos era a mesma de D.MariaII. Compare o valor das dotações da Casa Real ao da Presidência de hoje,em valor fiduciário equivalente e talvez tenha uma grande surpresa. Pois é,a História,arejada dos seus poeirentos mitos reserva-nos grandes surpresas.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA O LEITOR DAS 2:54:

Pelo teor dos seus comentários, presumo que as nossas convicções politicas se situam nos antípodas. Portanto, não há diálogo possível.

Mesmo assim, espero que concorde que nem tudo foi mau na I República e que muitos dos males de que esta enfermou mais não foram do que o prolongamento do caos da Monarquia Constitucional. Certamente que a Questão Religiosa é um dos pontos negativos do regime saído do 5 de Outubro pela inabilidade com que foram tomadas muitas medidas, embora a substância das mesmas seja hoje incontroversa, "verbi gratia" a separação entre a Igreja e o Estado.

Quanto à imensa liberdade de expressão da Monarquia recordo-lhe apenas o exemplo da Ditadura de João Franco e sobre a dotação da Casa Real deverá informar-se sobre a célebre Questão dos Adiantamentos.

Finalmente, quanto a Rui Ramos e a Vasco Pulido Valente, têm dias...

Anónimo disse...

Tomo nota que na opinião do autor do blogue a divergência de opiniões políticas conduz à impossibilidade do diálogo. Não será único nesse pressuposto,mas é sempre interessante encontrar quem defende posições que tiveram grande voga há uns anos e ainda hoje pelos vistos têm alguma. Antes de terminar,apenas referências a pontos que levanta: 1)A perseguição religiosa não foi só uma questão legislativa (a separação era certamente desejável) nem de inabilidade. Correspondia a uma intenção expressa de erradicação sumária do Catolicismo em Portugal,muitas vezes por meios de humilhação soez.
2)Tive a honra de ser aluno do Prof.Vieira de Almeida,que fez parte da Comissão da candidatura de Delgado,chegou a estar preso com outros democratas ilustres,etc. Nas digressões interessantíssimas que fazia no meio das aulas de Lógica,ouvi pela primeira vez o elogio à liberdade de expressão na Monarquia Constitucional,e aliás à prática das liberdades nessa época,contrastando com a situação de então(anos 50). Do que então até agora tenho estudado,só posso confirmar as razões do meu estimado professor.
3)Os "adiantamentos" à Casa Real resultavam exactamente da escassez da dotação,como disse invariável durante décadas. E a comparação com as actuais despesas republicanas mantem-se.
4) Não interessam os "dias" de Valente ou Ramos,mas a justeza e a fundamentação das posições e conclusões que retiram de investigação que não duvido seja feita com honestidade intelectual. E quando se põem em causa mitos de longa vida,como os que o autor parece defender,há sempre a tentação de culpar o mensageiro e não de estudar a mensagem...
Mas já me estava a esquecer que neste blogue,as divergências políticas não possibilitam o diálogo. Os "heróis" que se ocuparam numa célebre noite de António Granjo,Carlos da Maia e outros moderados,não pensavam outra coisa. E assim,por aqui me fico.

Anónimo disse...

"(...)muitos dos males de que esta enfermou mais não foram do que o prolongamento do caos da Monarquia Constitucional (...) Se assim foi, de que serviu implantar a república? Enfim, o senhor estriba-se só e e apenas na ditadura de João Franco (se é que o termo ditadura se aplica ao caso em concreto) e depois ignora as várias interrupções de liberdade e lei da imprensa durante a primeira república. Bom, e se calhar é daqueles que acha que o regime foi interrompido em 1926 para ser retomado em 1974...

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA O ANÓNIMO DAS 2:05:

1) Não é a divergência de opiniões políticas que conduz à impossibilidade do diálogo mas sim a utilização sistemática de certos "clichés" que, talvez por ironia, se obstina em aplicar aos outros.

2) Tive ocasião de frisar no meu comentário anterior que a Questão Religiosa tinha sido um dos aspectos negativos da I República; portanto, parece-me que neste ponto estamos de acordo.

3) Congratulo-me com os mestres ilustres que teve na Faculdade de Letras. Só que nos anos 50 já não estávamos na I República; e quando referi a censura de João Franco, não afirmei que ela tivesse existido em todo o período do constitucionalismo português.

4) Sobre os Adiantamentos à Casa Real, mencionei-os para lembrar que os Monarcas não viviam exclusivamente das Dotações do Orçamento, como parece inferir-se do seu comentário. Se a III República gasta mais do que a Monarquia (Adiantamentos incluídos) não sei nem tenciono averiguar, outros haverá mais capazes, e mais motivados, do que eu de calcularem, com referência aos dias de hoje, quem é mais despesista.

5) Como deve saber, não existem historiadores absolutamente isentos. Uns são mais, outros menos, outros, como escrevi, "têm dias". Rui Ramos é sobejamente conhecido pelas suas convicções ideológicas e políticas, que aliás não esconde, e será sempre um defensor caloroso da Monarquia e um acérrimo detractor da I República, pelo menos tanto quanto não puser escandalosamente em causa os seus pergaminhos de historiador. Mas sempre puxará a brasa à sua sardinha. Já Vasco Pulido Valente é um caso mais difícil, pois nada lhe importará infirmar num dia o que afirmou no dia anterior e voltar a reiterá-lo no dia seguinte. Confesso, por isso, a minha incapacidade em classificá-lo, ou melhor, a sua prosa habilita-me a confirmar a minha asserção: "tem dias".

5) Registo, também, que nos seus dois comentários não existe uma linha sequer para classificar o infamante Ultimato inglês, arrumando-o num clima de descontentamento motivado por reivindicações de promoções e soldos por parte de sargentos descontentes.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA NR DAS 11:04:

Tem o leitor toda a razão quando pergunta para que é que serviu implantar a República. Excluindo alguns aspectos positivos que referi no meu post, e que não devem ser menosprezados, a grande confusão partidária que se manteve até 1926 foi a continuação do caos que se verificava desde os tempos da Senhora D. Maria II. E a que, com muitas virtudes e muitos defeitos, só o Doutor Salazar pôs termo.

Quanto a João Franco, nem sequer o mencionei no meu post mas apenas no comentário ao comentário de um leitor. É uma nota marginal que muito me espanta ter sido tão empolada pelos leitores.

Também me espanta que os leitores não mostrem a sua profunda indignação relativamente ao Ultimato inglês, talvez a principal razão do assassinato do rei e da queda da Monarquia.

Anónimo disse...

Os ingleses: não entra pelos olhos dentro que os filhos da puta estão na origem de toda a complicação do mundo? Se tivessem ficado em casa, tinha sido melhor para todos. Não é só Israel e a Palestina, que eles cozinharam. É a Índia, o Paquistão e o Afeganistão. É os aborígenes da Austrália, tratados abaixo de cão e chacinados dentro do possível, embora reconheça-se sem o mesmo grau de eficiência que aplicaram nas colónias do Novo Mundo e que foi seguido pelos americanos após a independência. É o racismo institucionalizado dos colonos ingleses na África Austral, de que Rhodes foi um bom paradigma e que foi um dos factores estruturais do desequilíbrio mental do Tio Bob (nem todos podem ser Ghandis e Mandelas, infelizmente). E claro, o pior de tudo, foi a forma como os cabrões trataram os irlandeses (a pior e mais cruel saga colonial da história do planeta, para sempre não completamente resolvida) e já agora a humilhação secular a que submeteram os escoceses. Meta-se na cabeça que o retrato mais fiel dos ingleses são os hooligans. Não percebo como é que é possível ter qualquer respeito por esse país. Nos, ao pé dos gajos, mesmo no nosso pior, somos uns anjinhos. Graças a Deus!