quarta-feira, 20 de novembro de 2024

FILIPE II E D. SEBASTIÃO

Comprei em 1993 Felipe II y El Rey Don Sebastián de Portugal (1954), do embaixador Alfonso Danvila, na Livraria Campos Trindade, da Rua do Alecrim, hoje encerrada em consequência da lei das rendas, chamada Lei Cristas. O exemplar que adquiri, e que se encontra anotado, pertencia ao erudito e bibliófilo Castelo Branco Chaves, cuja biblioteca (ou parte dela, ignoro), por sua morte, fora vendida pelos herdeiros ao alfarrabista Tarcísio Trindade com quem mantive uma relação de amizade durante anos, até ao falecimento deste.

Trata-se de uma das mais importantes obras em língua castelhana sobre o período em causa, ainda que o autor seja por vezes um pouco laudatório em relação à Casa de Áustria.

Porque a matéria já tem sido abordada por mim em posts anteriores relativos à época, anotarei tão só algumas impressões.

O livro começa por referir a chegada a Villaviciosa do rei Carlos I (Carlos Quinto), em 19 de Setembro de 1517, tinha então o monarca 17 anos, acompanhado de sua irmã a infanta Leonor. Chegam a Tordesilhas em 4 de Novembro, onde visitam a mãe, Joana a Louca, recolhida voluntariamente no palácio pouco tempo após a sua viuvez, em pleno desequilíbrio da suas faculdades mentais. (p. 6)

Com Joana a Louca vivia sua filha D. Catarina (que viria a casar com D. João III), então com 10 anos, em triste condição, vítima dos caprichos e extravagâncias de sua mãe. Entendeu Carlos Quinto subtraí-la àquele ambiente, mas porque a rainha viúva não queria apartar-se dela resolveu o futuro imperador "raptá-la" de Tordesilhas e levá-la para Valladolid, onde estava a Corte. Foi grande a indignação de Joana a Louca e, por isso, D. Catarina foi devolvida à mãe, só saindo daquele palácio para se casar com D. João III. Para que a menina, naquele período, tivesse algum convívio, resolveu Carlos Quinto introduzir alguns jovens no palácio, entre os quais o primogénito do duque de Gandía, Francisco de Borja y Aragón, que viveu três anos em Tordesilhas, e que voltaria 34 anos mais tarde, já como religioso, para ajudar a morrer cristãmente a rainha Joana. Francisco de Borja, 4º duque de Gandía, vice-rei da Catalunha, etc., ficando viúvo retirar-se-ia do mundo ingressando na Companhia de Jesus, da qual viria a ser Superior Geral, criado também cardeal e finalmente canonizado. Remonta àquela época a amizade de D. Catarina com S. Francisco de Borja. «Este episódio histórico, por demás conocido, representa un ejemplo aleccionador de lo que significaba entonces el papel del jefe de familia [Carlos Quinto], así como de la subordinación perfecta con que todos los miembros de ella obedecían sus mandatos, sin pararse a discutirlos ni analizaros. Tal era lo costumbre, y tal la fuerza de la disciplina en los familiares de la Casa de Austria.» (p. 11)

Em 1 de Novembro de 1527 celebrou-se no palácio de Almeirim o matrimónio de Carlos Quinto, representado por Don Carlos, senhor de Laxão na qualidade de Procurador, com Isabel de Portugal, estando presentes os reis de Portugal, D. João III e D. Catarina, e também o cardeal infante D. Afonso (16 anos), o infante D. Luís (19 anos), o infante D. Fernando (18 anos), o infante D. Henrique (futuro cardeal-rei, 15 anos) e o infante D. Duarte (10 anos). Escoltada por seus irmãos D. Luís e D. Fernando e pelo duque de Bragança, D. Isabel foi entregue na fronteira do Caia em 14 de Fevereiro de 1528, sendo recebida por uma embaixada presidida pelo duque de Calábria, D. Fernando de Aragão, o único príncipe de sangue que então residia em Espanha, e pelo arcebispo de Toledo, D. Alonso da Fonseca que partilhava as honras com D. Álvaro de Zúñiga, duque de Béjar. A ratificação do matrimónio teve lugar em Sevilha, sendo celebrado em 10 de Março de 1526 com grande pompa e ficando Carlos Quinto encantado com a esposa, considerada  a mais bela princesa da época, o que é confirmado pela pintura do Ticiano, retrato que o imperador conservou junto de si até fechar os olhos em Yuste. (pp. 19/20)

[As datas mencionadas pelo autor não conferem, como é evidente.]

«Según un prestigioso escritor español [Antonio Sánchez Moguel] la Reina Doña Catalina fué la Princesa más inteligente de la Casa de Austria y la que por su carácter enérgico y varonil tuvo más semejanza con su abuela la Reina Católica: era su valor grandíssimo y sólo comparable a su religiosidad y firmeza; capaz de las resoluciones más extremas, nunca las adoptaba sino cuando su claro talento apreciaba la necesidad; apasionada en sus afectos, adoraba al Emperador, como después amó a Felipe II y a su nieto Don Sebastián, encontrando medio, en su delicadeza, de no hacer traición a ninguno de estos cariños; ambiciosa, nunca deseó el poder sino para servir a su descendencia, ni jamás concibió un proyecto que no fuera encaminado a la prosperidad del Reino lusitano; finalmente, a poco de su instalación in el trono, supo apoderarse de la voluntad de su esposo hasta el punto de poder afirmarse que fué ella la que gobernó el país durante la vida de Don Juan III, quien aunque a veces discutiera sus opiniones, acababa siempre condescendiendo en ellas, como si implicitamente reconociera la superioriad del talento y las dotes de gobierno en su esposa.» (pp. 21-2)

D. Catarina teve nove filhos mas só dois sobreviveram até tomar estado e morrendo aliás pouco tempo depois: D. Maria Manuela, que casou com Filipe II e foi mãe do infante D. Carlos, e D. João Manuel, que casou com D. Joana e foi pai de D. Sebastião. E foi verdadeiramente ela que governou Portugal no tempo de D. João III.

«La negociación del matrimonio de la Infanta Doña María con el Príncipe Don Felipe constituyó el motivo más poderoso de crítica entre los portugueses contra la política de Doña Catalina, a cuyos esforzos se debió indudablemente tal enlace. El mismo Rey no lo deseaba, por más que le halagase la idea de ver su hija convertida en Reina futura de España. La nobleza y el pueblo lusitanos, que veían en la Infanta la posible sucesora de la Corona, pues el Príncipe del Brasil Don Juan, constantemente enfermo, era "una cosa muy flaquita e muy dolentico", no pasando aún de los tres años, preferían que la Infanta se desposase con su tío Don Luis, Duque de Beja, a pesar de la diferencia de edad, por constituir el medio más seguro de alejar el peligro de la unión de ambas Coronas, caso de que el Príncipe Don Juan falleciese.» (p. 24)

[O autor comete um erro neste parágrafo. O herdeiro da Coroa portuguesa só passou a usar o título de Príncipe do Brasil no tempo de D. João IV]

Em 11 de Julho de 1554, Filipe II partia da Corunha para Inglaterra para casar-se com Maria Tudor, que havia sucedido no trono a seu irmão Eduardo VI. Ficou como regente sua irmã D. Joana, que havia regressado a Espanha depois da morte de seu marido D. João Manuel. Em 11 de Abril de 1555 falecia em Tordesilhas, com 76 anos, a rainha D. Joana (a Louca), assistida pelo padre Francisco de Borja, como se escreveu acima. Ela era ainda a Rainha proprietária de Castela e Aragão, reconhecida como tal pelas Cortes, e foi mãe de dois imperadores, um rei e quatro rainhas. 

«El 25 de octubre de 1555 abdicaba el Emperador todos sus Estados de España, Indias y Flandres en favor de su hijo Don Felipe, poseedor desde hacía poco de las Coronas de Italia, por césion de su augusto Padre, y Rey consorte de Inglaterra por su casamiento con Maria Tudor. Y en febrero de 1556, Felipe II, ya como Rey, ratificaba a su hermana Doña Juana los poderes para la gobernación de sus dominios, siendo solemnemente proclamado como Soberano de Valladolid, el 28 de marzo de 1556, alzando pendones por él, el Príncipe Don Carlos, su primogénito, que contaba once años de edad, delante de la Princesa, a quien rodeaban los Grandes y Prelados del reino.» (p. 67)

O imperador chegou a Yuste em 3 de Fevereiro de 1557, sendo recebido pela Comunidade dos Jerónimos. Ao contrário do que se disse durante largo tempo, Carlos Quinto não se entregou a um piedoso retiro mas continuou a governar a partir do mosteiro. «Todos sus proyectos de retiro tuvieron que ceder desde el primer momento ante su inveterada costumbre de mando y la necessidad que de sus consejos necessitaban, tanto Don Felipe en Flandres, como Doña Juana en Castilla; y, desde entonces, siguió reinando, no obstante haber renunciado a todo título para ello.» (p. 69)

Por morte súbita de D. João III (11 de Junho de 1557), que o impediu de firmar as suas últimas vontades, conseguiu D. Catarina, através do secretário Pedro de Alcáçova Carneiro (como escrevi em post anterior) apresentar uns apontamentos sem assinatura do monarca em que este desejava que a viúva assumisse a Regência até que D. Sebastião tivesse 20 anos. O Chanceler de Portugal, Gaspar de Carvalho, afirmou, sob juramento, que aqueles apontamentos continham as resoluções de D. João III. A 16 de Junho foi prestado juramento a D. Sebastião (então com três anos), com a presença do arcebispo de Lisboa, dos duques de Bragança e de Aveiro, dos condes de Vimioso e de Castanheira e de outras personalidades. O cardeal D. Henrique tinha perdido esta batalha a favor da cunhada, tendo resolvido passar a exercer toda a influência possível junto da pessoa de D. Sebastião. (p. 74)

Por ocasião de uma grave enfermidade de D. Catarina, Carlos Quinto encarou a hipótese de que fosse D. Joana a governar o reino no caso daquela falecer. Mas D. Joana opôs-se, considerando que não era bem vista em Portugal e melhor seria que D. Catarina não publicasse qualquer Pragmática sugerida. (p. 83)

Regista-se um capricho do imperador: proibiu a sua filha de o visitar no Mosteiro de Yuste. Ela não voltou a vê-lo desde a abdicação. 

Em 21 de Setembro de 1558 morreu Carlos Quinto. Houve grandiosas cerimónias fúnebres em Yuste, Valladolid, Roma e Bruxelas. 

«Quedaba la Reina Doña María de Hungria como representación de la época de Carlos V, y en verdad que el recuerdo vivo de aquel reinado había sido por su firmeza e inteligencia uno de los más poderosos auxiliares de la política del Emperador, y, como decía Badoero, "la mejor ejecutora de su pensamiento". Alta de cuerpo, de facciones enérgicas y mui parecidas a las de su hermano, gallarda en todos los ejercícios, famosa en la equitación y en la caza, de tal manera que no se había visto desde muchos años atrás señora alguna que la hubiera superado, en esto, mostró en la práctica de la guerra hasta dónde podía llegar el valor de una mujer. Compañera de los Consejos del César, intervino directamente en su política como Gobernadora de los Países Bajos y realizó habilíssimas maniobras para hacer elegir a Felipe II Emperador de Alemania, no obstante la enemistad que por él sentía; en una palabra: fué la hermana más semejante a Carlos V y a la que éste estuvo más estrechamente unido, no obstante su preferencia por Doña Leonor, considerándola más como camarada que como mujer y reconociendo sus excepcionales aptitudes para los negocios y materias de Estado.» (pp. 86-7)

Maria da Hungria morreu em Outubro de 1557. Maria Tudor, em 17 de Novembro de 1558. Henrique II de França, em 10 de Julho de 1559. Paulo VI, em 18 de Julho de 1559. Estas mortes tiveram repercussões na política espanhola. «La paz de Cateau- Cambresis, concluída el 3 de abril de 1559, hería de muerte la política de Carlos V e inauguraba una dirección totalmente opuesta a la que seguía guardando desde los reyes Católicos.» (p. 87)

«El nuevo Emperador de Alemania [Fernando I] odiaba a su sobrino el Rey de España y no había de cooperar en manera alguna a la prosperidad de éste; así que Felipe II, poco amante, por otra parte, de la guerra, escogió el partido que se le presentaba a la vista, admitiendo los ofrecimientos de Enrique II, casando con uma de sus hijas y consolidando la alianza de los dos países para conservar la fe católica.» (p. 88)

Sobre autos de fé:

«En este auto es donde, según fama, después de prestar juramento el Rey sobre la Cruz de mantener la fe y amparar su tribunal, empezó el desfile de los reos, que eran catorce, y al passar Don Carlos de Sesso, gritó, dirigiéndose a Don Felipe: Así me dejaréis quemar? Contestando el Monarca con aquellas palabras tan incriminadas después, pero que son las únicas capaces de excusar su impassibilidad por la rectitude y convicción profunda que revelan: "Para quemar a mi proprio hijo, si fuese hereje, traería yo la leña". (p. 92)

As figuras mais importantes da Casa de Áustria no tempo de Filipe II eram o príncipe D. Carlos (herdeiro do trono espanhol e débil mental, que seu pai haveria de encarcerar); D. João de Áustria (irmão natural de Filipe II e herói da batalha de Lepanto); Alessandro Farnese (filho de Ottavio Farnese, duque de Parma e Placência, e de Margarida de Áustria, filha de Carlos Quinto, e que casou com a infanta D. Maria de Portugal, filha do infante D. Duarte de Portugal, duque de Guimarães. Um dos seus filhos, Ranuccio, aspirou ao trono de Portugal por morte de seu tio-avô, o cardeal D. Henrique); e os arquiduques Rodolfo (futuro imperador Rodolfo II) e Ernesto de Áustria, filhos do imperador Maximiliano II e de sua mulher, a infanta Maria de Espanha, filha de Carlos Quinto. O imperador Maximiliano II era filho do imperador Fernando I.

Durante largo período do reinado de Filipe II havia dois "partidos" na Corte. Um chefiado por D. Fernando Álvarez de Toledo, duque de Alba, Grande de Espanha; o outro chefiado por Ruy Gómez da Silva (português de nascimento), confidente e amigo do rei, futuro príncipe de Eboli e duque de Pastrana. Entre as notáveis figuras contava-se D. Diego Hurtado de Mendoza, duque do Infantado e D. Ana de Mendoza y de la Cerda, princesa de Eboli (imortalizada por Verdi na sua ópera Don Carlo).

Sobre o cardeal D. Henrique, traduzo das páginas 122-3:

«O cardeal D. Henrique, herdeiro presuntivo da Coroa constituía um verdadeiro problema para a rainha D. Catarina. que sempre encontrou nele o seu pior inimigo e o seu constante opositor, em política e em todos os assuntos referentes à criação e educação do menino rei D. Sebastião.

Contava cinco anos a menos do que a soberana e era de corpo médio, fraco, macilento, de saúde precária; de acordo com a sua figura, as palavras resultavam secas, a alma calada, vivendo muito em si e falando para dentro. Humanista distinto, sabia latim, grego e hebraico, tendo escrito na primeira destas línguas um tratado piedoso.

Cumpridor exacto dos seus deveres religiosos, altamente zeloso dos serviços régios, e, como homem, completamente honesto. Humilde por fora, tinha a fraqueza de exigir as mais extraordinárias e públicas atenções. Não era precisamente um ambicioso, senão um vaidoso, e se amava o poder era, sobretudo, pelas honras que lhe proporcionava. A rainha conhecia muito bem estas debilidades e explorava-as em seu proveito. 

Clérigo aos catorze anos, foi nomeado em seguida prior de Santa Cruz de Coimbra; aos vinte e dois era arcebispo de Braga; aos vinte e sete, Inquisidor Geral de Portugal e suas possessões do Ultramar; no ano seguinte, 1540, primeiro arcebispo de Évora; e cardeal em 1545, aos trinta e três anos de idade.

O rei D. João III, que ao princípio não lhe concedia a sua confiança, ao extremo a opor-se a que lhe fosse concedido o Capelo, vago por morte de seu irmão D. Afonso, dignidade que só pôde obter D. Henrique graças às repetidas instâncias do Imperador, a quem D. Henrique recorrera pedindo ajuda, encontrou depois nele um poderoso auxiliar para o estabelecimento da Inquisição nos seus Reinos, procurando que fosse eleito Papa no conclave que teve lugar por morte de Paulo III, onde obteve quinze votos do Sacro Colégio; porém, Carlos Quinto fez fracassar a negociação, porque não lhe convinha ter como Pontífice um príncipe português, e desde aí D. Henrique concebeu um ódio mortal a Castela...»

«Estabelecida la Regencia de Doña Catalina, asesorada por los consejos del veterano Pedro de Alcaçova, inauguró aquélla su gobierno con un acto diplomático de gran habilidad, declarando al Cardeal Don Enrique, como su coadjutor, fundando tal resolución en los deseos de que, según ella, manifestara con anterioridad El Rey Don Juan III, deseando por este medio evitar les dificuldades que podía crear el descontento de su cuñado y del partido que le seguía; pero non cesó aquél con tal acto, iniciándose desde el primer momento un desacuerdo en que procuraba Don Enrique ir demoliendo poco a poco la reputación política de la Regente, lisonjeándose con la idea de que, obligada la Reina por tantos disgustos y contrariedades a resignar el poder en sus manos, podría substituirla, no solo en el gobierno, sino allado del Rey, a quien esperaba educar el Cardenal a la portuguesa, desviándole gradualmente del amor y respeto que debía a su abuela.» (p. 125)

Em 1560, três anos e meio depois de ter assumido a Regência, declarou D. Catarina, certamente aconselhada por Pedro de Alcáçova, estar desejosa de repouso e ansiosa por retirar-se para um convento para lá passar o resto dos seus dias, tendo convocado o Cardeal para lhe transmitir esta sua vontade. D. Henrique, depois de algumas objecções, concordou em aceitar a oferta, desde que se convocassem os Três Estados. Porém, numa hábil manobra, D. Catarina, cujo partido era muito poderoso, não reuniu as Cortes, limitando-se a enviar uma carta-circular datada de 24 de Dezembro, dirigida aos Prelados, representantes da Nobreza e das cidades com assento nos respectivos Estados, comunicando-lhes a sua resolução e a aquiescência do Cardeal Infante. Todos as pessoas consultadas entenderam que a rainha deveria continuar no governo até que o rei tivesse vinte anos. O expediente resultou e D. Henrique não teve outro remédio senão conformar-se e aplaudir a decisão. Contudo, D. Catarina, conhecendo a idiossincrasia do seu cunhado, conseguiu, como compensação, que o papa Pio IV o nomeasse Legado a latere perpétuo em Portugal, o que não impediu aquele de prosseguir a luta contra a rainha, enngrossando o seu partido com toda a classe de elementos nacionalistas. (p. 126)

Finalmente, em 11 de Julho de 1562, D. Catarina convocou, em nome do neto, os Estados Gerais, dizendo que o rei "queria tratar y comunicar algunas cosas muy importantes al servicio de Dios Nuestro Señor y muy en bien de mis Reinos con todos los tres Estados dellos". Assitiram à cerimónia, que teve lugar em 12 de Dezembro no Palácio da Ribeira, D. Sebastião, que ia completar oito anos, e os delegados. A seguir à entrega das petições dos representantes, o Vedor da Casa da Rainha, Simão Guedes, entrou na sala e entregou ao doutor António Pinheiro, representante do estado eclesiástico, um papel de D. Catarina, com data de 8 de Outubro, em que declarava não lhe ser possível manter-se por mais tempo no Governo, ao qual renunciava, atendendo apenas dez dias para que se decretasse como Regente o Cardeal seu irmão. Apesar de muitos aguardarem aquela decisão a leitura do documento causou profunda impressão na Assembleia. Acharam alguns que não devia ser a aceite a renúncia mas um grupo mais forte partidário do Cardeal inclinou-se perante a renúncia. Depois de muita discussão, em 23 de Dezembro de 1562, último dia do prazo mencionado pela Rainha, o Cardeal D. Henrique sucedia-lhe na Regência, com a cláusula expressa e juramento solene de entregar o governo do Reino a D. Sebastião quando este cumprisse catorze anos, em lugar do prazo de vinte anos que fora anteriormente outorgado a D. Catarina.

A propósito da doença de D. Sebastião, escreve o autor: «Otra hipótese puede ocorrir todavía. Los matrimonios consanguíneos, repetidos durante generaciones sucesivas entre las familias reales castellanas y portuguesas. acumularon en Don Sebastían - como en su primo hermano Don Carlos - las taras patológicas de sus ascendientes. No es posible que en esta hereditabilidad morbosa se encontrara la etiologia de la enfermedad? El Doctor Gregorio Marañon, que ha estudiado el caso, es más explícito y opina que Don Sebastián padecía desde muy temprano una rebeldísima espermatorrea que le proporcionaba vahidos, gran flojedad en las piernas y otros trastornos. Mostrábase además muy esquivo con las mujeres, lo cual se atribuía al exceso de rigidez de la educácion recibida de los jesuítas; pero, según el eminente facultativo, es más lógico pensar que la alteración nerviosa aneja a las citadas pérdidas tuviese su repercusión en el ánimo del joven y engendrara la timidez sexual, que los Embajadores españoles describían tan bien y con tantos detalles. Todo lo cual era compatible con uma decisión muy de hombre en los otros aspectos de la vida, incluso en los lances guerreros. No es raro, y tal vez fuera éste el caso de Don Sebastián, que se compense el poco impetu sexual con la alborotada agresividad en la vida corriente [Gregorio Marañon, Antonio Pérez]. A este respecto, el ilustre historiador antes citado establece en la misma obra un paralelismo muy original en la existencia del Rey de Portugal y del Príncipe de Asturias, Don Carlos, que no resistimos al deseo de copiar: "Fué sa vida paralela, allá en la profundidad de lo fisiológico, a la de su doble primo el Príncipe Don Carlos de España. Los dos tenían muchos puntos de contacto, que si ahora no se perciben en su trágica realidad, es porque sus conductas - que es lo que vemos de lejos - difirieron radicalmente. Don Sebastián llevó a cabo sus descabellados proyectos porque reinó y porque, prácticamente huérfano, le educaron Regentes incapaces de conducirle con severidad. Mientras que Don Carlos tuvo a su lado a su progenitor Felipe II, que vigilava sus desvaríos y los contuvo, llegando, cuando fué preciso, hasta la prisión y muerte civil. Don Sebastián, junto a Felipe II, hubiese muerto en una fortaleza. Y Don Carlos, libre, rectorado por las débiles manos de los tutores de su primo, hubiera tramado otro Alcazarquivir en Flandres. Ambos tenían la misma razón para su disparatada conducta: una herencia de egregias cualidades y egregios defectos, mezclados y remezclados a través de incesantes matrimonios consanguíneos que hoy nos producen horror."» (pp. 143-4)

Em 18 de Janeiro de 1568, D. Carlos, Príncipe de Astúrias, foi encarcerado por ordem de seu pai, Filipe II. Em 20 de Janeiro de 1568, foi proclamada no Palácio dos Estaus, a maioridade de D. Sebstião. Em 21 de Julho de 1568, verificou-se a morte de D. Carlos, acontecimento que foi recebido com alívio em Portugal (único lugar onde tal atitude ocorreu), pois receava-se que morrendo D. Sebastião sem descendência (como, aliás, se verificou), D. Carlos pudesse reclamar o trono de Portugal.

Na proclamação da maioridade de D. Sebastião, a que assistiram D. Catarina, a infanta D. Maria, o infante D. Duarte (duque de Guimarães), os duques de Bragança e de Aveiro, o marquês de Torres Novas, os condes de Vimioso e de Portalegre, e muitos prelados, fidalgos e pessoas notáveis, o cardeal D. Henrique procedeu à entrega solene ao rei dos selos reais, pronunciando algumas palavras de congratulação. 

Segundo o doutor José de Figueiredo, existem apenas três retratos de D.Sebastião que podem considerar-se autênticos: a gravura do flamengo Hieronymus Cock, aos sete anos, e os óleos de Cristóvão de Morais, nas Descalzas Reales, em Madrid, aos onze anos e no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, aos dezoito anos.

Sobre os projectos de casamento de D. Sebastião já fiz referências em posts anteriores a propósito de outras obras. Importa, todavia, transcrever uma carta de D. Juan de Borja, segundo filho do célebre duque de Gandía (S. Francisco de Borja) mas o primeiro em inteligência e cultura, embaixador de Filipe II em Portugal, para o seu rei: "Yo no acabo de determinarme qué cosa sea ésta de no quererse el Rey casar: por una parte veo que el mayor inconveniente que todos los que tratan de este negocio ponen es la poca gana que el Rey tiene de casarse, y que esto no sé de qué procede, porque en su edad ni les suele faltar estas ganas a los mozos, si non son viciosos (como no lo es el Rey). Por otra parte, dijome la Reina que el Rey estaba muy sano y muy bueno y que había sanado muy bien de aquella su indisposición. Por estotra parte háceme sospechar mal en esta materia lo que el Maestro me dijo hablando de casarse el Rey, diciendo que si alguna cosa le podía hacer mudar la idea que ahora tiene, sería como sentir en si pasiones que le pusieran en peligro de ofender a Dios, porque era tan bueno cristiano y temeroso de Dios que, por salir de este peligro, se casaria. De esto infiero que no tener pasiones en esta edad no es de tener muy sano, porque la virtud no consiste en no tenerlas, sino en vencerlas. Contóme también extremos de su honestidad, que diz que es tanta, que no se sufre tratar delante de él plática de mujeres, aunque sea tan honesto que la traten religiosos. Tiene también este extremo que nadie le ve a la mañana hasta que él solo ha tomado la camisa y vestidose en calzas y en jubón. A mi todo esto me acrecienta la sospecha que de ahí traía".» (pp. 189-190)

Depois de viúva, D. Catarina habitou no Palácio de Xabregas. A infanta D. Maria habitou nas suas casas junto a Santa Apolónia. 

As atitudes desagradáveis de D. Sebastião para com D. Catarina  motivaram o desejo desta de se mudar para Espanha, para isso contactando seu sobrinho Filipe II. O embaixador espanhol em Lisboa propôs, em nome do rei, os lugares de Ocaña ou Talavera para residência, com jurisdição e senhoria. Como a partida da rainha seria vista com desagrado por uma larga parte da nobreza e até do povo, D. Sebastião alterou o seu comportamento em relação à avó, passando a visitá-la com frequência e fingindo aceitar os seus conselhos. Após várias peripécias familiares e diplomáticas, D. Catarina acabou por renunciar à ideia e nunca abandonou Portugal, onde morreu.

Traduzo das páginas 229-230:

«Em 18 de Agosto de 1572 celebrava-se em Paris a boda da Princesa Margarida com o jovem Rei de Navarra, e em 24, dia de São Bartolomeu, realizava-se o horrendo massacre dos huguenotes, que, se não surpreendeu a muitos, consternou, por outro lado, o mundo inteiro, provocando diversas reacções, de acordo com as crenças de cada povo. Em Espanha encontrou aplauso e aprovação unânime. Em Portugal foi festejada com uma procissão geral, missa solene em São Domingos, sermão congratulatório, toque de sinos e iluminações. Dom Sebastião, entusiasmado, mandou a Paris um Embaixador extraordinário, o Comendador Mor de Cristo, Dom Afonso de Lencastre, encarregado de significar a Carlos IX o seu contentamento por tamanha obra, executada com tanto zelo. Esta foi a única oportunidade em que o Monarca português se encontrou de acordo com Filipe II e com a sua política de destruir o protestantismo a ferro e fogo, influenciado não apenas pelo seu indiscutível zelo católico, se não pela recordação dos numerosos jesuítas imolados dois anos antes na costa do Brasil por uma armada de corsários franceses sob o comando do calvinista Jacques Soría, assim como do assasinato de mais treze pelo luterano Juan Capdevilla, ao capturar o navio que conduzia o Governador do Brasil Dom Luís Fernandes de Vasconcelos.»

A morte do infante D. Carlos em 24 de Julho de 1568 não provocou grande dor na Corte mas sim na rainha de Espanha e na princesa D. Joana e também no povo e nas chancelarias estrangeiras. Uma vaga sensação de temor e de respeito se estendeu desde então sobre o reinado de Filipe II, admiravelmente expressa por Frei Luís de Léon no seu magnífico epitáfio ao Príncipe defunto, onde não podem encerrar-se mais conceitos em menos palavras:

"Aqui yacen de Carlos los despojos: la parte principal volvióse al cielo. Con ella fué el valor, quedóle al suelo miedo en el corazón, llanto en leos ojos."

Em publicações anteriores sobre D. Sebastião já nos referimos com algum pormenor à batalha de Alcácer-Quibir. Por isso, não entraremos nos detalhes descritos no presente livro. Mesmo assim, alguns aspectos há que importa mencionar.

No início da página 269 pode ler-se: «La empresa de África! Éste es el hecho que simboliza y recuerda el reinado de Don Sebastián. Todas las faltas de su educación, los defectos de su carácter, la resistencia a contraer matrimonio, el desvío respecto de su abuela, sus ambiciones de gloria, el anhelo indeterminado de asombrar al mundo por valiente y guerrero; lo mismo los pensamientos más elevados del Monarca lusitano, que las insólitas fatigas a que gradualmente iba acostumbrando su cuerpo, todo fué poco a poco cristalizando en un ideal poco definido al princípio, pero hermoso y propio para seducir la imaginación de un mancebo y enardecer los alientos de un nieto de Carlos V: ser capitán de Cristo!». O sonho de África foi sempre a grande obsessão de D. Sebastião, e para tal foi também muito incentivado pelos mais lisonjeadores dos seus vassalos. Interpretando, ou julgando interpretar o sentimento popular, o próprio Camões escreveu:

«Não se aprende, Senhor, na phantasia/Sonhando, imaginando ou estudando,/Senão vendo, tratando e pelejando.» (p. 270)

Animado pelos triunfos de D. Luís de Ataíde, já em 1571 D. Sebastião queria passar à Índia, sendo disso dissuadido pelo cardeal D. Henrique. Por isso, virou-se para o continente vizinho, aspiração inutilmente combatida pelo seu confessor, o padre Luís Gonçalves da Câmara.

«A ideia de ingressar na Liga contra o Turco deslumbrou por um momento a imaginação de D. Sebastião; porém, o combater às ordens de outro general estrangeiro e não poder dirigir a empresa como antes fizera D. João de Áustria, levaram-no a renunciar às suas intenções, ainda que não aos preparativos da Armada, que se suspeitava seria destinada a África.» (p. 271). Aliás, a batalha de Lepanto pusera um termo à grande ofensiva do Império Otomano no Mediterrâneo. Já anteriormente D. Sebastião organizara uma armada que foi destruída em 13 de Setembro de 1573 por uma tempestade que se desencadeou no porto de Lisboa, com tal fúria que ninguém se recordava de outra semelhante, e que desfez a magnífica frota que tantos sacrifícios custara aos portugueses.

Em 1574, D. Sebastião partiu falsamente para o Algarve com um conjunto de navios, e só depois informou Lisboa que se dirigia a Tânger, encarregando da Regência o cardeal D. Henrique durante os mais de três meses em que esteve ausente. 

Aquando da expedição a Alcácer-Quibir, o Escrivão da Puridade Martim Gonçalves da Câmara esperava ficar como Regente, pois era irmão do confessor do rei e gozava de grande influência junto dele, mas as suas aspirações não se concretizaram pois tinha contra si D. Catarina, D. Henrique e grande parte da  Corte.

Desde a expedição a Tânger, quatro validos passaram a gozar de grande influência junto de D. Sebastião: D. Álvaro de Castro, Cristóvão de Távora, Diogo da Silva e Manuel Quaresma Barreto. Fotam estes que com Pedro de Alcáçova Carneiro conseguiram a queda de Martim da Câmara.

Aproximamo-nos do fim deste longo livro, mas ainda falta mais de uma centena de páginas. 

Pelo seu interesse, transcrevo das páginas 297-8, a propósito da doença de D. Sebastião:

«En cuanto al Rey se refería, la impresión de Don Juan de Silva, al verle por primera vez, consistió en encontrale "algo mudado de los defectos que sacó de manos de estos hombres", reconociendóle muy buenas partes naturales y muchas virtudes de Príncipe: "pero su educación fué tan bárbara que no se han descubierto"; al mismo tiempo el Embajador comunicaba a Felipe II una notícia fatal para el êxito de las negociaciones del matrimonio: "Escrita ésta, he sabido que el mal del Rey es de la qualidad de los que tuvo en la niñez, y que no se tiene en poco aunque le encubran; cúranle de noche y hanse hecho juntas secretas de muchos cirujanos de Lisboa." (Carta de D. Juan de Silva para Filipe II, em 20 de Março de 1576)

Con fecha 6 de marzo, días antes de este despacho, había escrito ya Don Juan de Silva al Soberano que creía observar "que todos sospechan que V. Magd tiene poca satisfacción de la persona del rrey y que aquí bate la dificultad", añadiendo después: "Aunque V. Magd no me avía mandado expresamente examinar la sospecha que se ha tenido de la inhabilidad del rrey para tener hijos y la plática sea indeçente, es todavía este artículo tan importante que no quiero dexar de apuntar lo que me parece... Cosa es averiguada no aver el rrey hecho prueba de sí ni intentádolo jamás. Muestra demás desto tanto odío a las mujeres, que aparta los ojos dellas, y si una dama le sirve la copa, busca como tomarla sin tocarle la mano; e jugando un día entero a las cañas, no levanta la cabeza a las ventanas. El aspecto es de hombre muy sano y antes fuerte que defectuoso: Dizen todavía qe tiene en las piernas una frialdad muy grande, y assí las abriga mucho; pero muy buena fuerza debe tener en ellas, porque haze grandes ejercicios a la gineta. Criáronle los de la Compañia afeándole el trato con las mujeres como un pecado de eregia, y bevió aquella doctrina de manos que no haze diferencia de lo que es gentileza y virtud a lo que es ofensa de Dios; y assí sospecho que podría no aver en él este defecto que se teme. - No le parezca a V. Magd que me anticipo a escribir particularidades, aviendo estado aquí tan pocos días, porque todo lo que aquí digo es cosa pública y manifiesta, ni pienso que en mucho tiempo se podrá hazer más averiguación que ésta.»

Como D. Sebastião apenas aceitou tratar do seu eventual casamento quando resolveu passar a África, escreveu Pinheiro Chagas que ele «só decidiu a aceitar mulher quando se preparava para a deixar viúva»! (p. 299)

Foram três os pontos que o embaixador português em Espanha apresentou a Filipe II com vista à conferência de Guadalupe: 1) A realização da visita; 2) o casamento com a infanta Isabel Clara Eugénia; 3) O apoio à expedição a África para a conquista de Larache.

«Deseoso Don Felipe de honrar a su sobrino, dióle desde el primer día el tratamiento de Majestad, título no usado hasta entonces en Portugal y comió con él un día, compartiendo en otro la mesa de Don Sebastián; las conferencias fueran largas, y a ellas  concurrieron el Duque de Alba, con el Prior Don Antonio de Toledo a veces, y Don Cristóbal de Moura, siempre, como intérprete entre ambos Monarcas, aficionándose de tal suerte Don Sebastián al genio y modo de pensar del Gran Don Fernando de Toledo, que, cuando estaba desocupado, llamáble a menudo para conversar acerca de cosas de guerra.» (p. 317)

«Fué el Duque de Alba quien exigió los contingentes extranjeros. Los portugueses peleaban heroicamente en África y en la India cuando se trataba de asaltos o defensas de ciudades y plazas fuertes. Nadie les excedía en aquellas empresas, pero hacía un siglo que no se batían en campo abierto. Los moros, después de la unificación política de Marruecos, conocían el manejo de todas las armas, y, manteniendo la táctica especial de su caballería, habían sido iniciados en los movimientos de la guerra moderna por instructores cristianos, contratados o renegados. No bastaba, pues, la bravura; era indispensable la presencia de capitanes que tuvieran práctica, de veteranos formados en otras campañas para que sirvieran de apoyo a los soldados bisoños. De aquí las pretensiones de Felipe II de que se reclutasen seis mil alemanes y dos mil italianos, pagándoles buenos sueldos.» (p. 323)

«Justamente cuando en el ánimo del hijo de Carlos V batallaban tan generosos sentimientos, vino a descubrirse en París un documento emanado de los Estados Generales de los Países Bajos y dirigido al Rey Don Sebastián, por el que se pedía a éste su intervención para que Filipe II revocase los poderes a Don Juan de Austria, nombrando Gobernador y Capitán General de Flandres al Archiduque Matías, sobre la base de pacificación de Gante. Este importante documento daba lugar a suponer (como después veremos era cierto) culpable inteligencia entre el Rey de Portugal y los rebeldes flamencos, por lo que fué muy grande el disgusto que Felipe II sintió al leerlo, aunque por el momento decidiera disimular sus impresiones.» (p. 350)

Ao saber da decisão de D. Sebastião de efectuar a expedição a África, D. Catarina, que já se encontrava bastante doente, morreu alguns dias depois desta notícia (12 de Fevereiro de 1578).

Perante a obstinação de D. Sebastião, resolveu Filipe II enviar um Grande de Espanha para lhe manifestar a sua hostilidade ao projecto que então estava em marcha.  Foi enviado D. Juan de la Cerda, duque de Medinaceli, figura notabilíssima, para assitir às cerimónias fúnebres de D. Catarina e também para se avistar com o rei português. Um do aspectos da missão do duque referia-se à sucessão de Portugal. Trata-se do primeiro documento em que Filipe II, por meio do secretário Zayas, tratou de tão importante assunto. Escreve o embaixador espanhol D. Juan de Silva: «la conveniencia de que la persona que visitara a Don Sebastián le dijera cuánto aventuraba, no teniendo hijos, en meter su persona en tanto peligro; "porque nos conviene mostrarnos desinteresados de la sucesión deste Reino que los mismos portugueses tienem por nuestra infaliblemente si el Rey faltara sin hijos, a quien dicen que ha de suceder el Cardenal Infante de quien S. M. es heredero forzoso como más propinquo del Rey Don Manuel"» (p. 367)

«El problema de la sucesión del Reino era, en efecto, de tal magnitud, que el propio Don Sebastián llevó el caso al Consejo, donde todos votaron al Cardenal por sucesor; pero al tratar del segundo heredero se dividieron las opiniones, queriendo unos que se escogiera ya y otros que non se privase a Don Enrique de la libertad de hacerlo, quedando aplazado el asunto para nueva reunión. Esta segunda reunión no tuvo nunca lugar, pues Don Sebastián, de acuerdo con Pedro de Alcaçova, que conocía bien el natural orgulloso del Rey, incompatible con los derechos de un sucesor reconocido, se negó en absoluto a volver a tratar del asunto, y así quedó en el aire tan delicada materia.» (p. 368)

O duque de Medinaceli chegou a Lisboa a 7 de Abril, encontrando-se depois com D. Sebastião. Pediu-lhe em nome de Filipe II que suspendesse a expedição ou pelo menos que não fosse ele em pessoa. Com argumentos já utilizados, D. Sebastião recusou em absoluto as pretensões do tio. Em 15 de Abril, D. Sebastião escreveu a Filipe II insistindo na necessidade de ir pessoalmente a África e dando-lhe graças pelos seus bons ofícios. Em 22, o rei português concedeu segunda audiência ao duque de Medinaceli, que nada acescentou à primeira. Em 19, celebraram-se no Mosteiro de Belém as exéquias de D. Catarina. 

Os alemães que vieram para participar na expedição (acompanhados das mulheres, amantes e filhos) eram calvinistas e luteranos, o que causou profundo assombro em Lisboa. Para pelejar em África contra os mouros serviam a D. Sebastião tanto os católicos como os protestantes, ou até o dinheiro dos cristãos novos, o que não se coadunava com a sua defesa da fé católica. 

Uma carta da Junta Revolucionária dos Países Baixos (p. 373) ao rei de Portugal, pedindo-lhe que intercedesse junto de Filipe II para que este livrasse os ditos países dos agravos de Espanha causou a pior impressão no monarca espanhol que, no entanto, disse ao embaixador D. Juan de Silva que se ignorasse a carta.

A expedição a Alcácer-Quibir já foi tratada com algum detalhe em posts anteriores. Convém, contudo, registar algumas notas.

O poderoso Abdel-Malik (Muley Moluco) fizera já várias tentativas para que D. Sebastião o deixasse em paz. Queria agora, enquanto senhor dos reinos de Fez e de Marrocos e depois de todas as atribulações que sofrera, uma vida de tranquilidade e sossego. Por isso transmitira a D. Duarte de Meneses, governador de Tânger, a sua incompreensão pelo facto de D. Sebastião se ter aliado a Muley Mohamed, seu sobrinho, que era tão mouro como ele e inimigo dos cristãos, e ainda por cima não tinha dignidade real pois era filho de uma escrava negra. Por outro lado, D. Sebastião não tinha de recear as tropas otomanas que já não constituíam um perigo. Para estabelecer uma paz duradoura, Abdel-Malik oferecia ao rei de Portugal três fortalezas em África. D. Duarte de Meneses, por ordem de D. Sebastião, considerou as propostas inaceitáveis. Nestas condições, Abdel-Malik dirigiu-se a Filipe II pedindo a sua intervenção. Ele (Abdel-Malik) não consentiria os turcos na Berbéria nem daria ao Sultão qualquer lugar no seu Império, pelo que os reinos da Península estavam seguros contra qualquer ataque otomano. E estava mesmo pronto para auxiliar Filipe II caso este quisesse empreender a conquista de Argel. 

O Rei Católico fez saber ao seu sobrinho que considerava aceitáveis as propostas do soberano marroquino, não compreendendo porque D. Sebastião persistia em ajudar um rei mouro vencido que sempre fora inimigo dos portugueses. Mas o rei de Portugal manteve-se surdo às objecções do tio, invocando falsos pretextos para continuar a preparação da expedição. Abdel-Malik escreveu então directamente a D. Sebastião demonstrando-lhe que era o verdadeiro soberano daquelas terras e que estava disposto a enviar-lhe mensageiros para tratar do assunto. D. Sebastião nem sequer respondeu, pois o que realmente pretendia era um confronto com o Moluco que era um famoso guerreiro que ele pretendia vencer para sua glória. 

A questão do governo durante a sua ausência em África não preocupou muito D. Sebastião. Nem chegou a oferecê-lo ao cardeal D. Henrique com quem andava desavindo, ao contrário do que afirmam alguns historiadores. Escreveu-lhe apenas uma carta em que declarou não querer sobrecarregá-lo com esse trabalho, uma vez que se encontrava adoentado. Por isso, nomeou para o efeito o arcebispo de Lisboa, Pedro de Alcáçova Carneiro, Francisco de Sá e D. João de Mascarenhas. 

Entretanto, começaram a chegar a Lisboa os soldados estrangeiros, alemães, flamengos, italianos e espanhóis que provocaram grande animação mas também confrontos na capital. E até mortos e feridos. D. Sebastião não era muito popular entre os portugueses. Fora O Desejado antes de nascer e depositaram nele muitas esperanças mas a sua conduta não era de molde a entusiasmar o povo. Contudo, nas vésperas da expedição foi suscitado um entusiasmo com a partida, ainda que o alistamento forçado de todos os jovens e homens válidos para a guerra provocasse descontentamento, especialmente na província, que fornecia o maior contingente. Mas D. Sebastião precisava de tropas, pois a ajuda de Filipe II e os soldados que contratara eram manifestamente insuficientes como se veio a provar.

A armada de D. Sebastião saiu de Lagos em 27 de Junho de 1578 e chegou a Cádiz a 28, onde o rei foi recebido com todas as honras, aí permanecendo até 7 de Julho. Nesta data, em a armada zarpou de manhã para Tânger, onde chegou à meia-noite. Muley Xeque, filho de Muley Mohamed, foi a bordo cumprimentar o soberano, tendo o pai, que já se contrava em Tânger, saudado o monarca português no dia seguinte. 

No dia 11, D. Sebastião navegou para Arzila, tendo uma parte das tropas iniciado o percurso a pé, e chegou no dia seguinte àquela cidade. O desembarque do exército começou no dia 14 e terminou no dia 16. O rei poderia ter conquistado facilmente Larache por mar, mas insistiu que o faria a partir de terra, o que não passava de uma falso pretexto. O verdadeiro, e único, objectivo de D. Sebastião era confrontar-se com Abdel-Malik, conhecido por ser um valoroso guerreiro, mas não podia confessá-lo abertamente.

Assim, decidiu marchar para Alcácer-Quibir, esperando encontrar Abdel-Malik (o Moluco) no caminho. Em carta a Filipe II, Juan de Silva, embaixador espanhol em Lisboa e que acompanhava a expedição, escreve que o Moluco enviou um judeu de Tetuão para dizer a D. Sebastião que entregava aquela cidade, Larache e também o cabo de Gué com vista a travar o início das hostilidades. E mais: que o alcaide Alcácer-Quibir dispunha de poderes para negociar. Mas o rei impediu qualquer negociação e procurou ocultar dos seus próximos aquela proposta de paz. 

Entretanto começavam a escassear os víveres e as tropas passavam fome, sendo difícil o reabastecimento. E havia confusão nas tropas. O início da marcha foi marcado para o dia 29 mas devido a novas indicações sobre o forte exército do Moluco, D. Sebastião, desta vez pressionado mesmo pelos seus mais íntimos, admitiu regressar a Arzila. Todavia a armada portuguesa já havia abandonado a cidade, o que, intimamente, só agradou a D. Sebastião, visto a única solução ser prosseguir na caminhada. 

O capitão espanhol Francisco Aldana, que se encontrava ao serviço da expedição, entregou a D. Sebastião uma carta do duque de Alba e o elmo com que Carlos Quinto entrara vitorioso em Tunis. O rei levava também a espada de D. Afonso Henriques, que havia requisitado à igreja de Santa Cruz de Coimbra, mas que foi, providencialmente, esquecida na embarcação real, tendo sido assim evitada a sua perda. Reiniciou-se a marcha no dia 1 de Agosto e D. Sebastião decidiu travar a batalha no dia 4. Muley Mohamed, que dispunha de informações confidenciais dos seus fiéis que permaneciam em Marrocos, tentou impedir o rei, pois sabia que o Moluco estava gravemente doente (talvez tivese sido envenenado) e que após a sua  morte seria muito mais fácil derrotar o exército marroquino. É claro que D. Sebastião não lhe deu ouvidos, pois o que ele queria era derrotar o Xerife vivo, o resto não lhe importava.

Sobre a batalha, a morte do rei, a sua sepultura, transferência do corpo para Ceuta e trasladação para Lisboa já se comentou em posts anteriores. Em 1582, tendo Filipe II decidido essa trasladação, a cargo do duque de Medina Sidónia, D. Álvaro Pérez de Guzmán, o corpo chegou a Faro. Daí o cortejo passou por Tavira e Beja tendo chegado a Évora no dia 9 de Dezembro, onde foi recebido com grande solenidade pelo arcebispo, D. Teotónio de Bragança. Na manhã do dia 11 seguiu o féretro para Lisboa, onde o corpo recebeu sepultura no Mosteiro de Santa Maria de Belém, com a presença de Filipe II e do cardeal arquiduque Alberto de Áustria.

A batalha de Alcácer-Quibir ficou conhecida na história de Marrocos por "Batalha dos Três Reis", já que nela morreram D. Sebastião, Muley Mohamed (que se afogara ao fugir do campo de batalha) que fora destronado por Abdel-Malik e o próprio Abel-Malik.

Apesar dos maus presságios em Lisboa, a notícia da tragédia só foi confirmada por uma carta confusa de D. Leónis Pereira, capitão de Ceuta, enviada a Pedro de Alcáçova, e imediatamente se reuniram os governadores em Conselho. Mas ainda se ignorava a extensão do desastre ou se o rei estava vivo ou morto. Os governadores chamaram secretamente o cardeal D. Henrique, herdeiro presuntivo do trono, que se encontrava em Alcobaça, para que se encarregasse do governo, até que se recebessem notícias a confirmar a morte de D. Sebastião. Apesar da confidencialidade, a notícia rapidamente se espalhou por Lisboa e pelo país, provocando o maior pânico e a maior consternação. Mas só a 24 chegaram cartas confirmando a derrota, decidindo então o cardeal e os ministros dar conta dela à população. A notícia chegou a Madrid no dia 10 de Agosto, através de um correio despachado pelo duque de Medina Sidónia, encontrando-se Filipe II no Escorial. 

Porque este texto já vai demasiado longo, não referirei toda a acção diplomática de Filipe II no sentido de concretizar a velha ambição de ligar a Espanha a Portugal sob o mesmo soberano, já que D. Henrique estava velho, além de ser cardeal (embora o papa o pudesse dispensar dos votos, como fez ao cardeal arquiduque Alberto). 

As dúvidas sobre a morte de D. Sebastião, também motivadas pela fuga de um jovem cavaleiro português (Diogo de Melo, segundo Frei Bernardo da Cruz) que escapara da batalha e se refugiara em Arzila fazendo-se passar pelo rei para lhe abrirem as portas (engano logo desfeito), alimentaram, até hoje, a lenda do "Sebastianismo". Durante o reinado de D. Henrique, os patriotas permaneceram na expectativa. Mas depois das Cortes de Tomar e da proclamação de Filipe II ressurgiu com ímpeto a ideia de que o monarca vencido em Alcácer-Quibir continuava vivo. Uma ideia baseada nos escritos proféticos dos sapateiros Simão Gomes e Gonçalo Anes de Bandarra, que ganharam grande popularidade. Durante anos apareceram quatro falsos D. Sebastião, conforme narrado em post anterior.

«La figura de Don Sebastián, no obstante la corta duración de su reinado efectivo, ha sido la predilecta de cronistas, historiadores y comentariastas, hasta el punto de poder afirmarse que ningún Rey portugués mereció nunca tanta atención y estudio por parte de investigadores y eruditos. » (p. 431)

FIQUEMOS POR AQUI, que já muito se escreveu. Este livro e o do professor Queiroz Velloso, são fundamentais para o conhecimento de D. Sebastião, sobre quem nunca tudo terá sido escrito. Um rei que pela sua alucinação, vaidade, ambição e teimosia arrastou o pais para uma das maiores tragédias da sua história mas que, apesar de tudo, continua a ser objecto e mesmo de veneração por parte dos portugueses.

sábado, 26 de outubro de 2024

D. SEBASTIÃO E A CONSANGUINIDADE

No seu livro El-Rei Dom Sebastião - Ensaio Biológico, de 1972, Joaquim de Moura-Relvas ocupa-se dos problemas de consanguinidade, dos antecedentes hereditários de D. Sebastião e dos seus aspectos psíquicos e somáticos.

Começa o autor por se referir às doenças hereditárias e ao papel dos genes, que podem ser recessivos ou dominantes. E também letais ou subletais. Não cabe aqui essa discriminação, mas pode ler-se na página 6: «Duma massa enorme de observações resulta que a consanguinidade não produz taras, mas também não cria qualidades.»

Refere depois o autor a endogamia da Casa de Áustria e da Casa de Avis. Não vamos desenvolver a árvore genealógica de D. Sebastião mas recordar apenas a parentela mais próxima. O rei era filho do infante D. João Manuel, que por sua vez era filho de D. João III e de D. Catarina de Áustria, e da infanta D. Joana, que era filha de Carlos Quinto e de D. Isabel de Portugal. D. Catarina de Áustria era irmã de Carlos Quinto. D. João III e D. Isabel de Portugal eram filhos de D. Manuel I e de Maria de Aragão e Castela, esta filha de Isabel a Católica, que era mãe de Joana a Louca e avó de Carlos Quinto e de D. Catarina de Áustria. A infanta D. Joana era irmã de Filipe II (que era tio de D. Sebastião) casado com D. Maria Manuela, filha de D. João III. O infante D. Carlos (que Schiller imortalizou romanticamente num célebre poema dramático) era filho de Filipe II e de D. Maria Manuela e primo de D. Sebastião.

Podíamos recuar várias gerações mas fiquemos por aqui. Houve sempre a preocupação de casar os príncipes portugueses com princesas espanholas (mesmo quando ainda não havia Espanha, mas tão só Castela e Aragão) e essa política atingiu o máximo expoente no tempo de Carlos Quinto.

À intensidade da endogamia correspondeu a intensidade da mortalidade infantil. Não vale a pena mencionar aqui o número imenso de príncipes nado-mortos ou mortos em tenra idade. 

Conclusões do autor (p. 15):

«1) A consanguinidade não pode ser afastada como elemento etiológico da elevada mortalidade infantil registada. É empiricamente mais provável que na endogamia existam genes letais e subletais idênticos, comuns aos dois progenitores, do que exogamicamente. 

2) A fronte olímpica, patente em D. João III. no retrato de Viena, no retrato de D. Isabel de Portugal (filha de D. João I e duquesa de Borgonha pelo seu casamento com Filipe o Bom), no Museu de Gand, e na gravura de D. Sebastião, da autoria de Jerónimo Cock, indicia heredo-sífilis. 

3) A higiene infantil não existia na época a que nos reportamos.»

Prosseguindo com os antecedentes hereditários, Joaquim de Moura-Relvas escreve: «São bem conhecidos o temperamento exaltado de D. Pedro I de Portugal, as crises depressivas do nosso rei D. Duarte, o temperamento exaltado de seu filho o Condestável D. Fernando, o tipo psíquico ciclóide de seu outro filho D. Afonso V, o temperamento amável, bondoso, de D. João Manuel (pai de D. Sebastião), o temperamento exaltado de D. Sebastião, a lembrar o do trisavô, Condestável D. Fernando, a esquizofrenia de Joana a Louca, o esquizoidismo de seu bisneto o príncipe D. Carlos (filho de Filipe II e da nossa infanta D. Maria Manuela), etc. O caso da infanta Isabel, tia de D. Manuel I, filha do infante D. João, e rainha de Castela pelo seu casamento com D. João II de Castela, é tratado por Pfandl em termos inaceitáveis, como veremos.»

O autor continua a sua dissertação sobre os males destas famílias, destacando a gota e a diabetes de Carlos Quinto, a gota de Filipe II, o esquizoidismo mas não esquizofrenia de D. Sebastião, que era também muito provavelmente diabético e mesmo epiléptico até certa idade.

Analisando detalhadamente muitos reis e príncipes, o autor chega ao infante D. Carlos e a D. Sebastião, que tinham uma certa parecença fisionómica. Nas páginas 45 a 50, há algumas referências interessantes. D. Carlos, como D. Sebastião, não suportava o vinho. D. Sebastião comia com certa sofreguidão mas também bebia muita água. D. Carlos era um glutão desmedido, com tal bulimia que, mal acabava uma refeição, já estava a pensar na seguinte.

O infante Dom Carlos tinha a cabeça grande, apoiada num corpo pequeno, desajeitado e assimétrico, com ombro direito descaído, perna direita mais curta que a do outro lado, escoliótico, com dificuldade de elocução de certas palavras de modo que aos dezanove anos ainda não pronunciava bem os LL e os RR. 

«Como D. Maria Manuela [mulher de Filipe II] ainda não era núbil à data do casamento e era preciso vir um herdeiro, submeteram-na a toda a casta de purgantes e sangrias, conforme o costume da época. Apesar destes tratamentos bárbaros e contraproducentes, a princesa das Astúrias acabou por engravidar. Com efeito, em 1545, dois anos depois do enlace matrimonial, iniciou-se o trabalho de parto. Parto longo, difícil, prolongado por vários dias. A princesa estava emagrecida, sem forças, exausta. [...] Por fim, lá saiu um bébé exíguo, que nem forças tinha para chorar, com os olhos teimosamente fechados. [...] Assim nasceu D. Carlos, débil, ologofrénico e hemiparético. Quanto à mãe, infectada pelas sucessivas manipulações das parteiras durante vários dias, morreu de infecção puerperal no próprio dia do nascimento do filho.» (p. 47)

«D. Sebastião ora se absorvia no seu idealismo, ora se tornava muito mexido sob o império da hiperexcitabilidade e queria ser sempre o primeiro em tudo o que respeitasse a exercícios físicos, fosse nas touradas ou nos torneios. A vida sedentária da capital era-lhe, portanto, enfadonha.» (p. 62) 

«Jerónimo de Mendonça afirma que D. Sebastião "era um príncipe em que nunca se conheceu nem quase se suspeitou vício algum, tanto que por sua pureza, não lhe podendo dizer outra coisa, se lhe arguia ser algo tanto afeiçoado à montaria, cujo exercício, além de ser muito proveitoso a qualquer Príncipe para se exercitar nas coisas da Guerra, nunca lhe tirou as horas de despacho e de governo.» (p. 62)

Sobre a irritabilidade do monarca, conta-se que na conferência de Guadalupe, numa das reuniões em que Filipe II estava acompanhado pelo duque de Alba, e tendo-se este mostrado algo desfavorável às loucas fantasias da expedição a África, D. Sebastião lhe perguntou desabridamente "de que cor é o medo" ao que o general lhe terá respondido "da cor da prudência".

«No dia de S. João, em 24 de Junho de 1578, embarca D. Sebastião para a fatídica jornada. Uma multidão imensa o aclamou com entusiasmo inaudito. Da Junta Governativa para substituir o Rei na sua ausência não faz parte o Cardeal D. Henrique, que tinha ficado regente na primeira jornada de África. Diz o Autor Anónimo da Carta a um abade da Beira: "Os que ficaram governando em Portugal são: o Arcebispo de Lisboa D. João de Almeida, D. João de Mascarenhas, Francisco de Sá de Meneses, Pedro de Alcáçova, D. João Telo, Diogo Lopes de Sousa. Fica o sinete real em forma, fechado em uma arca com tantas chaves quantos são os governadores, e cada um tem a sua; quando querem assinar algum papel, vão todos à arca com grande cerimónia e tiram o sinete e o arcebispo imprime".» (p. 78)

«A maioria dos que partem vai alegre e confiante, mas os do outro partido, agora chefiado pelo Cardeal-Infante, depois da morte de D. Catarina, estão preocupados e muito deprimidos. D. Henrique, a expulsar as suas fezes diarreicas sanguinolentas de tuberculoso intestinal, é o símbolo do pessimismo do seu partido, vendo a Nação empobrecida e agora ainda mais, com as despesas militares. Só via desgraças para a Nação.» (p. 79)

O autor procede depois à descrição dos aspectos da batalha assinalados nas várias biografias.

«A morfologia de D. Sebastião tem sido tratada de modo incerto, sem bases científicas, por vezes embaciada pela emotividade e até pela paixão. [...] O material que temos á nossa disposição para análise positiva e estável consta duma gravura de J. Cock datada de 1561 e representando portanto D. Sebastião aos 7 anos, dum retrato de Cristóvão de Morais, datado de 1565, existente no Mosteiro das Descalzas Reales de Madrid (fundada por D. Joana de Castela, mãe de D. Sebastião), representando o monarca aos 11 anos e o conhecido retrato do Museu Nacional de Arte Antiga, da autoria do mesmo pintor, mostrando o rei por volta dos 17-18 anos.» (p. 99) [Segundo o autor, a gravura de Cock pertence à colecção do conde de Penha Longa]

Sabemos que D. Sebastião vivia obcecado pela castidade e pelo temor do pecado sexual, segundo dizem os livros. Mas o autor afirma várias vezes nesta obra que o rei não tinha defeito e tinha até órgãos sexuais bastante desenvolvidos, como se nota nos retratos. Apenas nos retratos pois, segundo é aceite, jamais ele se despiu diante de alguém, com uma possível excepção para os médicos, e mesmo assim com reservas.

«Se D. Sebastião fosse casto por defeito constitucional, a sua personalidade teria sido totalmente diferente. Uma insuficiência, mesmo parcial, das glândulas genitais conduz ao seguinte quadro clinico: membros inferiores excessivamente longos; órgãos sexuais pouco desenvolvidos; cabelos abundantes; pele fina; palidez; músculos hipotróficos e hipotónicos; apatia; depressão neuropsíquica; tendência para o suicídio; inteligência conservada. Muito rijo de músculos, de boa cor, com órgãos genitais externos desenvolvidos e excitação neuropsíquica bem marcada, D. Sebastião não tinha sinais somáticos nem psíquicos de hipogenitalismo. Se fosse um hipogenital não pediria aos padres que rezassem para se conservar casto e ter-se-ia limitado a exprimir o desejo de propagar a religião.» (p. 106) O autor insiste também que D. Sebastião não era misógino nem insensível aos encantos femininos, o que contradiz as afirmações de quase todos os biógrafos sobre a misoginia do rei, baseadas em episódios da sua vida.

Ainda: «Está averiguado que D. Sebastião foi portador, a partir dos 11 anos, de um corrimento uretral, com fases de agravamento provocadas por excesso de alimentação e de exercícios físicos, em especial de equitação, e com fases de remissão, desde que se moderasse no comer e se abstivesse de exercícios físicos. Não é plausível que fosse uma uretrite blenorrágica, porque a prática da equitação agravava somente o corrimento em outras complicações ao passo que, tratando-se de uma blenorragia esta agravar-se-ia com orquite e outras perturbações que nunca foram referidas. Tratar-se-ia portante duma uretrite banal, que se tornou crónica por se instalar num terreno diabético. Mas os cronistas e documentos da época falam também de outras perdas, descritas em termos de se dever pensar m espermatorreia. Como D. Sebastião foi fisicamente muito precoce, é provável que aos 11 anos já fosse viril e nestas condições obrigava a natureza a explodir sob a forma de poluções que não sendo salutares, também não prejudicam a saúde, em regra. Todavia, Marañon considera que a espermatorreia foi prejudicial a D. Sebastião: "Padecia desde muy temprano de uma rebeldíssima espermatorreia que le originaba vahidos, gran flojedad en las piernas y otos transtornos." Em conclusão, D. Sebastião porque era casto e ardente, tinha espermatorreia e, porque era diabético, tornou cronica uma uretrite banal.» (p. 108)

Não refere o autor que a blenorragia é uma infecção sexualmente transmissível, apenas contagiada por contactos sexuais. Admiti-la, significaria que o rei tivesse relações sexuais com mulheres (que ele abominava) ou com homens, o que sendo possível (o professor Harold Johnson afirma-o) se afigura um tanto improvável, uma vez que o monarca era amplamente escrutinado. É certo que D. Sebastião se afastava por vezes largo tempo do convívio dos seus próximos, em caçadas ou passeios solitários, como acontecia muitas vezes quando se encontrava em Sintra, ou mesmo em Almeirim. Não seria impossível um contacto ocasional, mas nunca o saberemos.

Neste livro, além de alguma confusão de nomes, constatam-se afirmações precipitadas, contraditórias e até erradas que o leitor verificará. Há, por outro lado, uma preocupação de "normalizar" D. Sebastião mesmo nos aspectos mais controversos da sua vida. Dos muitos estudos sobre a sua figura constata-se que o rei era tudo menos uma pessoa "normal" mesmo para os padrões da época. A satisfação das suas vontades prejudicou gravemente o reino, terminando no desastre de Alcácer-Quibir. Depois da batalha, o país ficou exangue, não só de riqueza mas de homens. E perdeu-se, praticamente, a independência, ainda que Portugal nunca tivesse sido absorvido por Espanha. Filipe II foi cuidadoso nesse aspecto, os seus descendentes menos, caso contrário talvez não tivesse havido 1640.

Creio que foram aqui anotados alguns dos aspectos mais significativos do livro de Joaquim Moura-Relvas.


terça-feira, 22 de outubro de 2024

D. SEBASTIÃO, A PRIMEIRA BIOGRAFIA ERUDITA MODERNA

Deve-se ao prof. Queiroz Velloso a primeira biografia erudita de D. Sebastião publicada no século passado (1935).

O autor procedeu a uma notável investigação no Arquivo Geral de Simancas, onde repousam os documentos essenciais para o estudo da história de Castela e de Portugal, e também da Europa, nos séculos XVI, XVII e XVIII. 

Como estou a ler ou a reler todos os livros sobre D. Sebastião que possuo na minha biblioteca, e como os factos naturalmente se repetem, anotarei apenas alguns dos aspectos que mais me interessaram na presente obra, tentando evitar repetir o que já comentei em posts anteriores.

Importa realçar que Carlos Quinto, já retirado no Mosteiro de Yuste, não se entregava apenas à meditação mas continuava a intervir nos negócios do mundo nem sempre discretamente. No caso que se refere a missão foi realmente secreta. O imperador enviou em 1557 o Padre Francisco de Borja, Superior Geral da Companhia de Jesus, a Lisboa, em missão secreta, para transmitir uma mensagem à rainha D. Catarina. Para disfarçar, o embaixador oficioso deveria visitar algumas casas e colégios da Companhia no nosso país. Os objectos da missão eram os seguintes: 1) A sucessão do príncipe D. Carlos; 2) O defeito que tinha a bula de dispensação de parentesco entre o rei D. Manuel e sua segunda esposa - como em tempo lhe revelara, sob o maior sigilo, o cardeal de Viseu (D. Miguel da Silva) - pois se, na realidade, a bula fosse deficiente, o impedimento abrangeria os descendentes de D. João III, inabilitando-os para a coroa, à qual poderia, nesse caso, ser chamada a infanta D. Maria, filha da última esposo do rei venturoso; 3) averiguar se o embaixador da França teria proposto o enlace de D. Sebastião com uma filha do rei cristianíssimo, devendo lembrar-se a D. Catarina que seria muito mais conveniente o matrimónio do neto com uma filha dos reis da Bohemia, que podia ser trazida para Portugal e a sua educação confiada à mesma rainha, que tanto pelo pai, como pela mãe, era tia-avó dessa princesa; 4) Activar a saída da infanta D. Maria para Castela, onde a mãe a esperava com impaciência, o que traria ainda a vantagem de cortar quaisquer veleidades que as revelações do cardeal de Viseu, provavelmente conhecidas pela infanta, podiam ter despertado no seu espírito. 

Para garantir a confidencialidade, o imperador combinou uma cifra com Francisco de Borja. A intenção de Carlos Quinto era evidente. Pretendia utilizar a irmã D. Catarina no sentido de criar condições para uma eventual sucessão de seu neto D. Carlos ao trono de Portugal, por falecimento sem filhos (maxime sem filhos varões) de D. Sebastião. Nesta altura ainda D. Carlos não estava completamente louco. Mas D. Catarina, apesar de representar em Portugal o "partido espanhol", não achou oportuno que se publicasse uma Pragmática sobre essa sucessão, o que o imperador compreendeu como explica numa carta a seu filho Filipe II: «sin decir que se hiciese otra diligencia, pareciéndome que en cosas desta calidad es peor quanto mas se tratan». Carlos Quinto sabia bem, por experiência própria,  que os negócios de Estado não se podem, muitas vezes, resolver com rapidez.  E a infanta D. Maria também não se transferiu para Castela, acabando por morrer em Portugal. (A partir da p. 27)

Sobre o Concílio de Trento e Portugal: 

«Em 4 de Dezembro de 1563 - já D. Catarina resignara - efectuou-se a última sessão, promulgando o papa, no dia 26 de Janeiro seguinte, a bula de confirmação dos decretos do Concílio. Em Portugal, foram admitidos e mandados observar sem restrição alguma, como era de esperar, por ser conjuntamente o cardeal-infante regente do reino e Legado a latere; foi até o único país católico, que não apresentou dúvidas.» (p. 53)

Devido às desavenças com o cardeal D. Henrique, D. António, Prior do Crato, ausentou-se ocultamente para Castela, resolvido não só a expor os seus ressentimentos, como a solicitar o patrocínio de Filipe II. a quem já em tempos se queixara do modo descaroável com que era tratado. Quer D. Henrique, quer D. Catarina não queriam que ele trocasse o hábito de clérigo (já era diácono) - e só fizera votos por obediência ao pai, o infante D. Luís - pelo da Ordem de São João de Jerusalém, a que pertencia. 

«Filipe II, tomando para si o papel de chefe da família real portuguesa, procurou congraçar estas desavenças; e além de escrever a D. Catarina e D. Henrique, em princípios de 1566 resolveu mandar a Lisboa uma pessoa da sua confiança para tratar directamente do assunto. O escolhido foi o português Cristóvão de Moura, comendador da Fuente del Moral na Ordem de Calatrava e gentil-homem de la boca do príncipe D. Carlos, que havendo acompanhado a princesa D. Joana, de quem era pajem, conseguira boa situação na corte espanhola, pela protecção do seu patrício, o Príncipe de Eboli, Rui Gomes da Silva, a cujo partido pertencia, mas sobretudo pela amizade que D. Joana lhe mostrou sempre, não só nomeando-o depois seu estribeiro mor, como escolhendo-o para testamenteiro.» (p. 73)

Cristóvão de Moura conseguiu que o cardeal não só concedesse ao Prior do Crato uma renda vitalícia e um importante subsídio para o pagamento das suas dívidas, mas se comprometesse a não lhe impor a aceitação da ordem de presbítero, até que Deus o inspirasse para o seu serviço. Só numa coisa se mantinha D. Henrique irredutível: não consentir que o sobrinho mudasse de hábito, temendo que D. António, tornado secular, aspirasse ao casamento. «O Prior do Crato voltou então para Portugal, donde estivera ausente mais de ano e meio; e a 8 de Setembro de 1566, escreveu de Lisboa a Filipe II uma afectuosíssima carta, reconhecendo-se mais obrigado que todos, e desejando-lhe longa vida e felicidades.» (p. 74) Só mais tarde D. António conseguiu trocar o hábito clerical pelo da Ordem de São João de Jerusalém, nesse tempo já denominada de Malta, por dispensa do papa Gregório XIII, com grande indignação do cardeal D. Henrique. Em 18 de Maio de 1574, escreveu o Prior do Crato ao rei católico, pedindo-lhe mercê de sua benção e autoridade, e confessando-se mais uma vez seu criado e vassalo. Como sabemos, em 1580, o duque de Alba, D. Fernando Álvarez de Toledo, em nome de Filipe II, derrotaria as tropas de D. António na batalha de Alcântara. São as reviravoltas da História.

«Outro facto ocorreu então, dentro da família real, que merece também referência. A duquesa de Parma, D. Margarida de Áustria, filha natural de Carlos Quinto, que governava os Estados da Flandres como representante de seu irmão, rogou-lhe, em 1563, que tratasse, junto da rainha D. Catarina e do regente, do casamento de seu filho, o príncipe Alexandre Farnésio - que tamanha fama viria a ganhar, pelos seus dotes militares - com a Senhora D. Maria, filha mais velha do infante D. Duarte e de D. Isabel de Bragança, e neta, portanto, do rei D. Manuel. Assumindo de bom grado o papel de chefe da família, que gostava de acentuar, Filipe II dirigiu as negociações, sendo o contrato antenupcial assinado em Madrid, a 14 de Março de 1565; foi procurador da princesa seu tio, D. Teotónio de Bragança. [...] D. Maria faleceu em 1577; seu filho primogénito, o príncipe Rainúncio, foi um dos pretendentes ao trono de Portugal, após a morte de D. Sebastião.» (p. 75)

«Em 20 de Janeiro de 1568 - justamente no dia em que completava catorze anos - tomou D. Sebastião conta do poder. Como a idade do rei era curta para levar o peso de tão dilatada monarquia, alguns historiadores explicam o facto por uma conspiração palaciana, promovida pela rainha D. Catarina - que assim queria pagar ao cunhado as dificuldades e embaraços, que ele levantara à sua regência - aliada com os jesuítas, cuja influência sobre o novo rei era tamanha, que podendo governar directamente, pela mão do seu pupilo, já podiam dispensar o cardeal-infante, tornado agora um instrumento inútil. Outros atribuem a emancipação política do rei ao seu desenvolvimento precoce e a instigações da rainha e do seu partido, que se aproveitaram das poucas simpatias que entre a nobreza e o alto clero tinha o cardeal, pela sua demasiada protecção aos jesuítas. A verdade é muito mais simples. D. Henrique entregou o governo ao sobrinho, logo que ele perfez catorze anos, porque assim o haviam deliberado as Cortes, em 1562, e assim o jurara o próprio cardeal, no mesmo dia em que tomou posse da regência.» (p. 84)

«Desde o ensino da leitura pelo Padre Amador Rebelo, mostrou D. Sebastião memória pronta e inteligência aguda. No estudo das Humanidades, com o Padre Luís Gonçalves da Câmara, como no das Matemáticas, que aprendeu com o célebre Pedro Nunes, os seus progressos foram rápidos. A sua instrução, apesar de terminada cedo, ao entrar na maioridade política era relativamente extensa. Descontando o costumado exagero dos cronistas - [...] - os documentos, que nos deixou escritos, revelam sem dúvida os variados conhecimentos que possuía; mas também, aqui e além, uma estranha confusão de ideias, uma obscuridade de pensamento, que fazem de certos períodos verdadeiros enigmas. E quási todos ressumantes de vaidade - como notou o perspicaz embaixador espanhol D. João da Silva - a infantil vaidade dum autor, que julga irrespondíveis os seus argumentos e confia absolutamente no poder de sugestão das suas palavras.» (pp. 89-90)

«O Padre Luís Gonçalves da Câmara também estivera em Marrocos. Pensionista no Colégio de Santa Bárbara, da Universidade de Paris, onde realizara sólidos estudos humanísticos, estava cursando teologia na Universidade de Coimbra, quando em 1545, com vinte e sete anos de idade, entrou para a Companhia de Jesus, animado por Pedro Fabro, a quem conhecera em Paris, e que no ano anterior viera a Portugal, numa importante missão de Inácio de Loyola junto de D. João III, aproveitando o enseja para visitar o Colégio de Coimbra. [...] A pedido do capitão mor de Ceuta, D. Afonso de Noronha, em Agosto de 1548, foram os Padres Luís Gonçalves da Câmara e João Nunes Barreto - que veio a ser patriarca da Etiópia - mandados a Tetuão, para conforto e consolo dos prisioneiros cristãos. Com tanta dedicação e carinho os tratava o Padre Luís Gonçalves, visitando-os nas masmorras, fortalecendo-os nas suas crises de desespero, procurando suavizar os penosíssimos trabalhos a que eram obrigados, que todo os cativos o adoravam. » (p. 92) [Neste parágrafo, o autor recorre ao Padre Baltasar Teles (Chronica da Companhia de Jesu na Provincia de Portugal) e a Francisco Rodrigues S.J. (História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal). O professor norte-americano Harold Johnson, em Dois Estudos Polémicos, interpreta a palavra "consolo" num sentido muito amplo]

«Até tomar conta da governação do reino, D. Sebastião viveu sempre em companhia da avó. Mesmo quando o regente saía de Lisboa para Sintra ou Almeirim, e levava consigo o sobrinho, D. Catarina o acompanhava. Enquanto não completou sete anos, comia e dormia nos aposentos da rainha. Depois teve aposentos separados; mas todos os dias visitava a avó e com ela se demorava geralmente uma hora, ouvindo-lhe conselhos e, às vezes, repreensões, que o seu feitio voluntarioso e orgulhoso só por obrigação recebia. D. Catarina também, frequentemente, o procurava no seu quarto, sobretudo de manhã, "para ver se havia nelle, ou nos que lhe assistião, que advertir e emendar". (p. 93)

«Aos treze anos, no mosteiro da Madre de Deus, em Xabregas, durante a profissão de D. Maria de Meneses, perguntou-lhe a antiga dama da rainha D. Catarina o que queria, em dia tão solene, que ela pedisse ao seu Divino Esposo. Pedilhe que me faça seu Capitão - respondeu o rei. Era uma ideia fixa que se foi pouco a pouco transformando na orgulhosa convicção de estar predestinado para grandes coisas.» (pp. 96-7)

«Em 1566, quando o rei completou doze anos, Fr. Luiz de Montoya, alegando que a decrepitude o impedia de seguir a corte nas suas jornadas, ou porque "conhecia desprazer no Cardeal de elle servir o officio", como diz Fr. Manuel dos Santos [Historia Sebastica], pediu escusa do cargo de confessor. D. Henrique - cujo director espiritual já era o Padre Leão Henriques, também jesuíta, primo do Padre Luís Gonçalves da Câmara e seu condiscípulo no Colégio de Santa Bárbara, donde vieram ambos para Coimbra - empenhou-se junto da cunhada para que o mestre fosse ocupar o lugar vago. Rodeando-o só de pessoas da sua confiança, o cardeal-infante preparava o ambiente para a futura maioridade do rei, que não tardava já dois anos.» (p. 97)

«A influência, que o Padre Luís Gonçalves da Câmara exerceu em D. Sebastião, foi grande. Que dotes de sedução teria ele para se impor a uma criança tão impulsiva, tão voluntariosa, tão compenetrada do seu poder absoluto, tão orgulhosa de si mesmo? O confessor - como dizia o embaixador Antonio Tiepolo, que nos princípios de Janeiro de 1572 foi apresentar ao rei, em Almeirim, um pedido da Senhoria de Veneza - era muito feio, di brutta presenza, cego dum olho e muito gago.» (p. 99)

D. Sebastião era profundamente misógino. Não suportava a presença de mulheres a servi-lo, não permitia sequer que alguma lhe tocasse e nem erguia olhos para onde elas estivessem. Em carta para Filipe II, o embaixador espanhol em Portugal, D. João da Silva, em 6 de Março de 1576 (Arquivo Geral de Simancas) escreve: «Aunque V. Mg.d no me aia mandado expressamente examinar la sospecha que se a tenido de la inhabilidad del rrey para tener hijos y la platica sea indeçente, este todavia este articulo tan importante que no quiero dexar de apuntar lo que me parece. Cosa es averiguada no aver el rrey hecho prueva de si, ni intentandolo jamais. Muestra de mas desto tanto odio a las mujeres, que aparta los ojos dellas y si una dama le sirve la copa, busca como tomarla sin tocarle la mano; e jugando un dia entero a las cañas, no levanta la cabeza a las ventanas.» (p. 112)

«D. Sebastião não tinha apenas o lábio inferior pendente - feição típica da Casa de Áustria. Era acentuadamente assimétrico: todo o lado direito, braço e mão, perna e pé, mais compridos do que o esquerdo; e o ombro direito mais alto do que o outro. Por isso, ao andar, inclinava levemente para a esquerda. (Fundo Geral de Manuscritos, cod. nº 551, fol. 69 - Sinais com que nasceo El Rey Dom Sebastião). (p. 115)

«Foi por essa ocasião nomeado vice-rei da Índia D. Luís de Ataíde, que dera altas provas da sua energia, na África e sobretudo no Oriente. Espontânea ou sugerida, a escolha foi feliz. Quando, a 12 desse mês, se despedia do monarca, mandou-o D. Sebastião esperar na sala da audiência; e entrando no seu gabinete, pôs-se de joelhos, para que Deus o inspirasse, e escreveu estas palavras, que entregou ao novo vice-rei, como as supremas instruções que devia seguir, na administração e guarda daquele vasto império: "Fazey muita Christandade; Fazey justiça; Conquistay tudo quanto poderdes; Tiray a cobiça dos homens; Favorecey aos que pelejarem; Tende cuidado da minha fazenda; Para tudo isto vos dou o meu poder; Se o fizerdes assim muito bem, farvos-hey mercê; Se o fizerdes mal, mandarvos-hey castigar; Se alguns regimentos forem em contrario destas cousas, supponde, que me enganarão, e por isso não haja que vos estorve isto". Para o jovem rei, fazer muita Cristandade, isto é, converter muitos infiéis, era a principal obrigação dos monarcas portugueses, ainda que na obra das conversões se gastasse tudo o que a Índia rendesse. No ano seguinte, escrevendo a D. Luís de Ataíde, o que D. Sebastião mais instantemente lhe encomenda é que o informe de "quantos Baptismos solennes se fizerão". (p. 118)

Houve muitos projectos de casamento imaginados para D. Sebastião por D. Catarina, Filipe II ou o cardeal D. Henrique, que sucessivamente foram rejeitados ou protelados pelo monarca.Uma das noivas seria Margarida de Valois, que acabaria por casar com Henrique de Navarra, futuro Henrique IV de França; outra foi a arquiduquesa Isabel de Áustria, que desposaria Carlos IX de França. D. Sebastião aceitou por fim pedir ao tio a mão da infanta Isabel Clara Eugénia mas apenas para tentar obter de Filipe II apoio para a sua expedição em África. O rei católico deu uma resposta ambígua, D. Sebastião morreu e a infanta acabou por casar com seu primo, o cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, arcebispo de Toledo, entretanto dispensado do estado clerical pelo Papa.

Aquando da primeira expedição de D. Sebastião a África (Ceuta e Tânger) em 1574, que o rei preparou em sigilo, só comunicando ao reino depois da partida, D. Catarina ameaçou embarcar num navio para ir buscá-lo, levando o rei a regressar com receio do escândalo público.

A espantosa obsessão de realizar a segunda expedição a África para conquistar Larache, mas sobretudo para derrotar Abd al-Malik confirma a megalomania, a vaidade e a ambição do rei. Todos (salvo os costumados aduladores) tentaram demover D. Sebastião da arriscadíssima empresa mas a teimosia mórbida deste venceu todas as resistências. Impotente para impedir a loucura de semelhante aventura, Filipe II propôs que fosse o duque de Alba, general experimentado, a comandar a expedição. Mas o rei ficou ofendido e recusou liminarmente tal hipótese. Prefigurava-se um militar apto para tal empresa, D. Luís de Ataíde, que fora um extraordinário vice-rei da Índia e que, apesar do escasso número dos efectivos portugueses mais os espanhóis, italianos e flamengos face aos mouros, poderia ainda lograr uma vitória. Para descartar essa hipótese, D. Sebastião despachou-o novamente, e de forma rápida, para Índia, fazendo-o conde de Atouguia. E assumiu o comando das tropas.

A expedição estava, pelas mais elementares razões (desde logo no quente mês de Agosto) condenada à derrota. Mas o rei não se coibiu de fazer embarcar as pratas, louças, carruagens, animais e todo o aparato cerimonial da Corte, músicos e instrumentos, clérigos, o seu séquito e o dos nobres que o acompanhavam. Seriam mais os acompanhantes que os combatentes. A esquadra portuguesa poderia ter atacado Larache por mar, porém D. Sebastião recusou, já que a sua principal (e única) obsessão era derrotar Abd al-Malik em combate. O Xerife, que se encontrava doente e pretendia evitar a guerra, enviou-lhe mesmo uma interessante carta, propondo-se entregar-lhe a cidade de Larache, o que D. Sebastião, na sua autofilia, declinou, inventando uma série de mentiras com que procurava enganar os seus conselheiros. Encontrando-se, assim, em Arzila, resolveu avançar para Alcácer-Quibir, para dar luta aos marroquinos. Mais uma vez, Filipe II tentou dissuadi-lo mas o rei advertiu o tio que as armadas do sultão turco e de Abd al-Malik iriam destruir Portugal e a Andaluzia.

«Conta Luís de Torres de Lima, na sua obra Avisos do Ceo, Succesos de Portugal - e tanto o Padre Baião, como Barbosa Machado, relacionam o facto com aquela entrevista [dois homens que chegaram a Arzila e informaram D. Sebastião sobre o formidável exército de Abd al-Malik)] - que o barão de Alvito, D. Rodrigo Lobo, impressionado com a obstinação do monarca, procurara o Provincial da Ordem de S. Domingos, Fr. João da Silva, irmão do bispo do Porto, para lhe propor, como único remédio contra uma irreparável catástrofe: Padre, porque não prendemos a este homem, que nos deita a perder por seu gosto? He tarde Senhor, respondeu o dominicano. Melhor he tarde, que nunca, replicou D. Rodrigo Lobo. Não ha remedio, volveu Fr. João da Silva, porque anda cercado de lisonjeiros, e de validos, que o enganão, e não ha quem se atreva a dizerlhe a verdade, nem elle a admite. O barão de Alvito concluiu então, melancolicamente: Pois se assim he, Pater noster pelo Rey, pelo Reyno e pelos seus Vassalos. E os factos vieram, infelizmente, confirmar a fúnebre profecia.» (p. 334)

Foi realmente lamentável que os nobres mais esclarecidos não tivessem encarcerado o monarca enlouquecido, que já carregara o país com um enorme aumento de impostos de toda a natureza para organizar esta louca expedição, cuja derrota seria catastrófica. E, ainda por cima, haveria o rei de morrer na batalha, quando devia ter sido feito prisioneiro, para que os marroquinos lhe abatessem o orgulho. 

Como se disse, a expedição partiu carregada de coisas ricas e supérfluas que só contribuíram para embaraçar os combatentes. A desordem que se estabeleceu nas tropas portuguesas no campo de batalha foi grande quando soaram os primeiros tiros da artilharia marroquina, cuja existência a maioria dos soldados ignorava, uma parte dos quais havia sido arrancada aos campos e era manifestamente impreparada. Acresce a evidente incapacidade de D. Sebastião para comandar as tropas, já que se atribuía todas as competências e não delegava quaisquer poderes, ameaçando mesmo quem ousasse antecipar-se lhe na batalha. 

O confronto teve lugar em 4 de Agosto de 1578, e teve o resultado previsível. Segundo Queiroz Velloso, D. Sebastião, encontrado morto no dia seguinte, foi sepultado no dia 7 em casa de Abrém Sufiane, alcaide de Alcácer-Quibir.

Recorrendo às fontes, o autor menciona o nome de 203 pessoas importantes (todas portuguesas) que pereceram na refrega, onde morreram milhares de combatentes, portugueses e oriundos dos outros países que integravam a expedição. As perdas do lado marroquino foram inferiores às portuguesas. (p. 407)

O pagamento do resgate dos portugueses cativos abalou ainda mais o erário publico, já muito enfraquecido pelos gastos com a organização desta fatídica jornada.

O Xerife Abd el-Malik, já muito doente, morreu na sua liteira no campo de batalha. Muley Mohamed morreu ao fugir. D. Sebastião foi encontrado morto e despido no lugar do confronto. 

Sobre o jovem Muley Xeque, filho de Muley Mohamed, escreve o autor: «Logo que Martim Correia da Silva teve notícia da derrota de Alcácer-Quibir e da morte de Muley Mohamed, trouxe Muley Xeque para Lisboa. Pediu-lhe o cardeal-rei que recebesse em sua casa o pobre órfão; e aqui se manteve alguns anos, até que Filipe II o chamou a Madrid, onde se converteu ao cristianismo, em Novembro de 1593, tomando o nome de Filipe de África, em honra do padrinho D. Filipe (o futuro Filipe III), que foi seu padrinho de baptismo. Seguiu depois a carreira das armas. É este um dos infantes africanos, a que se referem os historiadores espanhóis.» (p. 308). Segundo o livro de Baños-García, que comentámos em post anterior, o padrinho teria sido o próprio Filipe II.

Não me alongarei, já que outros aspectos foram referidos em comentários anteriores sobre outras biografias do rei. Procurei salientar, e assim continuarei a fazer, as perspectivas específicas de cada autor.


segunda-feira, 14 de outubro de 2024

D. SEBASTIÃO, UMA VISÃO ESPANHOLA

Li D. Sebastião, Rei de Portugal, de Antonio Villacorta Baños-García, publicado originalmente Don Sebastián, em 2004, e na tradução portuguesa em 2006. Trata-se de uma abordagem que configura uma interpretação diametralmente oposta (ou quase) à desenvolvida no livro que anteriormente comentámos, A Saga do Rei Menino, de António Cândido Franco.

É um livro muito bem escrito, bem ordenado, especialmente documentado, que se propõe uma visão realista de D. Sebastião no contexto em que viveu, sem os delírios interpretativos de António Cândido Franco, pese embora a admiração, diria mesmo paixão, que este nutre pelo Desejado.

A obra segue naturalmente a cronologia dos factos, pelo que não repetiremos, nem tal seria possível, os eventos maiores da vida do Rei mas tão só anotaremos alguns aspectos salientados por Baños-García que nos pareceram interessantes.

O autor alude (p. 28) a um eventual relacionamento sentimental de D. Joana, irmã de Filipe II e mãe de D. Sebastião, com Francisco de Borja, Duque de Gandía e mais tarde Superior Geral da Companhia de Jesus (e, depois, até santo), embora considere que tal tem poucos vislumbres de verosimilhança.

O imperador Carlos Quinto, antes da sua decadência física, gozara sem temperança dos apetites carnais. Na p. 33: «escreveu-se que não despedia mulher sem a ter gozado três vezes.»

D. João de Áustria, era filho de Carlos Quinto e de Barbara Blomberg, talvez lavadeira ou cantora, talvez filha de um mercador de Ratisbona, e nasceu em 1547. Chamava-se inicialmente Jerónimo, porque o imperador casou Barbara com um soldado alemão de cavalaria chamado Jerónimo Pyramo Kegell. Foi educado em Espanha, ignorando no princípio a sua filiação, pela família de D. Luís Quijada, fidelíssimo servidor da família real.

Carlos Quinto morreu no Mosteiro de Yuste, para onde se havia retirado, em 21 de Setembro de 1558. Não assistiram ao passamento nem sua filha D. Joana, nem seu filho Filipe II, mas apenas o arcebispo de Toledo, alguns frades e quatro fidalgos. Terá dito antes de expirar: "Já é tempo". Não é feita qualquer referência no livro ao facto hoje muito conhecido que, meses antes de morrer, teria mandado celebrar e assistido às suas próprias exéquias.

D. João III morreu subitamente em 11 de Junho de 1557, portanto um ano antes do imperador.

É recorrente no livro a referência à vontade de Carlos Quinto no sentido de D. Sebastião não se casar com uma princesa francesa mas antes espanhola, para manter os casamentos da família na Península. E também o desejo de que o infante D. Carlos, seu neto (na altura tal situação ainda era concebível) pudesse, por morte de D. Sebastião sem filhos, herdar o trono de Portugal.

Tendo ficado D. Catarina como regente depois da morte de D. João III, em cumprimento de um "falso" testamento do marido, tinha D. Sebastião três anos, foi-lhe dado como aio o velho D. Aleixo de Meneses  e como mestre o frade jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, proposto pelo cardeal D. Henrique. D. Catarina desejara inicialmente frei Luís de Granada, que residia então em Portugal, ou na sua falta frei Luís de Montoya. Como ajudante e como professor dos jovens fidalgos do paço foram nomeados os jesuítas padre Amador Rebelo e padre Gaspar Maurício. Frei Luís de Montoya acabou por ficar como confessor de D. Sebastião. A vontade de D. Catarina era de que junto do neto só estivessem castelhanos. A regência de D. Catarina deveria durar até o neto ter vinte anos. Quando o cardeal D. Henrique assumiu mais tarde a regência a idade foi diminuída para catorze anos. Mais tarde, o padre Câmara substituiu Montoya como confessor, acumulando as funções de confessor e mestre.

D. Catarina fingiu uma vez tentar abandonar a regência, mas à segunda vez retirou-se mesmo, conforme estabelecido pelas Cortes em 23 de Dezembro de 1562, ficando D. Henrique como regente. As Cortes votaram então alguns Capítulos sobre o rei e o Reino. O Capítulo nº 1 estabelecia: «Que El-Rei Nosso Senhor tanto que for de nove anos se tire de entre mulheres e se entregue aos homens.» Talvez seja por causa deste Capítulo que alguns historiadores contemporâneos afirmam que esta determinação foi bem cumprida, dada a evidente misoginia do rei. E outros até vão mais além, mas é assunto que já abordámos em tempos.

Também é referida no livro a excessiva protecção do cardeal D. Henrique à Companhia de Jesus. 

Ao contrário da opinião de António Cândido Franco, D. Sebastião até gostava de assistir a autos-de-fé. «D. Sebastião ouvia missa diariamente e comungava com muita frequência. [...] Desde muito pequeno insistia em querer jejuar na Quaresma e fazer sacrifícios e privações por amor de Deus. [...] Assistia com muita satisfação aos Autos do Santo Ofício. Uma vez, depois de comungar, ficou a rezar diante de um crucifixo.» (p. 68)

Sobre a doença de D. Sebastião, escreve o autor, sintetizando: « 1) A doença surge quando D. Sebastião tem 11 anos, o que pode coincidir com o início da puberdade (que, nesse caso, seria uma puberdade precoce). Isto é, momentos coincidentes ou imediatamente posteriores à aptidão generativa. 2) A doença está qualificada em função dos sintomas que tem D. Sebastião, como uma espermatorreia, cujo fluxo aumenta com a actividade física e os movimentos bruscos e diminui com a passividade ou o repouso. 3) A circunstância provoca incertezas. Considera-se que é impotente e duvida-se da sua capacidade de procriação. Não se põe em dúvida que a doença tem sequelas que o afectariam numa suposta vida marital. 4) A origem do seu mal deve atribuir-se provavelmente, mais do que a uma circunstância acidental, às disfunções biológicas de origem genética, por razões de consanguinidade. 5) Atribuem-se-lhe outras doenças, como a epilepsia ou a esquizofrenia, de que padeceram alguns dos seus antepassados, e a diabetes, de que o pai sofria, mas com escasso fundamento.» (pp. 92-3)

Quando D. Catarina desejou (ou simulou) regressar a Espanha para se colocar sob o amparo de seu sobrinho Filipe II, este enviou a Lisboa, com outro pretexto, Francisco de Borja e o cardeal Alexandrino, legado do papa, para a demover dessa intenção.

D. Sebastião procurou tanto quanto pôde esconder a sua doença, que o envergonhava e era objecto de troça nas tabernas, de tal modo que os historiadores ignoraram geralmente o facto durante muito tempo. Só mais recentemente o assunto começou a ser devidamente debatido.

Depois do seu regresso a Espanha, pela morte do marido, D. Joana de Áustria passou a viver no Alcázar de Madrid, no Escorial, em Aranjuez ou no seu Mosteiro das Descalças Reais, que fundara. Mas, viúva, parece que aceitou a sugestão do irmão, Filipe II, para se casar com o sobrinho, o "díscolo e indómito príncipe Carlos", herdeiro do trono espanhol. D. Joana tinha dez anos mais do que o sobrinho, que tinha crescido ao seu lado antes de vir para Portugal e que ela muito acarinhara quando ele era criança. Mas o rapaz vi-a antes como uma mãe. «Tê-lo-á desejado realmente D. Joana? Esteve no seu íntimo tornar-se rainha de Espanha? Foi sua ambição secreta? Assim o manifestam alguns historiadores, mas é pouco provável.» (p. 109) Obviamente que o casamento era uma impossibilidade, atendendo ao desvairamento do infante D. Carlos, que Filipe II acabaria por prender e manter quase incomunicável até à morte.

«Pese embora a participação activa de D. Joana de Áustria nos assuntos relevantes da corte, pouco a pouco ia-se distanciando da actividade pública e aproximando-se mais do seu mosteiro das Descalças Reais, o remanso espiritual que acolheu os seus últimos anos de vida. A amizade com Teresa de Ávila, que chegou a estar vários dias no seu mosteiro, fá-la-ia contagiar-se com esse estado de sublimação que tanto caracterizava a santa caminheira. A vinculação da mística doutora e Joana de Áustria é assunto pouco estudado, que a maior parte dos historiadores omitem ou mencionam rapidamente.» (p. 127)

«Mas permanecem algumas incógnitas sobre a sua vida [de D. Joana]. Uma, muito curiosa: terá professado em segredo na Ordem dos Jesuítas que tanto admirava? Alguns historiadores antigos afirmam-no nas entrelinhas. Hoje não se pode negar esse facto. Pese embora a estranheza que isso provoca, dado o carácter masculino da Companhia, só pode justificar-se por singular privilégio concedido pelo Geral da Ordem. Com a aquiescência do papado? Todo os indícios assim o confirmam. Parece ter sido em 1555, com dispensa pontifícia e do próprio Inácio de Loiola, que fez votos na Companhia.» (p. 130)

Na sua alucinação religiosa e "patriótica" (que de verdadeiramente patriótico nada tinha) mas que era a consequência de um espírito perturbado, D. Sebastião, em 1569, mandou, no Mosteiro de Alcobaça, abrir, perante a estupefacção geral, os túmulos de D. Afonso II e de D. Afonso III e de D. Urraca e de D. Beatriz. E só não se abriram mais túmulos por evidentes dificuldades técnicas, laboriosamente explicadas ao monarca. E em 1570 ordenou, no Mosteiro da Batalha, que se abrisse o túmulo de D. João II e, como cadáver se mantivesse incorrupto, ordenou que ele fosse retirado do caixão e fosse colocado na posição vertical. E mais, apesar da perplexidade geral e grande confusão instalada, mandou que o jovem D. Jorge de Lencastre, filho do duque de Aveiro e descendente daquele rei, beijasse a mão do cadáver. Parecia a visita de um jovem louco. 

Mas D. Sebastião, mau grado as suas extravagâncias, continuava rodeado de um grupo de aduladores, já que se irritava com qualquer crítica, nomeadamente as de D. Catarina e do cardeal D. Henrique. Entre os companheiros mais próximos e também jovens (o rei gostava de jovens) encontravam-se Álvaro de Castro, Cristóvão de Távora, Luís da Silva e Manuel Quaresma Barreto, que haveriam de acompanhá-lo na trágica jornada de `Alcácer-Quibir. 

No norte de África, Abd al-Malik [utilizo a grafia do autor] destronara seu sobrinho Mohamed (Abu Abd Allah al-Mutawakkil) que era filho ilegítimo de seu irmão Abd Allah al-Galib. É verdade que Abd al-Malik, que estivera anteriormente em Argel e gozava do apoio dos turcos, até tinha boas relações com Filipe II e não tinha propriamente intenções de atacar a Península. Mas pensou D. Sebastião encetar uma cruzada em defesa da fé. E ninguém lhe tirou isso da cabeça. Assim resolveu aliar-se a Mohamed para conquistar Larache. Não repugnava a D. Sebastião a aliança com Mohamed (um infiel) desde que pudesse satisfazer a sua vaidade de derrotar Abd al-Malik e nem que para isso fosse necessário receber a ajuda de mercenários protestantes da Flandres e lançar pesados impostos em Portugal e até conseguir do Papa a suspensão de certos severidades que pesavam sobre os cristãos-novos desde que eles contribuíssem financeiramente para a expedição.

Para obter o apoio de Filipe II, D. Sebastião insistiu em se reunir com ele. O rei de Espanha tentou esquivar-se mas acabou por aceitar reunir-se com o sobrinho em Guadalupe, em 1576. Foi a primeira e única vez em que se encontraram. Assim, Filipe II deslocou-se ao célebre Mosteiro, com impressionante comitiva, para mostrar quanto poderoso monarca era, chegando dois dias antes para inspeccionar os aposentos onde ficaria D. Sebastião e o seu numeroso séquito. Filipe percorreu todos os quartos, para verificar se tudo estava em ordem e ele mesmo os distribuiu pelos futuros ocupantes colocando os respectivos nomes nas portas. Este procedimento recorda-me Salazar que, normalmente, antes de recepções importantes ou banquetes de Estado visitava sempre na véspera os locais e examinava os mais pequenos pormenores. Uma vez, creio que no Palácio da Ajuda, antes de um banquete, constatou que a belíssima toalha de mesa tinha sido colocada do avesso. 

Houve várias conversas de Filipe II com D. Sebastião, a sós (de que nada sabemos) ou com acompanhantes. O pedido do sobrinho referia-se especialmente ao apoio de Filipe à expedição a África, a que este acedeu parcialmente, e à aprovação do seu casamento com a infanta Isabel Clara Eugénia, então com 10 anos e filha de Filipe, a que este acedeu com ambiguidade, remetendo para a altura própria a decisão final. O comportamento prudente de Filipe II, esquivando-se o mais que pôde dos delírios do sobrinho, provocou neste a maior irritação, quase que perdendo o controlo. 

Como todos sabem, a batalha de Alcácer Quibir teve lugar em 4 de Agosto de 1578, com o resultado largamente previsto pela maioria dos intervenientes. Para evitar o confronto, Abd al-Malik chegou a propor a D. Sebastião a entrega pura e simples de Larache mas este recusou porque queria combatê-lo pessoalmente. Tal não aconteceu. Abd al-Malik encontrava-se doente (quiçá envenenado) e morreu durante a batalha sendo escondido numa liteira pelos seus homens. Mohamed, fugindo das tropas do tio, morreu afogado num rio. E D. Sebastião morreu igualmente. Esta peleja ficou conhecida como a batalha dos Três Reis.

O corpo de D. Sebastião viria a ser encontrado no dia seguinte e identificado pelos fidalgos prisioneiros detidos. O novo sultão, Muley Ahmed, irmão de Abd al-Malik, ordenou que fosse enterrado em casa de Abraham Suffin, alcaide de Alcácer-Quibir. Para agradar a Fiipe II, Muley Ahmed entregou o corpo de D. Sebastião (auto de entrega datado de 10 de Dezembro de 1578) que foi depositado na capela de S. Tiago da igreja da Trindade, em Ceuta, e depois transferido para a Sé da mesma cidade. O corpo foi mais tarde trazido para Portugal, atravessando o Algarve e o Alentejo. Chegou a Lisboa em 11 de Dezembro de 1582, onde era aguardado por Filipe II e pelo cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, sobrinho de Filipe, mais tarde 2º vice-rei de Portugal e que haveria de casar, ironia do destino, com a prometida a D. Sebastião, a infanta Isabel Clara Eugénia, depois de obtida a dispensa papal do estado religioso. O corpo seria depositado numa das capelas laterais da igreja de Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos. Em 1695, D. Pedro II procederia à renovação do sarcófago.

Acrescente-se, por curiosidade, que o jovem Muley Xeque, filho de Mohamed, então com 10 anos, mas que já combatia ao lado do pai, salvou-se da batalha e viria a ser uma personagem muito conhecida na sociedade castelhana, acabando por absorver a cultura de Espanha. Viveu em Lisboa, Andaluzia e Madrid, esteve na Flandres e conviveu com personagens da época, como Lope de Vega que lhe dedicou um soneto. O próprio Filipe II apadrinhou a sua conversão à fé cristã acompanhado da filha, Isabel Clara Eugénia, num acto socialmente muito celebrado no Escorial e aceitou que, a partir daí, o afilhado usasse o seu próprio nome: Filipe (Filipe de África). Depois da morte do soberano foi para Vigevano, Itália, onde acabou os seus dias em estado de penúria, ajudado pelo bispo da cidade.

Ficam aqui registados alguns aspectos da conhecida história de D. Sebastião. À medida que for revisitando os livros que possuo sobre o monarca irei consignando as minhas impressões sobre um ou outro acontecimento, tentando evitar repetir-me, já que os factos principais constam de todas as biografias.