segunda-feira, 14 de outubro de 2024

D. SEBASTIÃO, UMA VISÃO ESPANHOLA

Li D. Sebastião, Rei de Portugal, de Antonio Villacorta Baños-García, publicado originalmente Don Sebastián, em 2004, e na tradução portuguesa em 2006. Trata-se de uma abordagem que configura uma interpretação diametralmente oposta (ou quase) à desenvolvida no livro que anteriormente comentámos, A Saga do Rei Menino, de António Cândido Franco.

É um livro muito bem escrito, bem ordenado, especialmente documentado, que se propõe uma visão realista de D. Sebastião no contexto em que viveu, sem os delírios interpretativos de António Cândido Franco, pese embora a admiração, diria mesmo paixão, que este nutre pelo Desejado.

A obra segue naturalmente a cronologia dos factos, pelo que não repetiremos, nem tal seria possível, os eventos maiores da vida do Rei mas tão só anotaremos alguns aspectos salientados por Baños-García que nos pareceram interessantes.

O autor alude (p. 28) a um eventual relacionamento sentimental de D. Joana, irmã de Filipe II e mãe de D. Sebastião, com Francisco de Borja, Duque de Gandía e mais tarde Superior Geral da Companhia de Jesus (e, depois, até santo), embora considere que tal tem poucos vislumbres de verosimilhança.

O imperador Carlos Quinto, antes da sua decadência física, gozara sem temperança dos apetites carnais. Na p. 33: «escreveu-se que não despedia mulher sem a ter gozado três vezes.»

D. João de Áustria, era filho de Carlos Quinto e de Barbara Blomberg, talvez lavadeira ou cantora, talvez filha de um mercador de Ratisbona, e nasceu em 1547. Chamava-se inicialmente Jerónimo, porque o imperador casou Barbara com um soldado alemão de cavalaria chamado Jerónimo Pyramo Kegell. Foi educado em Espanha, ignorando no princípio a sua filiação, pela família de D. Luís Quijada, fidelíssimo servidor da família real.

Carlos Quinto morreu no Mosteiro de Yuste, para onde se havia retirado, em 21 de Setembro de 1558. Não assistiram ao passamento nem sua filha D. Joana, nem seu filho Filipe II, mas apenas o arcebispo de Toledo, alguns frades e quatro fidalgos. Terá dito antes de expirar: "Já é tempo". Não é feita qualquer referência no livro ao facto hoje muito conhecido que, meses antes de morrer, teria mandado celebrar e assistido às suas próprias exéquias.

D. João III morreu subitamente em 11 de Junho de 1557, portanto um ano antes do imperador.

É recorrente no livro a referência à vontade de Carlos Quinto no sentido de D. Sebastião não se casar com uma princesa francesa mas antes espanhola, para manter os casamentos da família na Península. E também o desejo de que o infante D. Carlos, seu neto (na altura tal situação ainda era concebível) pudesse, por morte de D. Sebastião sem filhos, herdar o trono de Portugal.

Tendo ficado D. Catarina como regente depois da morte de D. João III, em cumprimento de um "falso" testamento do marido, tinha D. Sebastião três anos, foi-lhe dado como aio o velho D. Aleixo de Meneses  e como mestre o frade jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, proposto pelo cardeal D. Henrique. D. Catarina desejara inicialmente frei Luís de Granada, que residia então em Portugal, ou na sua falta frei Luís de Montoya. Como ajudante e como professor dos jovens fidalgos do paço foram nomeados os jesuítas padre Amador Rebelo e padre Gaspar Maurício. Frei Luís de Montoya acabou por ficar como confessor de D. Sebastião. A vontade de D. Catarina era de que junto do neto só estivessem castelhanos. A regência de D. Catarina deveria durar até o neto ter vinte anos. Quando o cardeal D. Henrique assumiu mais tarde a regência a idade foi diminuída para catorze anos. Mais tarde, o padre Câmara substituiu Montoya como confessor, acumulando as funções de confessor e mestre.

D. Catarina fingiu uma vez tentar abandonar a regência, mas à segunda vez retirou-se mesmo, conforme estabelecido pelas Cortes em 23 de Dezembro de 1562, ficando D. Henrique como regente. As Cortes votaram então alguns Capítulos sobre o rei e o Reino. O Capítulo nº 1 estabelecia: «Que El-Rei Nosso Senhor tanto que for de nove anos se tire de entre mulheres e se entregue aos homens.» Talvez seja por causa deste Capítulo que alguns historiadores contemporâneos afirmam que esta determinação foi bem cumprida, dada a evidente misoginia do rei. E outros até vão mais além, mas é assunto que já abordámos em tempos.

Também é referida no livro a excessiva protecção do cardeal D. Henrique à Companhia de Jesus. 

Ao contrário da opinião de António Cândido Franco, D. Sebastião até gostava de assistir a autos-de-fé. «D. Sebastião ouvia missa diariamente e comungava com muita frequência. [...] Desde muito pequeno insistia em querer jejuar na Quaresma e fazer sacrifícios e privações por amor de Deus. [...] Assistia com muita satisfação aos Autos do Santo Ofício. Uma vez, depois de comungar, ficou a rezar diante de um crucifixo.» (p. 68)

Sobre a doença de D. Sebastião, escreve o autor, sintetizando: « 1) A doença surge quando D. Sebastião tem 11 anos, o que pode coincidir com o início da puberdade (que, nesse caso, seria uma puberdade precoce). Isto é, momentos coincidentes ou imediatamente posteriores à aptidão generativa. 2) A doença está qualificada em função dos sintomas que tem D. Sebastião, como uma espermatorreia, cujo fluxo aumenta com a actividade física e os movimentos bruscos e diminui com a passividade ou o repouso. 3) A circunstância provoca incertezas. Considera-se que é impotente e duvida-se da sua capacidade de procriação. Não se põe em dúvida que a doença tem sequelas que o afectariam numa suposta vida marital. 4) A origem do seu mal deve atribuir-se provavelmente, mais do que a uma circunstância acidental, às disfunções biológicas de origem genética, por razões de consanguinidade. 5) Atribuem-se-lhe outras doenças, como a epilepsia ou a esquizofrenia, de que padeceram alguns dos seus antepassados, e a diabetes, de que o pai sofria, mas com escasso fundamento.» (pp. 92-3)

Quando D. Catarina desejou (ou simulou) regressar a Espanha para se colocar sob o amparo de seu sobrinho Filipe II, este enviou a Lisboa, com outro pretexto, Francisco de Borja e o cardeal Alexandrino, legado do papa, para a demover dessa intenção.

D. Sebastião procurou tanto quanto pôde esconder a sua doença, que o envergonhava e era objecto de troça nas tabernas, de tal modo que os historiadores ignoraram geralmente o facto durante muito tempo. Só mais recentemente o assunto começou a ser devidamente debatido.

Depois do seu regresso a Espanha, pela morte do marido, D. Joana de Áustria passou a viver no Alcázar de Madrid, no Escorial, em Aranjuez ou no seu Mosteiro das Descalças Reais, que fundara. Mas, viúva, parece que aceitou a sugestão do irmão, Filipe II, para se casar com o sobrinho, o "díscolo e indómito príncipe Carlos", herdeiro do trono espanhol. D. Joana tinha dez anos mais do que o sobrinho, que tinha crescido ao seu lado antes de vir para Portugal e que ela muito acarinhara quando ele era criança. Mas o rapaz vi-a antes como uma mãe. «Tê-lo-á desejado realmente D. Joana? Esteve no seu íntimo tornar-se rainha de Espanha? Foi sua ambição secreta? Assim o manifestam alguns historiadores, mas é pouco provável.» (p. 109) Obviamente que o casamento era uma impossibilidade, atendendo ao desvairamento do infante D. Carlos, que Filipe II acabaria por prender e manter quase incomunicável até à morte.

«Pese embora a participação activa de D. Joana de Áustria nos assuntos relevantes da corte, pouco a pouco ia-se distanciando da actividade pública e aproximando-se mais do seu mosteiro das Descalças Reais, o remanso espiritual que acolheu os seus últimos anos de vida. A amizade com Teresa de Ávila, que chegou a estar vários dias no seu mosteiro, fá-la-ia contagiar-se com esse estado de sublimação que tanto caracterizava a santa caminheira. A vinculação da mística doutora e Joana de Áustria é assunto pouco estudado, que a maior parte dos historiadores omitem ou mencionam rapidamente.» (p. 127)

«Mas permanecem algumas incógnitas sobre a sua vida [de D. Joana]. Uma, muito curiosa: terá professado em segredo na Ordem dos Jesuítas que tanto admirava? Alguns historiadores antigos afirmam-no nas entrelinhas. Hoje não se pode negar esse facto. Pese embora a estranheza que isso provoca, dado o carácter masculino da Companhia, só pode justificar-se por singular privilégio concedido pelo Geral da Ordem. Com a aquiescência do papado? Todo os indícios assim o confirmam. Parece ter sido em 1555, com dispensa pontifícia e do próprio Inácio de Loiola, que fez votos na Companhia.» (p. 130)

Na sua alucinação religiosa e "patriótica" (que de verdadeiramente patriótico nada tinha) mas que era a consequência de um espírito perturbado, D. Sebastião, em 1569, mandou, no Mosteiro de Alcobaça, abrir, perante a estupefacção geral, os túmulos de D. Afonso II e de D. Afonso III e de D. Urraca e de D. Beatriz. E só não se abriram mais túmulos por evidentes dificuldades técnicas, laboriosamente explicadas ao monarca. E em 1570 ordenou, no Mosteiro da Batalha, que se abrisse o túmulo de D. João II e, como cadáver se mantivesse incorrupto, ordenou que ele fosse retirado do caixão e fosse colocado na posição vertical. E mais, apesar da perplexidade geral e grande confusão instalada, mandou que o jovem D. Jorge de Lencastre, filho do duque de Aveiro e descendente daquele rei, beijasse a mão do cadáver. Parecia a visita de um jovem louco. 

Mas D. Sebastião, mau grado as suas extravagâncias, continuava rodeado de um grupo de aduladores, já que se irritava com qualquer crítica, nomeadamente as de D. Catarina e do cardeal D. Henrique. Entre os companheiros mais próximos e também jovens (o rei gostava de jovens) encontravam-se Álvaro de Castro, Cristóvão de Távora, Luís da Silva e Manuel Quaresma Barreto, que haveriam de acompanhá-lo na trágica jornada de `Alcácer-Quibir. 

No norte de África, Abd al-Malik [utilizo a grafia do autor] destronara seu sobrinho Mohamed (Abu Abd Allah al-Mutawakkil) que era filho ilegítimo de seu irmão Abd Allah al-Galib. É verdade que Abd al-Malik, que estivera anteriormente em Argel e gozava do apoio dos turcos, até tinha boas relações com Filipe II e não tinha propriamente intenções de atacar a Península. Mas pensou D. Sebastião encetar uma cruzada em defesa da fé. E ninguém lhe tirou isso da cabeça. Assim resolveu aliar-se a Mohamed para conquistar Larache. Não repugnava a D. Sebastião a aliança com Mohamed (um infiel) desde que pudesse satisfazer a sua vaidade de derrotar Abd al-Malik e nem que para isso fosse necessário receber a ajuda de mercenários protestantes da Flandres e lançar pesados impostos em Portugal e até conseguir do Papa a suspensão de certos severidades que pesavam sobre os cristãos-novos desde que eles contribuíssem financeiramente para a expedição.

Para obter o apoio de Filipe II, D. Sebastião insistiu em se reunir com ele. O rei de Espanha tentou esquivar-se mas acabou por aceitar reunir-se com o sobrinho em Guadalupe, em 1576. Foi a primeira e única vez em que se encontraram. Assim, Filipe II deslocou-se ao célebre Mosteiro, com impressionante comitiva, para mostrar quanto poderoso monarca era, chegando dois dias antes para inspeccionar os aposentos onde ficaria D. Sebastião e o seu numeroso séquito. Filipe percorreu todos os quartos, para verificar se tudo estava em ordem e ele mesmo os distribuiu pelos futuros ocupantes colocando os respectivos nomes nas portas. Este procedimento recorda-me Salazar que, normalmente, antes de recepções importantes ou banquetes de Estado visitava sempre na véspera os locais e examinava os mais pequenos pormenores. Uma vez, creio que no Palácio da Ajuda, antes de um banquete, constatou que a belíssima toalha de mesa tinha sido colocada do avesso. 

Houve várias conversas de Filipe II com D. Sebastião, a sós (de que nada sabemos) ou com acompanhantes. O pedido do sobrinho referia-se especialmente ao apoio de Filipe à expedição a África, a que este acedeu parcialmente, e à aprovação do seu casamento com a infanta Isabel Clara Eugénia, então com 10 anos e filha de Filipe, a que este acedeu com ambiguidade, remetendo para a altura própria a decisão final. O comportamento prudente de Filipe II, esquivando-se o mais que pôde dos delírios do sobrinho, provocou neste a maior irritação, quase que perdendo o controlo. 

Como todos sabem, a batalha de Alcácer Quibir teve lugar em 4 de Agosto de 1578, com o resultado largamente previsto pela maioria dos intervenientes. Para evitar o confronto, Abd al-Malik chegou a propor a D. Sebastião a entrega pura e simples de Larache mas este recusou porque queria combatê-lo pessoalmente. Tal não aconteceu. Abd al-Malik encontrava-se doente (quiçá envenenado) e morreu durante a batalha sendo escondido numa liteira pelos seus homens. Mohamed, fugindo das tropas do tio, morreu afogado num rio. E D. Sebastião morreu igualmente. Esta peleja ficou conhecida como a batalha dos Três Reis.

O corpo de D. Sebastião viria a ser encontrado no dia seguinte e identificado pelos fidalgos prisioneiros detidos. O novo sultão, Muley Ahmed, irmão de Abd al-Malik, ordenou que fosse enterrado em casa de Abraham Suffin, alcaide de Alcácer-Quibir. Para agradar a Fiipe II, Muley Ahmed entregou o corpo de D. Sebastião (auto de entrega datado de 10 de Dezembro de 1578) que foi depositado na capela de S. Tiago da igreja da Trindade, em Ceuta, e depois transferido para a Sé da mesma cidade. O corpo foi mais tarde trazido para Portugal, atravessando o Algarve e o Alentejo. Chegou a Lisboa em 11 de Dezembro de 1582, onde era aguardado por Filipe II e pelo cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, sobrinho de Filipe, mais tarde 2º vice-rei de Portugal e que haveria de casar, ironia do destino, com a prometida a D. Sebastião, a infanta Isabel Clara Eugénia, depois de obtida a dispensa papal do estado religioso. O corpo seria depositado numa das capelas laterais da igreja de Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos. Em 1695, D. Pedro II procederia à renovação do sarcófago.

Acrescente-se, por curiosidade, que o jovem Muley Xeque, filho de Mohamed, então com 10 anos, mas que já combatia ao lado do pai, salvou-se da batalha e viria a ser uma personagem muito conhecida na sociedade castelhana, acabando por absorver a cultura de Espanha. Viveu em Lisboa, Andaluzia e Madrid, esteve na Flandres e conviveu com personagens da época, como Lope de Vega que lhe dedicou um soneto. O próprio Filipe II apadrinhou a sua conversão à fé cristã acompanhado da filha, Isabel Clara Eugénia, num acto socialmente muito celebrado no Escorial e aceitou que, a partir daí, o afilhado usasse o seu próprio nome: Filipe (Filipe de África). Depois da morte do soberano foi para Vigevano, Itália, onde acabou os seus dias em estado de penúria, ajudado pelo bispo da cidade.

Ficam aqui registados alguns aspectos da conhecida história de D. Sebastião. À medida que for revisitando os livros que possuo sobre o monarca irei consignando as minhas impressões sobre um ou outro acontecimento, tentando evitar repetir-me, já que os factos principais constam de todas as biografias.

sábado, 5 de outubro de 2024

EL-REI DOM SEBASTIÃO

O escritor António Cândido Franco (ACF) publicou em 2007 A Saga do Rei Menino, que é uma edição revista e aumentada do seu livro Vida de Sebastião, Rei de Portugal (1993), que segundo o autor continha erros grosseiros. Só agora li o primeiro, ignorando, naturalmente, o segundo.

Trata-se de um volumoso livro, quase 400 extensas páginas, que ACF considera uma biografia ou um romance biográfico, mas que o editor preferiu designar romance histórico. Não me parece apropriado qualquer um destes termos, afigurando-se-me que se trata preferencialmente de uma interpretação pessoal da vida de D. Sebastião por parte de ACF.

Antes de mais, importa dizer que o livro está formalmente muito bem escrito. A narrativa acompanha a vida do rei, do nascimento à morte (e aborda mesmo o tempo imediatamente anterior ao seu nascimento e posterior à sua morte) segundo o estabelecido na primeira grande obra erudita sobre D. Sebastião, a biografia devida ao prof. Queiroz Velloso. ACF convoca para essa narrativa as principais figuras da época, portuguesas e estrangeiras, e evidencia a sua vasta cultura geral ao confrontar os acontecimentos do tempo. Mas talvez a preocupação de enfatizar determinados aspectos leve a escusadas repetições. No entanto, a explicação pormenorizada das ligações de parentesco entre a Casa de Áustria e a Casa de Avis proporciona-nos compreender bem a espantosa endogamia estabelecida entre ambas as Casas, estabelecida com finalidades exclusivamente políticas.

Já no que respeita à interpretação dos factos o livro é simplesmente surpreendente. O autor professa uma ilimitada paixão por D. Sebastião, mas certas observações e conclusões são no mínimo controversas e até provocatórias, para não dizer delirantes.

Não cabe aqui, nem tal seria possível, traçar um resumo, mesmo ultra-resumido, da obra. Mas vale a pena deixar algumas notas.

Apesar de uma busca de rigor, ACF comete, por vezes, algumas imprecisões. Cito duas: Na página 116, refere a assembleia para eleição do papa, em que o Cardeal D. Henrique não logrou obter o sólio pontifício, como consistório. Trata-se naturalmente de conclave. Nas páginas 338 e 340, a propósito da batalha de Alcácer-Quibir, refere o nome de Mulei Mohamed quando se trata de Mulei Ahmed. O primeiro tinha morrido na batalha e foi o seu tio Mulei Ahmed que sucedeu ao próprio irmão Mulei Abdelmalique [utilizo a grafia do autor].

É também evidente o ódio que ACF professa pela Casa de Áustria, e em especial por Carlos Quinto. Mas também por sua irmã Catarina e por seu filho Filipe II. E também por D. João III e pelo Cardeal D. Henrique. O autor sustenta a boa convivência existente no Reino entre católicos, muçulmanos e judeus e considera que as imposições espanholas para a sua perseguição e expulsão, que começaram a vigorar brandamente no tempo de D. Manuel I e violentamente com D. João III e com o Cardeal D. Henrique tiveram consequências trágicas. A uniformidade religiosa imposta pelos Habsburgos é um momento negro na história peninsular.

A propósito, ACF procede à descrição detalhada dos autos-de-fé, em que uma parte da Corte (mas não toda) se comprazia e que eram detestados por D. Sebastião. E salienta a actividade perversa da Santa Inquisição, tutelada pelo Cardeal-Infante, depois Cardeal-Rei, que era o Inquisidor-Geral. É particularmente salientado o facto de os acusados não saberem o teor das acusações nem quem os acusava.

Quanto a muitas situações descritas no livro, o autor escreve: «E se não me acreditam não faz mal nenhum. Nada há de tão pouco poético como a verdade; só a mentira é artística. E não me digam que a mentira não pode ser sincera, que a melhor mentira é aquela que fala a verdade a mentir e o melhor mentiroso é aquele que mente com sinceridade. Não há romance, nem sequer conhecimento, fora da mentira, que a mentira, sendo invenção, é o primeiro passo para a imitação e a imitação o fundamento de toda a arte. A arte tem de mentir para deixar o terreno da realidade e se fazer irreal. Além disso, eu sei pouco de verdades, gosto é da prosa espontânea, viva, feita em jejum, dias e dias a fio, e responsabilizo-me mais depressa pelos erros que pelas verdades. E se ser assim torrencial e anárquico é ser mau, então Deus tem alguma coisa de anarquista.» (p. 270)

Sendo toda a obra perpassada por um clima de sensualidade, é estranho que ACF recuse aceitar liminarmente a tese de que D. Sebastião fosse homossexual, hipótese hoje cada vez mais aventada por historiadores e escritores e que já referi em outros escritos. Sobre esse clima, não resisto à tentação de transcrever uma passagem das páginas 185-6: «Ora, em cada touro do Tejo vejo eu o touro primitivo, o touro que morre pelos testículos e dá a vida a tudo o que existe; como em cada moço de forcado vejo eu o corpo esbelto de Mitra. Cada arena onde se correm touros é para mim o universo primordial, a cena primeira onde se representou o drama original da nossa existência. O universo é o palco onde Mitra defronta o ser criado por Ahura-Mazda, como a arena é o estrado onde o toureiro defronta o touro. Se no redondel do universo é o touro que através do seu sangue dá a vida a tudo o que existe, nas arenas do Ribatejo e do Alentejo é o touro que dá vida às planícies e a tudo quanto lá vive. Nesse sentido, uma praça de touros é mais religiosa que uma igreja e a morte de um touro um acto mais sagrado que a Via Sacra de Cristo. Um moço forcado é mais belo que um padre paramentado e uma tourada proporciona mais terror e mais alívio que a lembrança dos passos do Calvário e o sangue da cruz. Uma igreja é um objecto de estética mas uma praça de touros é a filha pródiga do anfiteatro grego, esse recinto sagrado onde os deuses se mascaravam de homens e os homens de deuses. Uma tourada vale uma tragédia de Sófocles e entre o bode grego e o touro ibérico só há uma diferença de grau, não de natureza. O touro aperfeiçoou o bode como a Ibéria mundializou a Grécia. O touro é o animal da cosmogonia universal, do nascimento do novo mundo, como o bode é o bicho da cosmogonia umbilical, a do Mediterrâneo. A escuridão desse animal pertence ao tempo original em que todos os elementos estavam possuídos por uma força geradora. A imagem dessa cosmogonia universal está viva ainda hoje nas terras do Tejo, quando a lezíria ribatejana se liberta das suas águas e o touro se desenha solitário e negro contra o horizonte da terra transtagana. Todos os anos pela Primavera as águas recuam e todos os anos se trava essa luta genesíaca entre os elementos que disputam entre si a vida. Não é só a terra que sai vencedora, é o touro que se ergue real com os seus cornos em forma de crescente, como um planeta acabado de nascer. Tenho visto touros assim viçosos e azuis, entre sobreiros e pombas brancas, palpitantes de sangue e substância, prontos a darem a vida como a terra doirada de Abril.»

Refira-se que D. Sebastião era um entusiasta de touradas, nas quais muitas vezes intervinha.

O autor salienta também a figura de Cristóvão de Távora (1548-1578), que foi colega de estudo, amigo dedicado, estribeiro-mor e finalmente camareiro-mor de D. Sebastião (1554-1578). Íntimo do rei, tentou dissuadi-lo da expedição a África, procurou que se rendesse quando o desastre era certo e morreu na batalha.

Só é possível apreender o pensamento do autor lendo o livro integralmente. Mas transcrevo, da página 333, este trecho: « O que me agrada de sobremaneira na biografia de Sebastião é a sua vocação para a derrota, a compreensão que ele tem de que a vitória é de pouca ou nenhuma importância. Sem a derrota de Alcácer-Quibir, Sebastião teria sido um irrequieto, um generoso ou um tirano, mas em qualquer dos casos ter-lhe-ia sempre faltado a ousada inspiração que o assistiu nos derradeiros momentos da batalha. A derrota da campina de Alcácer foi a licença que o destino lhe deu de ter génio, porque este não é ganhar nem dar, mas a antes criar. Hoje, à distância, convenço-me que a derrota de Alcácer-Quibir teria ainda sido mais funda se a batalha não se tivesse perdido. Há vitórias militares que são pesadas derrotas humanas e há derrotas que dão nobreza e carácter a quem as sofre. Isto devia bastar para responder a António Sérgio, quando ele perguntava, a propósito de Sebastião, convencido da sua razão, que modelo ou que pensamento podia inspirar um homem que só a derrota conhecera. As vitórias são quase sempre uma distracção de superfície, um vento enganador de euforia e arrogância, enquanto as derrotas, exigindo um esforço de concentração e uma consciência de humildade, podem ser o momento da criação.»

Nunca saberemos se D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir (4 de Agosto de 1578)!!! Daí o mito do Encoberto. Muitas são as narrativas.

O rei foi enterrado três vezes.  Segundo uns, o corpo despedaçado foi encontrado no campo de batalha e entregue pelo xerife Mulei Ahmed para ser sepultado a 7 de Agosto num terreno de Abraão Sufiane. Três meses depois, num gesto de amabilidade interessada, o sultão ofereceu-o a Filipe II de Espanha que o encaminhou, com sentido de oportunidade para o cardeal-rei D. Henrique. A entrega do corpo e a sua exumação foi feita em Ceuta, tendo sido depositado na capela de Santiago da igreja da Trindade e transportado depois para a capela-mor da Sé. Em Agosto de 1582, já rei de Portugal, Filipe II mandou-o vir para uma das capelas laterais da igreja de Santa Maria de Belém (os Jerónimos) onde ainda hoje está, num túmulo em mármore rosa mandado lavrar em 1682 por D. Pedro II, com a seguinte inscrição: "Conditur hoc tumulo, si vera est fama, Sebastus...". A trasladação teve lugar em 11 de Dezembro de 1584, com grande pompa e circunstância, com a presença do próprio Filipe II e do cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, vice-rei de Portugal.

Se fosse efectuado um teste de ADN aos restos conservados na tumba (se é que existem) poderíamos saber se eles pertencem ou não ao filho de Joana de Áustria, de quem se conhece a descrição genética.

Ao longo dos anos apareceram vários indivíduos pretendendo ser o desaparecido rei. 

O primeiro Sebastião apareceu em 1584, em Penamacor. Reuniu adeptos, foi preso pelos espanhóis, julgado e condenado às galés, mas conseguiu evadir-se. Acabou a mendigar no sudoeste francês.

O segundo Sebastião (Mateus Álvares), oriundo dos Açores, apareceu em 1585, sendo aclamado rei nas ruas da Ericeira.  Obteve grande popularidade, tentou organizar um exército, mas foi vencido pelos espanhóis e condenado à forca. 

O terceiro Sebastião surgiu em 1594. Era um jovem pasteleiro, com a cara polvilhada de pó-de-arroz, que se chamava Gabriel de Espinosa e frequentava o Mosteiro de Santa Maria do Madrigal. Apaixonou-se por Ana de Áustria, sobrinha de Filipe II e filha natural de seu meio-irmão D. João de Áustria. Ao saber do facto, o rei de Espanha ficou siderado por tal ocorrência nas suas próprias barbas. O caso tem outros contornos políticos que não cabe aqui desenvolver. O rapaz foi enforcado e a sobrinha encerrada num longínquo convento.

O quarto Sebastião (o calabrês Marco Tulio Catizone) apareceu em Veneza em 1598 e parecia-se fisicamente com o rei. É o pretendente com um caso mais longo e complexo, o assunto durou até Filipe III  e a ele já me referi aqui

O sebastianismo perdura até aos nossos dias. E os portugueses continuam à espera de um D. Sebastião. Muitas figuras têm consubstanciado essa figura mítica, como Sidónio Pais, que Fernando Pessoa notavelmente evocou numa "ode".

Muito mais haveria a dizer sobre o livro, que sobre D. Sebastião espero poder continuar a escrever, a propósito das outras obras que possuo na minha biblioteca.




quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O ÚLTIMO AMOR DE MARGUERITE YOURCENAR

Acabou de ser publicado um interessante livro de Christophe Bigot, Un autre m'attend ailleurs, consagrado aos últimos anos de Marguerite Yourcenar, desde os últimos tempos de vida de Grace Frick, sua companheira e tradutora, até à morte da escritora, isto é, durante o período em que conviveu com a sua última paixão, o norte-americano Jerry Wilson que, apesar da imensa diferença de idades, a precedeu no túmulo.

O autor descreve esses anos, apaixonados mas também tumultuosos, seguindo os dados biográficos mas recriando as situações, já que de um romance se trata. E dá-nos uma visão, que aliás já conhecíamos, de aspectos da vida de Yourcenar que só com esforço encaixam na ideia concebida da austera académica (a primeira mulher a ingressar na Academia Francesa) com um perfil de estátua clássica. Mas a escritora conseguiu sempre conciliar a sua predisposição transgressora com um comportamento convencional que as circunstâncias lhe impunham.

Não subsiste qualquer dúvida de que Marguerite Yourcenar foi sempre uma personalidade complexa. Tendencialmente lésbica, mas com intermitências heterossexuais, viveu com Grace Frick durante quarenta anos, teve numerosas aventuras no feminino, mas também se apaixonou por alguns homens, como André Fraigneau (seu editor na Grasset) que repudiou qualquer aproximação, André Embirikos e, finalmente, Jerry Wilson, todos homossexuais, sendo que é possível ter havido com este último contacto sexual pelo menos uma ou duas vezes, ainda que só possamos saber pormenores em 2037, quando forem disponibilizados os arquivos de Yourcenar, conservados em Harvard.

A escritora (então com 76 anos) conheceu Jerry Wilson (46 anos mais novo) em 1978, por acaso, mas ele insinuou-se no seu espírito e tornou-se-lhe indispensável. Passou a exercer funções de secretário particular e acompanhou Yourcenar nas numerosas visitas que esta realizou na Europa, na Ásia, em África, depois da morte de Grace Frick. A relação com Wilson degradou-se com o tempo, devido aos seus exageros de álcool, de droga, de aventuras homossexuais, chegando a maltratar e, inclusive, a agredir a escritora. 

Jerry Wilson morreu em Paris, vítima de sida, em 1986. Marguerite Yourcenar sobreviveu-lhe, mas morreu em 1987, em Petite Plaisance, a sua casa no Maine.

Este livro de Christophe Bigot, de que aqui fazemos sumária referência, é duplamente interessante, quer pela forma como recria, com verossimilhança, os últimos anos de Marguerite Yourcenar, em estilo perfeitamente biográfico, quer pela revelação de numerosos aspectos do comportamento da escritora, alguns eventualmente já conhecidos dos especialistas, outros certamente inéditos.

Deve ler-se!

* * *

N.B.: "O amor tem razões que a razão desconhece", mas permita-se-me uma nota pessoal: é para mim incompreensível que Marguerite Yourcenar se tenha apaixonado por Jerry Wilson, que não só psiquicamente mas também fisicamente se me afigura nos antípodas do gosto da escritora! Daí a ser o seu Antinous americano, como tem sido insinuado, vai uma incomensurável distância.


quarta-feira, 2 de outubro de 2024

AS DOENÇAS DE D. SEBASTIÃO

Li agora Nosografia de D. Sebastião, de Mário Saraiva (1980), que possuo desde a data da publicação.

Desde sempre tiveram vencimento as mais variadas interpretações sobre a saúde física e mental de D. Sebastião e sobre a sua comprovada misoginia e recusa em contrair matrimónio. O rei morreu com vinte e quatro anos, em Alcácer-Quibir, e não sabemos, portanto, que decisão tomaria quanto a um futuro casamento caso tivesse sobrevivido à batalha. Com essa idade estavam casados todos os príncipes da Europa desse tempo. Seu pai, o infante D. João Manuel, casara com quinze anos, um costume da época. Sabemos que D. Sebastião protelou indefinidamente todos os projectos de casamento, tendo aceitado um hipotético matrimónio com sua prima a infanta Clara Eugénia, filha de Filipe II, apenas para obter do tio apoio para a sua expedição a África. E a tese de Saraiva de que D. Sebastião, profundamente religioso (pelo menos à maneira dele), queria chegar casto ao casamento é no mínimo risível.

Contesta Mário Saraiva as afirmações de Manuel Bento de Sousa, Veríssimo Serrão, Queiroz Veloso ou Júlio Dantas sobre a saúde do rei, fornecendo-nos antes a imagem de um D. Sebastião perfeitamente normal (ainda que o conceito de normal possa ser discutido, mas não é essa a intenção do autor) o que não corresponde minimamente a todos os testemunhos expressos até à data do livro de Saraiva (1980) e muito menos depois! Aliás, a argumentação deduzida por Mário Saraiva contradiz ela mesma a tese que pretende contestar. Acusa, por exemplo, Serrão de referir um episódio de doença do rei, porque no seu raciocínio, um episódio nada prova, mas ignora que Serrão menciona um episódio como exemplo dos muitos episódios semelhantes sucessivamente ocorridos.

No plano físico, afasta Saraiva as hipóteses de epilepsia, diabetes e uretrite, apoiando-se em informações mais ou menos vagas, o que é insustentável. 

No plano psíquico, é certo que D. Sebastião possuía boa memória, vontade de se instruir e até uma evidente inteligência, mas isso não significa que ela não tenha sido capturada por insensatas vontades. A convivência diária com o seu professor desde menino, o Padre Luiz Gonçalves da Câmara, terá tido uma influência decisiva no seu comportamento. Parece que o rei possuía, de facto, uma religiosidade profunda, o que todavia não o impedia de se aliar em África a um soberano muçulmano para combater o tio deste ou de negociar com os protestantes calvinistas da Flandres para obter apoio para a sua expedição, isto com grande fúria de seu tio-avô o Cardeal D. Henrique, Inquisidor-Geral de Portugal, que D. Sebastião detestava.

Neste livro, Mário Saraiva indigna-se com o pensamento corrente acerca da saúde física e psíquica do rei, mas nem sequer alude a uma outra circunstância, hoje bem documentada e já aventada aquando da publicação da sua obra: a homossexualidade de D. Sebastião. Talvez por "pudor", Saraiva nem sequer alude a essa possível orientação sexual, que se encaixa perfeitamente no comportamento do rei, nada tendo a ver com uma eventual gonorreia de que o monarca padeceria. Uma certa predilecção pelos jovens marroquinos, que o dramaturgo belga Paul Dresse inscreveu numa das suas peças de teatro, justificaria a obsessão pelo norte de África. Também o historiador norte-americano Harold Johnson, professor nas universidades de Virginia, Yale e Chicago publicou em 2004 um livro documentado sobre a provável homossexualidade do rei.

Eu compreendo que as convicções íntimas do dr. Mário Saraiva o tenham impedido de sequer pensar que D. Sebastião fosse homossexual. No seu pensamento, os reis de Portugal não poderiam ter essas "taras", apesar das afirmações de Fernão Lopes sobre D. Pedro I e de muitas coisas que se escreveram sobre D. Afonso VI e D. Manuel II.

Em qualquer caso, D. Sebastião é o rei português sobre quem foram escritos e publicados mais livros, não só na nossa língua como em línguas estrangeiras. E que deu origem ao mito do Sebastianismo, que subsiste nos nossos dias. Voltaremos brevemente ao assunto, sabendo que nunca serão cabalmente esclarecidas quer as circunstâncias da saúde do rei, quer as reais causas da desastrosa expedição a África em 1578, que a defesa da fé e o ataque ao Grão-Turco só por si não justificam.

 


sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O EGIPTO VISTO POR GÉRARD DE NERVAL

A viagem de Gérard de Nerval (1808-1855) ao Oriente não foi verdadeiramente uma mas duas. O escritor efectuou uma viagem pela Suíça, Alemanha e Áustria em 1839-1840 e só em 1843 realizou a sua viagem ao Oriente. Todavia, no seu livro Voyage en Orient (1851), Nerval incorpora na viagem ao Oriente o percurso da viagem na Europa. É mesmo possível, segundo os especialistas, que Nerval se tenha socorrido de algumas obras, já então publicadas por outros autores sobre a matéria, para compor a sua narrativa.

A primeira viagem levou Nerval a Lyon, Genève, Lausanne, Zurich, Constanze, Augsburg, Munich, Salzburg, Linz, Viena e Estrasburgo. 

A segunda viagem teve por itinerário Marselha, Malta, Syra, Alexandria, Cairo, Damieta, Beirute, Chipre, Rhodes, Esmirna, Constantinopla, regresso por Syra e Malta, Nápoles, Livorno, Génova e, de novo, Marselha.

O livro, de cerca de 1 000 páginas, encontra-se dividido em quatro partes: "Introduction (Vers l'Orient)"; "Les Femmes du Caire"; "Druses et Maronites" e "Les Nuits du Ramazan". As segunda, terceira e quarta partes estão divididas em sub-partes, e todas em capítulos.

Anteriormente, em 1848, fora publicado o livro Les Femmes du Caire (na actual edição de 2004, Le Caire) que inclui as sub-partes "Les Mariages Cophtes", "Les Esclaves", "Le Harém" e "Les Pyramides", deixando de fora "La Cange", "La Santa-Barbara"e "La Montagne" da edição de 1851.

A parte dedicada ao Cairo merece uma menção especial. O escritor, considerando dispendiosos os hotéis "turísticos", resolveu, por aconselhamento do drogman, alugar uma casa para a qual adquiriu um mobiliário rudimentar. Mas surgiu um imprevisto: o sheikh do bairro onde alugou a casa, e que exercia uma espécie de tutela do sítio (era uma prática da época) disse-lhe que não ficava bem não ter uma mulher em casa pelo que se devia casar ou comprar uma escrava no prazo de uma semana. A presença de um homem sem mulher numa casa constituía um escândalo para a vizinhança.

Ouvindo o drogman Abdallah, intérprete que contratara à chegada, sobre tal problema inesperado, este elucidou-o sobre os casamentos coptas e islâmicos, entendendo Nerval, pelas razões largamente expostas, que os mesmos não lhe convinham. Decidiu então comprar uma escrava, Zeynab, o que não deixou de lhe trazer complicações, a começar pela dificuldade em entendê-la, ainda que tivesse prescindido de relações sexuais. Escrava de que se desembaraçou para a continuação da viagem.

Ao contrário de Flaubert e Maxime Du Camp, que lhe "sucederam" nas visitas ao Egipto, Gérard de Nerval, optou por fazer uma vida de cairota, embora não conseguisse, obviamente, passar despercebido nas ruas da velha cidade. Mas frequentou os espectáculos locais, os "restaurantes" e cafés. Deslocou-se de burro nas ruelas, comeu a comida indígena confeccionada na própria casa pelo cozinheiro que contratara. Aliás, teve uma série de "empregados" em casa, cada um a tratar de uma tarefa, como era então hábito, já que o preço era irrisório.

As referências históricas são menos elaboradas que as de Flaubert ou Du Camp, por vezes muito imprecisas e confusas, e deficiente transliteração dos nomes árabes. E os monumentos do passado faraónico ou islâmico não lhe interessam particularmente, salvo as pirâmides e algumas mesquitas. Mas ele não viajou para o sul do Cairo. A sua intenção era integrar-se na vida quotidiana dos habitantes.

Também não se nota qualquer especial apreciação dos jovens egípcios que encantaram Flaubert e Du Camp, ainda que se admita que tenha tido algumas experiências "homo" em Paris, antes da sua paixão pela actriz Jenny Colon, morta em 1842, facto que o terá decidido a viajar para o Oriente.

A vida afectiva de Gérard de Nerval foi marcada por sobressaltos de que resultaram problemas de saúde. Em 1841, foi internado pela primeira vez por crises de loucura. A par do seu trabalho intenso as crises morais e nervosas sucedem-se e em 1851 é internado várias vezes. Atravessa igualmente sérias dificuldades financeiras. Em 1854, depois de uma viagem à Alemanha, é mais uma vez internado na clínica do dr. Blanche, donde sairá devido à intervenção da Société des Gens de Lettres.

Em 26 de Janeiro de 1855 é encontrado enforcado na grade de um esgoto da rue de La Vieille Lanterne (hoje desaparecida) próximo da place du Châtelet. Segundo Baudelaire «le coin le plus sordide qu'il ait pu trouver». 


quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O EGIPTO VISTO POR GUSTAVE FLAUBERT

Como referi em publicação anterior sobre Maxime Du Camp, o escritor Gustave Flaubert (1821-1880) visitou com ele o Egipto em 1849/1850. Desse percurso nos deu conta em Voyage en Égypte, notas tomadas no decurso da viagem. Essas notas destinavam-se à redacção de um livro sobre a visita, mas Flaubert nunca lhes deu forma definitiva e a edição do livro não se verificou.

Depois da sua morte, a sua sobrinha e única herdeira, Caroline Franklin-Grout, decidiu publicar esses cadernos (1910), fazendo desaparecer as passagens julgadas inconvenientes, como escreve Richard Lebeau na introdução à edição que agora comentamos, que tem desenhos de Loustal e fotografias de Michel Le Louarn e que inclui os principais trechos.

Tendo-se perdido o manuscrito original após a morte de Caroline em 1930, aconteceu que o mesmo (cento e oitenta e sete páginas) foi providencialmente encontrado algumas décadas mais tarde. Assim, em 1991, a editora Grasset publicou pela primeira vez o texto integral, ao qual nos referiremos oportunamente. A sua leitura é, segundo os editores, recomendada aos maiores de 18 anos. Maxime Du Camp nunca mencionou na sua obra pormenores de carácter íntimo mas Flaubert anotou as suas aventuras eróticas, porventura com a intenção de mantê-las secretas caso se tivesse decidido a editar a obra. Uma sorte o manuscrito não ter sido destruído, pois este é para os flaubertianos um texto essencial para o conhecimento do homem e da obra.

A edição que agora se comenta (2001) contém, todavia, a parte essencial da viagem (excluindo os detalhes particulares). Flaubert conta-nos as suas impressões, em estilo de apontamentos, já que se tratava de notas e não de uma versão destinada ao público. Não é o caso de Du Camp cuja descrição da mesma viagem é já o resultado de um trabalho com vista a ser publicado e por isso muito mais elaborado que o texto de Flaubert.  E embora em alguns aspectos as preocupações do que importa registar sejam comuns, nota-se, em outros aspectos, singular diferença entre o que ambos consignaram.  Há, todavia, muitos episódios que são referidos pelos dois, ainda que nem sempre interpretados da mesma forma. Nem um nem o outro escrevem habitualmente de forma correcta os nomes dos locais e das personagens (nomeadamente as transliterações do árabe, em que usam as designações francesas que eram comuns naquela época), havendo, contudo, mais erros históricos em Flaubert do que em Du Camp, que se munira, antes da viagem, de um número considerável dos livros sobre o Egipto existentes à época.

Algumas notas:

- Em Licópolis (Assyut) Flaubert escreve, em 1 de Março, que viu o primeiro crocodilo na areia à beira do rio. Ora nesta região não é suposto existirem crocodilos, que apenas se encontram ao sul de Assuão. (p. 44)

- Uma confissão de felicidade de Flaubert: «Quand nous sommes arrivés devant Thèbes, nos matelots jouaient du tarabouch, le bierg soufflait dans sa flûte, Khalil dansaient avec des crotales; ils ont cessé pour aborder. C'est alors que, jouissant de ces choses, au moment où je regardais trois plis de vagues qui se courbaient derrière nous sous le vent, j'ai senti monter du fond de moi un sentiment de bonheur solennel qui allait à la rencontre de ce spectacle, et j'ai remercié Dieu dans mon coeur de m'avoir fait apte à jouir de cette manière; je me sentais fortuné par la pensée, quoiqu'il me semblât pourtant ne penser à rien, c'était une volupté intime de tout mon être.» (p. 46)

- Em 24 de Março, Domingo de Ramos: «Parti à six heures du matin en canot, pour la cataracte, avec raïs Haçan et trois autres Nubiens de la première cataracte. J'ai avec moi un petit raïs de quatorze ans environ, Mohamed; il est de couleur jaune, une boucle d'oreille d'argent à l'oreille gauche. Il ramait avec une viguer pleine de grâce, criait, chantai en passant les courants, menait tout le monde; ses bras était d'un joli style, avec ses biceps naissants. Il a ôté sa manche gauche; de cette façon il était drapé sur tout le côté droit, avait le côté gauche et une partie du ventre à découvert. Taille mince. Plis du ventre qui remuaient et descendaient, quand il se baissait sur son aviron. Sa voix était vibrante en chantant "El naby, el naby". C'est là un produit de l'eau, du soleil des tropiques, et de la vie libre; il était plein de politesses enfantines: il m'a donné des dattes et relevait le bout de ma couverture qui trempait dans l'eau.» (p. 70)

- No dia 8 de Abril, Flaubert está em Calabschi (Kalabsha) onde visita o grande templo construído no reinado de Augusto e dedicado a Mandulis, deusa núbia com cabeça de falcão, a Isis e a Osíris. Com a construção da barragem de Assuão seria inevitavelmente submerso pelas águas. Para evitar a perda, foi cortado em 13 000 blocos, entre 1962 e 1963, que foram desmontados, transportados e recolocados em 1970 em sítio não muito distante da localização original. (p. 78)

- Em 22 de Abril, Flaubert visita o grande templo de Edfu e regista: «Le temple d'Edfou sert de latrines publiques à tout le village.» (p. 92) Acontecia que até ao fim do século XIX muitos templos egípcios eram habitados. 

Ao contrário de Du Camp, que nunca cita Flaubert no texto, este menciona muitas vezes Maxime Du Camp, ainda que possamos pensar que, no percurso por terra, não estivessem sempre juntos. Mas na viagem no Nilo certamente que não se separaram.

 * * *

Num pequeno livro, Le Nil, são incluídas algumas cartas que Flaubert enviou do Egipto a sua mãe e aos seus amigos Emmanuel Vasse e Louis Bouilhet. Este último, escritor e seu companheiro de escola desde a infância, é também seu confidente. Na sua vasta correspondência, Flaubert dá conta das suas aventuras sexuais, que só poderia narrar aos seus amigos íntimos. A viagem ao Egipto, e ao Oriente em geral, tinha por objectivo não só o contacto com culturas diferentes mas também a possibilidade de usufruir de experiências eróticas menos fáceis na Europa e sem o atractivo étnico que fez dos orientais parceiros sexuais ambicionados pelos escritores do século XIX e, também, pelos turistas do século XX. E não foi um mero acaso a parceria Flaubert/Du Camp, já que ambos tinham gostos semelhantes.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O EGIPTO VISTO POR MAXIME DU CAMP


Consegui adquirir, finalmente, um exemplar usado de Un Voyage en Égypte vers 1850 - Le Nil, de Maxime du Camp (1822-1894), que há muito tempo procurava. Trata-se de uma edição de 1987, publicada sob os auspícios do Institut de France. O livro original é de 1854, teve cinco edições no século passado, ou melhor, no século XIX, já que nos encontramos agora no século XXI (para mim o século passado é ainda o século XIX, coisas da idade), foi previamente publicado parcialmente em 1853 na "Revue de Paris" e encontrava-se esgotado até à edição que hoje comento.

Depois da expedição de Bonaparte ao Egipto (1798) instalou-se na Europa o gosto pelo "Orientalismo" e muitos escritores europeus, nomeadamente franceses, rumaram a Leste no século XIX, em especial para o Egipto mas também para a Palestina, a Síria, a Turquia e mesmo a Pérsia, e também para Marrocos e Tunísia, viagens que prosseguiram no século XX.

Acompanhado pelo seu amigo Gustave Flaubert (1821-1880), Maxime Du Camp embarcou para o Egipto, em Marselha, em 4 de Novembro de 1849, no navio "Nil", chegando a Alexandria em 15 de Novembro, tendo ambos ficado instalados no Hôtel d'Orient. Flaubert tinha então 28 anos e Du Camp 27 anos. 

A viagem no Egipto e na Núbia durou até 17 de Julho de 1850, altura em que, regressados a Alexandria, ambos viajaram para Beirute. Passearam depois pelo Líbano, a Palestina, a Síria, Rhodes, a Anatólia, a Grécia e Marrocos, mas o livro termina com a sua saída do Egipto. Sobre a Palestina e a Síria (e também o Egipto e a Núbia) Du Camp publicara um resumo em 1852: Égypte, Nubie, Palestine, Syrie (reeditado pela Bibliothèque National de France). Um dos motivos de especial interesse destas publicações é o facto inovador do escritor se ter feito acompanhar por uma máquina fotográfica com a qual registou imagens dos locais percorrido, sendo que os livros incluem também reproduções de aguarelas alusivas ao texto.

Esta obra de Maxime Du Camp é dedicada a Théophile Gautier, também ele um apaixonado pelo Egipto, autor de Le roman de la momie (1858) e de outras obras sobre o Oriente. O livro tem um carácter enciclopédico: dedica-se à fauna e à flora, à arquitectura, ao clima, ao habitat, à alimentação, à economia, aos ritos de convivialidade, aos costumes, à música, à dança, aos grupos sociais, à história, às lendas, à acção dos homens.O seu objectivo é descrever, tanto quanto possível, tudo aquilo que vê. Mas nota-se uma evidente ausência, a do povo. Romance verdaeiramente sem personagens, faz do leitor, representado por Gautier,  o herói central de uma aventura da ubiquidade. Como escreve Daniel Oster na Introdução (Um curioso beduíno): «Il remplace la connivence par l'information, le moi par le tableau, le mouvement par l'obstacle et l'itinéraire par la question. Livre de synthèse plus que de syncrétisme, il parvient, pour la première et peut-être la dernière fois, à concilier sans drame toutes les figures du narrateur: archéologue érudit, poète spleenétique, Européen fouilleur de rêves, voyageur attentif et flâneur, photographe-artiste, citoyen avisé mais sceptique, journaliste soucieux d'objectivité, touriste en état d'anamnèse, pèlerin du mystère, ethnologue sur la réserve mais familier, mâle surveillant ses fantasmes, aventurier sans aventures, mais encore assez naïf pour croire - et nous faire croire - au regard qu'il porte sur un spectacle dont il peut être encore l'ordonnateur, mais dont le auteurs, désormais, lui échappent.» (p. 59)

Entre os visitantes do Egipto no século XIX que registaram as suas viagens e investigações devemos assinalar Vivant Denon (1747-1825), François-René de Chateaubriand (1768-1848), Giovanni Battista Belzoni (1778-1823), Émile Prisse d'Avennes (1807-1879), Gérard de Nerval (1808-1855), James Henry Breasted, (1865-1935). O próprio Flaubert consignou as suas impressões da viajem ao Egipto em Voyage en Égypte e em cartas à sua mãe e ao seu amigo de infância, o escritor Louis Bouilhet, editadas num livro Le Nil. Rimbaud gravou o seu nome numa parede do Templo de Luqsor, em 1887. Sem falar na Description de l'Égypte, promovida por Bonaparte.

Do itinerário de Maxime du Camp constam especialmente os seguintes locais: Alexandria, Abuqir, Rosetta, Cairo, Gizeh, Mit-Rahineh, Saqqarah, Heliópolis, Beni Suef, Fayum, Syut, Luqsor, Assuão, Ilha Elefantina, Abu Simbel, Philae, Edfu, Karnak, Medinet Habu, Gurnah, Vale dos Reis, Kosseir, Kéneh. 

Os nomes árabes de localidades, de monumentos, de pessoas são escritos por Maxime Du Camp segundo a sua percepção, sem atender à ortografia árabe. Aliás, e ao contrário dos ingleses, os franceses ainda hoje não atendem (voluntariamente?) as regras da transliteração. É habitual nas suas obras ignorarem a diferença entre o ق  e o ك, que é quase sempre grafado como "k", quando o primeiro é "q" e o segundo é "k", com pronúncias diferentes. Escreve-se Qasr e não Kasr. Por vezes torna-se mesmo difícil saber qual o nome exacto a que Du Camp se refere, atendendo às designações correctas que hoje são utilizadas. O escritor escreve "kebla" para significar "qibla", a direcção no sentido de Meca onde é instalado o "mihrab" das mesquitas.

Também é muito curioso perscrutar o olhar de Du Camp sobre o que vê no Egipto. As suas observações estão nitidamente distantes do que nós, viajantes dos fins do século XX e dos princípios do século XXI, realmente vemos, sem prejuízo da diferença no tempo e na mentalidade e de um nível de conhecimento muito superior respeitante àquela terra. 

A propósito de ter assistido (escondido) às orações na Mesquita de Hassan, no Cairo [curiosamente, eu também lá assisti uma vez, embora não escondido: entrei com os fiéis, fora das horas dos turistas, comportei-me devidamente e passei por muçulmano], Du Camp refere as quatro escolas jurídicas do islão sunita: hanafismo, malekismo, chafeísmo e hanbaleísmo. E descreve as abluções. 

Falando de hospitais e escolas de medicina, Du Camp refere que os alunos eram outrora homens feitos, de vinte a vinte e cinco anos, mas agora são crianças de doze a quinze a quem é muito difícil ensinar. E acrescenta: «Pourquoi les choisit-on si jeunes, me diras-tu? A cela je ne puis te répondre; il y a là-dessous des mystères d'iniquités que je ne saurais te dévoiler. Demande-le aux mères qui n'osent plus laisser sortir seuls leurs fils lorsqu'ils ont un visage agréable; demandez-le surtout à Abbas-Pacha qui, pendant mon séjour au Kaire, fit faire à Boulaq une razzia d'enfants.» (p. 90)

O escritor faz numerosas referências aos jardins de Ezbekyyeh como local de cafés e diversões. Os jardins tinham sido um sítio pantanoso, depois devidamente arranjado, e onde ficava a antiga Ópera do Cairo, mais tarde destruída por um incêndio. E também um hotel. [Do meu tempo, os jardins estavam vedados por um gradeamento, nunca lá consegui entrar, e em redor havia um grande número de vendedores de livros usados que eram objecto de grande procura. No local da antiga Ópera está hoje um edifício de vários andares que serve de garagem.]

Longe de mim pretender relatar o muito extenso livro de Maxime Du Camp, mas anotarei algumas observações. Por exemplo, ele refere que penetrou nas três pirâmides de Gizeh, então generosamente abertas. Nos nossos dias, as pirâmides só estão acessíveis a quem paga o seu bilhetes para entrar. Também não é hoje possível escalar as pirâmides. Mas Du Camp conseguiu subir ao cimo da pirâmide de Quéops (aliás Khufu) com a ajuda de alguns beduínos que o içaram até ao topo. [Os blocos de pedra, aos quais estive encostado na base, devem ter o volume de um metro cúbico. Não me arriscaria a tal proeza.]

Maxime du Camp não era um arabista, e a egiptologia dava os primeiros passos. Todavia, deve reconhecer-se-lhe o interesse não só de registar as suas impressões mas de tentar embrenhar-se na história e nas religiões (a "faraónica", a muçulmana, a judaica e a cristã, que era a sua) que deixaram a sua marca no Egipto. Embora relate muita coisa que hoje nos faz sorrir. 

A terminar o Capítulo I (Alexandria, Cairo e arredores), Du Camp não deixa de aludir à execução dos mamelucos na Cidadela pelos albaneses de Mehemet Ali, a fim de exterminar o seu poder. Encerrados nas muralhas cujas portas tinham sido fechadas, isto depois de um banquete, foram todos massacrados à excepção de um que, tendo ficado para trás, conseguiu saltar com o seu cavalo por cima das muralhas. Parece que foi preso mais tarde, segundo o escritor, mas disso já não me recordo da versão oficial.

No início do Capítulo II escreve: «Je pourrais encore te parler longuement du Kaire, mon cher Théophile, je pourrais te promener dans le Khan-Khalil, à travers les ruines de la mosquée de Hakem, sur les sables du Mokatam, sous les arbres de Rodah, parmi les tombeaux où dorment les kalifes, dans les écoles et les manufactures, dans les maisons et les jardins, mais tu connais tous ces détails dont Gérard de Nerval t'a fait le récit. Et puis j'ai hâte de te conduire sur le Nil, de te faire parcourir ses rives splendides et de t'arrêter devant les temples de l'Égypte et de la Nubie.» (p. 113)

A embarcação que Du Camp alugara para subir o Nilo tinha uma tripulação de doze homens, incluindo o patrão "un beau jeune homme de vint-cinq ans que l'on appelait Ibrahim;" e que "avait je ne sais quel air grand seigneur que rendait plus remarquable encore son visage très-brun animé de deux yeux doux et contemplatifs," Ibrahim esteve cinco meses ao serviço de Du Camp.

Prosseguindo viagem, Du Camp refere a aldeia de Cheikh-Abadeh, relativamente próxima da actual cidade de Minya. O sítio teve outros nomes, nomeadamente Antinópolis, pois foi aqui que se afogou, em circunstâncias nunca verdadeiramente esclarecidas, o jovem Antínoos, amante do imperador Adriano, que mandou erguer no local uma cidade, com um templo dedicado ao seu favorito, elevado à categoria de deus. Maxime Du Camp visitou as ruínas, notando que ainda uns vinte anos atrás se encontravam de pé três templos romanos, um arco de triunfo e vários edifícios da época clássica. Sabemos todos que, durante o governo de Mehemet Ali, o khediva (na altura ainda não se usava este título), desejando pedra para as construções que estava a erguer por todo o Egipto na ânsia de modernizar o país, ordenou a destruição de grande parte dos monumentos da época faraónica ou cedeu-os a países ocidentais, como os os obeliscos de Londres e Paris, provenientes de Luqsor e Alexandria. O panorama que se deparou a Du Camp foi, pois, de profunda desolação. Também seu filho, Ibrahim Pasha foi responsável por grandes depredações de construções antigas. Relata Du Camp que, segundo as tradições árabes, os crocodilos nunca descem abaixo desta aldeia. O Cheikh Abadeh vivia sozinho, consagrado à oração, tendo como único acompanhante um burro que ia buscar água ao Nilo com dois odres pendurados na boca. Um dia, tendo muito calor, o burro resolveu banhar-se nas águas e foi morto por um crocodilo. Estranhando a sua demora, o anacoreta arrastou-se até à margem e concluiu da sorte do animal. Regressado a casa, o Cheikh ergueu as mãos ao céu, invocou o Profeta e amaldiçoou os crocodilos, que desde então não mais se atreveram a descer abaixo da altura da aldeia. Conta também o escritor que o jovem Ibrahim, que conduzia o barco, lhe contou que as gaivotas que voam em torno do túmulo, próximo, de Cheikh-Saïd são consideradas sagradas, já que apanham os restos de pão dos viajantes e os colocam num banco junto à sepultura, para alimentação dos peregrinos.

Chegam Du Camp e Flaubert (que nunca é expressamente mencionado) finalmente a Syout (actualmente Assyut), a que Du Camp chama capital do Alto Egipto. Ibrahim vai a terra adquirir provisões para reabastecer o navio, os ilustres viajantes e a tripulação, isto em 26 de Fevereiro. No período greco-romano chamava-se Licópolis.

Em 1 de Março, passando em frente de Djebel-Farchout, Du Camp escreve que avistou crocodilos no Nilo pela primeira vez. E conta como eles se juntavam nas margens ou nas pequenas ilhotas do rio, prestes a lançarem-se sobre algum incauto. Acrescenta que, contudo, os acidentes são raros. Os jovens marinheiros da tripulação estavam constantemente dentro de água, quase despidos, durante a viagem, e não houve, durante os cinco meses que navegaram no Nilo, qualquer acidente. O próprio Du Camp confessa que tomava banho todos os dias, embora considerasse que o seu corpo magro não seria presa apetecível para os crocodilos acostumados a refeições de frugalidade menos manifesta.

Passam em Luqsor e param em Esneh, a antiga Latópolis, onde desembarcam para Ibrahim e o drogman Joseph Brichetti procederem ao aprovisionamento de pão para o percurso em direcção à Núbia. Enquanto descansa no barco, Du Camp é interpelado por uma mulher envolta em véus azuis que o convida, em nome da sua patroa, para assistir em casa dela a uma sessão de danças e canções executadas por almées (dançarinas e músicas de grande qualidade que se produziam em tempos nos haréns). A patroa, Kutchuk-Hanem, era uma árabe síria que fora em tempos amante de Abbas-Pasha e estava exilada naquela cidade. O escritor percorreu a cidade, encontrou o templo dedicado ao deus Chnoupis (Khnoum), mandado erigir por Tuthmés III e então servindo de armazém de algodão, visitou outras ruínas e dirigiu-se, sol-posto, acompanhado de Joseph e de dois marinheiros, a casa de Kutchuk, onde foi calorosamente recebido. Houve, danças, cânticos, músicas e muita bebida. Mas Du Camp queria mais. «Comme tu peux aisément te le figurer, cher Théophile, j'étais content, mais non pas satisfait. Venir sur la terre classique des almées sans voir danser l'abeille me semblait presque une impiété. Je la demandait à Koutchouk-Hanem qui finit par céder à mes prières et surtout au cadeau d'une tabatière à musique que j'avais eu soin d'apporter comme en-cas.» (p. 132) Postos os dois marinheiros fora da porta, colocado um lenço em volta da cabeça do jovem músico, e fazendo prometer a Joseph de não olhar em demasia, as mulheres dispuseram-se em círculo e começaram uma dança rápida. Não houve nem abelha, nem rapariga picada. Tudo simples e francamente idiota. Kutchuk retirou sucessivamente as vestes, fez duas ou três cabriolas, e envergou as suas calças largas onde ficou escondida até ao pescoço, como num saco, durante alguns minutos. As dançarinas estavam cansadas e Du Camp regressou à embarcação. 

Três dias depois os viajantes chegaram à Primeira Catarata, que passam com a ajuda de cinquenta núbios, vigorosos e nus, que amarram a embarcação à margem (com os bens mais valiosos colocados em terra) para a fazer deslizar para lá das quedas de água. Segundo Du Camp, a raça já não é a mesma, os núbios são quase negros, vigorosos e ousados, as núbias não cobrem o rosto e, para lá da catarata caminham despidas enquanto não estão casadas. Du Camp conta a Gautier que a travessia é espectáculo incomparável a todos os que ambos já presenciaram. Do rio, avistam Assuão e a ilha Elefantina, e depois a ilha de Philae. Longe vinham os tempos em que o templo de Isis, na ilha, seria deslocado para outra zona, por causa da barragem que Nasser mandou construir no Nilo. Na aldeia de El-Mahatta, Du Camp reencontra o seu pessoal que torna a colocar a bagagem a bordo. A partir do dia 12 têm um piloto a bordo que os deve conduzir a Wadi-Halfa e trazer novamente a Assuão: «il se nomme Reïs-Haçan; c'est un grand Nubien assez beau, silencieux. et toujours assis à l'avant, regardant vers le Nil.» (p. 135) O escritor não se exime a salientar a beleza dos homens núbios, negros e sólidos, aludindo a um que, não fora a cor, pelos seus cabelos cortados à Caracala poderia ser um procônsul romano.

Continuando a viagem para sul, cruzam-se com barcas carregadas de escravos e de artefactos para venda, supostamente provenientes da região do Darfur. Trazem homens, mulheres e crianças, algumas muito belas. «Toutes ces femmes et ces jeunes filles sont des enfants volés; dans leur pays, un homme de vingt ans, solide, bien fait, vigoreux se paye de six à dix francs; rendu au Kaire il vaut environ trois mille piastres (sept cent cinquante francs).» (p. 139)

No dia 22, às oito da noite, chegam a Wadi-Halfa, 46 dias depois da partida do Cairo. Com um forte khamsin. A luz da lua sobre a areia cinzenta faz um efeito de neve. Um grupo de homens reúne-se na margem para assistir à acostagem. O jovem Ibrahim precipita-se para Du Camp, agarra-lhe as mãos e grita: «Que Dieu te ramène dans ton pays aussi heureusement qu'il t'a conduit avec moi à la seconde cataracte.» (p. 140)

Maxime Du Camp medita: «Pourquoi est-ce que je suis si triste d'être déjà parvenu au terme de mon voyage d'Égypte et de Nubie? Dans quelques jours, on tournera ma barque vers le Kaire; j'ai bien des pays à traverser avant de rentrer en France, je le sais, bien des mois à marcher, bien des nuits à passer sous le ciel; mais c'est égal, je sens que c'est déjà le commencement du retour!» (p. 140)

O escritor inicia o Capítulo III com a chegada a Wadi-Halfa, aldeia imediatamente antes da segunda catarata. A barca com os marinheiros regressa ao Cairo e Du Camp começa a viagem de regresso. Em primeiro lugar Ibsambul (Abu Simbel) onde visita o pequeno e o grande templo mandados erigir por Ramsès II, o primeiro dedicado à deusa Hathor (Venus) e o segundo ao deus Phrè (o Sol), um templo colossal que Du Camp visita e descreve. E visita também o pequeno templo. Como o interior de ambos se encontra mergulhado na obscuridade, Du Camp toma as suas notas à luz das velas transportadas por dois marinheiros que o acompanham. As considerações que tece, numa altura em que a egiptologia dava os primeiros passos, merecem o nosso apreço. Nos últimos 150 anos muita coisa se ficou a saber sobre o Egipto. Nem imaginaria alguma vez Maxime Du Camp que o Grande Templo de Ramsés seria um dia desmontado e recolocado noutro lugar, próximo mas mais elevado, para não ficar submerso pela construção da barragem de Assuão, uma operação também ela faraónica e que só pôde ser realizada com tecnologia e financiamento internacionais.

Afinal, ao contrário do escrito, Du Camp inicia o regresso na barca, supostamente a mesma, já que é dirigida pelo citado Ibrahim. Visita templos na margem oriental e aporta à ilha de Philae. Mas faz algumas etapas por terra. Os templos da ilha são magnificamente descritos, tendo em conta o nível de conhecimentos da época. O escritor recheia a narrativa com as suas experiências pessoais e considerações históricas e religiosas. E fala dos djinns!

O Capítulo IV inicia-se com a chegada de Du Camp a Assuão. Uma elegante núbia propõe-se ir dançar à noite na embarcação, e o escritor acede. A sua dança faz lembrar Herodíade e os marinheiros das barcas paradas em Assuão, bem como os ociosos e os escravos (sic) contemplam o espectáculo. Segue-se Kom Ombo, cujo templo ptolemaico é dedicado especialmente ao deus crocodilo Sobek. A forma como Du Camp escreve os nomes causa, por vezes, algumas dificuldades. O escritor reproduz naturalmente em francês nomes faraónicos, gregos, árabes, em muitos casos misturados. Muitos templos ainda existentes por ocasião da expedição de Bonaparte já não se enxergam nesta viagem de Maxime Du Camp. Foram destruídos para aproveitamento da pedra por Mehmet Ali ou Abbas-Pasha. A viagem prossegue por Esneh até Tebas, onde visitam Karnak, Luqsor, Medinet-Abu, Gurnah, os colossos, etc. Há guias especiais para a margem direita do Nilo e guias particulares para a margem esquerda. Com esta sábia divisão terminou a guerra aberta que existia entre as duas margens. Para a margem direita Du Camp escolheu um antigo escavador de Champollion chamado temsah (crocodilo) e para a esquerda um rapaz da zona, chamdo Abdul-Hamid, muito doce e realmente inteligente. 

Em Luqsor, visita o templo e verifica o sítio de um dos obeliscos, oferecido à França por Mehemet Ali e já então erigido na Praça da Concórdia. Descreve o local mas não menciona a incrição RIMBAUD, pois o poeta só passaria por ali, e deixaria o seu nome inscrito na pedra, algus anos mais tarde. E menciona que uma parte da colunata está rodeada por uma parede que serve de armazém de trigo. Segue-se a visita ao Templo de Karnak, com ampla descrição impossível de reproduzir e de interesse historicamente relativo, já que muitas anotações de Du Camp não se harmonizam com as actuais investigações egiptológicas. Registo que encontrando-se ainda uma noite na sala hipóstila do templo, o guia o adverte: «Kaouadja, il est temps de partir, voici l'heure où les fantômes blancs vont sortir de terre pour aller s'accroupir sur leurs trésors.» (p. 190)

[Devo dizer que visitei uma vez, de dia, o Templo de Karnak e várias vezes, de dia e de noite, o Templo de Luqsor. A visão nocturna do Templo de Luqsor é fascinante.}

Durante o tempo que permaneceu em Karnak, Du Camp pernoitou numa das salas laterais do templo, partilhando o espaço com grandes formigas negras e observado por pardais.

Terminada a visita a Karnak, Du Camp atravessou o Nilo com o guia Abdul-Hamid e dirigiu-se a Medinet-Habu (Templo de Ramsés III). E viu depois os Colossos de Memnon (duas enormes estátuas de Amenófis III). Uma das estátuas canta ao nascer do sol ou em certas ocasiões, confiou o guia a Du Camp, que não a ouviu cantar. [Quando eu visitei os Colossos também o motorista do automóvel que me conduzia me contou a história. Mas a estátua, que teria saudado várias personagens, inclusive o imperador Adriano, não me ligou a menor atenção.]

Depois, os viajantes dirigem-se ao Ramesseum (o templo funerário de Ramsés II), donde contemplam do alto dos terraços [onde eu não pude subir] a paisagem em volta. Em muitos dos hipogeus circundantes dos grandes sacerdotes das dinastias gloriosas dormem árabes meio-nus com as suas ovelhas e as suas vacas. Du Camp visita a casa de um velho grego, vivendo na montanha há mais de vinte anos, sem mulher nem filhos, que compra objectos aos camponeses (por eles encontrados em túmulos isolados) e depois revende aos estrangeiros. No pátio da casa encontram-se trinta ou quarenta múmias já sem faixas. O grego queixa-se da proibição do governo egípcio de traficar antiguidades, pelo que limitou o seu negócio a anéis, colares, escaravelhos, papiros. E lamenta-se do futuro das múmias, não das do pátio de entrada, mas das do andar superior, ainda enfaixadas e repousando nos sarcófagos. 

Próximo, encontra-se a aldeia de Gurnah, onde viviam os construtores de templos e que ainda hoje é habitada. Para terminar a viagem, Du Camp segue para o vale de Biban-el-Moulouk (as portas dos reis), que hoje designamos por Vale dos Reis, O escritor conta-nos que, à época, estão descobertos dezasseis túmulos, tendo sido Belzoni a descobrir o primeiro. Para não fatigar Gautier com as suas explorações, Du Camp descreve-lhe apenas a visita ao túmulo de Seti I.

Iniciando o caminho do regresso, Du Camp despede-se de Tebas. De novo a bordo da sua embarcação, o escritor chega a Kénéh (Qena) onde passa pelo bairro das cortesãs e visita o agente consular francês com a finalidade de obter dromedários e guias para se deslocar a Kôçéir (Al-Qusair ou El-Qoseir), na margem do Mar Vermelho. Partem às quatro e meia da manhã de 18 de Maio. A caravana compõe-se de dois cameleiros, dois dromedários (um para Joseph e outro para Du Camp) e dois camelos com carga. [Depreendo que Flaubert ficou em Qena]. A viagem pelo deserto é difícil e lenta. Em Kôçéir encontram uma multidão de peregrinos em caminho de Meca, pois é o ponto habitual de passagem do Mar Vermelho do Egipto para a Península Arábica. Há turcos vindos do Cairo e de Alexandria, turcomanos, árabes do Egipto e magrebinos de Tunis e da Argélia, estes orgulhosos de serem protegidos franceses, segundo o autor. 

E uma previsão: «Je vis aussi à Kôçéir beaucoup de Wahabis qui se rendaient au Kaire pour affaires commerciales. Tu sais, cher Théophile, que les Wahabis sont à l'islamisme ce que les protestants sont au catholicisme; c'est à eux certainement que reviendra l'empire religieux de l'Orient. C'est aujourd'hui une secte nombreuse, bataillarde et vaillante que, malgré ses fanfaronnades, Méhmét-Ali n'a jamais pu vaincre. Bientôt elle dominera sur l'Arabie tout entière et peut-être se dégorgera sur la Perse par le golfe Persique et sur l'Égypte par la mer Rouge et les déserts du Sinaï. [...] La rigidité première de leurs moeurs s'adoucira, car ils rejettent encore l'usage du café et du tabac; leur doctrine s'appuie uniquement sur le Koran et repousse les traditions et les interprétations dont les docteurs l'ont entouré. Leur foi, comme toutes les fois débutantes, est dure, intolérante, implacable; mais à mesure que les peuples se rangeront vers elle, elle se modifiera et deviendra peut-être le germe fécondant qui doit régénérer ces vieilles races épuisées.» (p. 223)

Regressado a Kénéh, e saudado pelos marinheiros que tinham ficado na embarcação, Du Camp parte para Denderah, onde visita o templo. E continua a sua tarefa fotográfica, com alguns expedientes: «Toutes les fois que j'allais visiter des monuments, je faisais apporter avec moi mes appareils de photographie et j'emmenais un de mes matelots nommé Hadji-Ismaël. C'était un fort beau Nubien; je l'envoyais grimper sur les ruines que je voulais reproduire, et j'obtenais ainsi une échelle de proportion toujours exacte. La grande dificulté avait été de le faire tenir parfaitement imobile pendant que j'opérais et j'y étais arrivé à l'aide d'une supercherie assez baroque qui te fera comprendre, cher Théophile, la naïveté crédule de ces pauvres Arabes. Je lui avais dit que le tuyau en cuivre de mon objectif saillant hors de la chambre noire était un canon qui éclaterait en mitrailles s'il avait le malheur de remuer pendant que je le dirigeais de mon côté; Hadji-Ismaël, persuadé ne bougeait pas plus qu'un terme; tu as pu t'en convaincre en feuilttant mes épreuves.» (pp. 227-8)

A viagem continuou por Abydos, Girgeh, Saouhadji (a actual Sohag) com a mesquita de El-Arif e o túmulo de Murad-Bey, que ali morreu de peste, Syout (Asyut), Beni-Haçan (Beni-Hassan), Minieh (Minya), a ilha de Rodah (Rawdah) até ao Cairo, onde o livro termina.

Escreve Maxime Du Camp a concluir: «C'est ici, cher Théophile, que j'arrêterai mes lettres, car huit jours après mon retour au Kaire j'étais à Alexandrie, et bientôt à Beyrouth, où j'allais commencer mon voyage de terre ferme. Crois-moi, lorsque l'ennui de nos froids pays alonguira ton coeur, lorsque tu voudras entrer en communication directe avec la nature et boire amplement à la source des choses, traverse la Mediterranée, débarque sur la vieille terre d'Égypte, remonte et descends le Nil pacifique, admire ses ruines, enivre-toi de ses paysages, écoute les chants merveilleux qu'il murmure aux oreilles de ceux qui savent le comprendre, marche hardiment dans la solitude des déserts, et tu te sentiras plus jeune, plus fort, plus fécond, plus ardent, et plus près de Dieu!» (p. 238)

Importa referir que o livro apresenta em páginas finais uma fotografia da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém (19 de Agosto de 1850) e outra do templo de Júpiter, em Baalbek (15 de Setembro de 1850), locais que constaram do itinerário de regresso de Du Camp mas não foram abrangidos por este livro, exclusivamente dedicado ao Egipto.

Curiosamente, Maxime Du Camp nunca se refere no livro ao seu companheiro de viagem Gustave Flaubert. Pelo contrário, Gustave Flaubert, no livro que escreveu sobre esta viagem ao Egipto, e que comentarei mais tarde, fala várias vezes de Du Camp.

Também Du Camp omite as suas aventuras sexuais, ao contrário de Flaubert, que terá registado alguns sucessos, que foram expurgados do livro pela sobrinha deste, quando publicou o manuscrito. Mas sabemos, por outras fontes, que os dois amigos frequentaram hammams, onde puderam usufruir da companhia de jovens egípcios, assim como casas de prostituição (mais abertas ou mais disfarçadas) de rapazes e de raparigas. Além de contactos ocasionais, como, por exemplo, os marinheiros da viagem pelo Nilo. Em carta ao seu amigo o escritor Louis Bouilhet, de 20 de Agosto de 1850, Flaubert escreve: «Maxime a sodomisé un bardache dans la grotte de Jérémie.» Esta gruta encontra-se em Jerusalém e o facto terá ocorrido no regresso do Egipto, quando visitavam a Palestina.

Indico a seguir algumas obras dos viajantes franceses no Egipto no século XIX:

sábado, 31 de agosto de 2024

AS CORTES DE COIMBRA DE 1385



A propósito do recente aniversário da batalha de Aljubarrota, reli Aljubarrota: 600 Anos, um livro que reúne as 22 conferências proferidas na Sociedade Histórica da Independência de Portugal aquando do 600º aniversário da famosa batalha.

Trata-se de intervenções notáveis sobre a Batalha e sobre as Cortes de Coimbra, que estiveram a cargo de notáveis historiadores civis e militares como, entre outros, Joaquim Veríssimo Serrão, José Hermano Saraiva, Jorge Borges de Macedo, Carlos Gomes Bessa, Henrique Barrilaro Ruas, António Almeida Brandão, Alberto Vieira de Ascensão, Pedro Soares Martinez, Altino de Magalhães, Alberto Franco Nogueira, Torquato de Sousa Soares, José Carlos Amado, Salvador Dias Arnaut, Francisco da Gama Caeiro ou Nuno Espinosa Gomes da Silva.

As Cortes de Coimbra de 1385, cuja principal, e quase única, fonte de informação é a Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, têm feito correr abundante tinta, tanto mais que o cronista, escrevendo mais de 50 anos depois do acontecimento, não foi testemunha presencial e terá "reconstituído" o ocorrido a partir de um documento realmente existente, de afirmações alheias que não dos protagonistas, da sua imaginação e até de alguma conveniência política circunstancial. E, por isso, a descrição da Crónica é por vezes contraditória, como é salientado por vários dos participantes no Ciclo de Conferências.

Aproveitei para reler também As Cortes de 1385 (1951), de Marcello Caetano, estudo incluído em A Crise Nacional de 1383-1385 (1985). Nessa obra, o Prof. Marcello Caetano dá-nos uma visão de conjunto, sucinta mas suficientemente abrangente desse acontecimento, todavia indispensável para a compreensão da forma como se resolveu a primeira crise dinástica nacional. Assim, ele é largamente citado pelos conferencistas, mesmo quando se trata de corrigir um pequeno lapso, já que Marcello Caetano escreve ter estado presente nas Cortes o bispo de Cidade Rodrigo (p. 11), quando se tratava do bispo de Coimbra (de nome Rodrigo), como notou na sua intervenção o Dr. Alberto Vieira de Ascensão.

Importa notar alguns factos:

1) As Cortes reuniram-se em Coimbra em Março e Abril de 1385;

2) Foi Nuno Álvares Pereira quem aconselhou o Mestre de Aviz a convocar os fidalgos e os homens-bons da cidade de Lisboa para que lhe prestassem homenagem. O primeiro episódio teve lugar em 2 de Outubro de 1384, no Mosteiro de São Domingos, onde o Mestre foi proclamado Regedor e Defensor do Reino. Mas como havia necessidade de obter recursos financeiros para a prossecução da guerra e definir o problema da chefia, assuntos da competência das Cortes, foram estas convocadas para Coimbra. Não é claro se a questão da chefia fazia inicialmente parte do objecto das Cortes, ou tão só o financiamento da guerra. Mas as coisas foram conduzidas pelos partidários do Mestre para que ela fosse incluída na "ordem de trabalhos";

3) Estiveram presentes, como se sabe pelo "Auto da Eleição", e segundo a tradição, representantes dos três estados. O arcebispo de Braga e a maioria dos bispos portugueses, pelo clero, 72 fidalgos, pela nobreza, e procuradores de 31 cidades e vilas, pelo povo;

4) As Cortes tiveram lugar nos Paços d'El-Rei e iniciaram-se a seguir à chegada a Coimbra do Mestre d'Aviz, que ocorreu em 3 de Março de 1385, logo, alguns dias depois;

5) Houve uma Inquirição sobre a legitimidade dos filhos de D. Inês de Castro, que decorreu de 30 de Março até 3 de Abril. O Auto de Eleição do Mestre de Aviz como rei tem a data de 6 de Abril. A Carta de Confirmação dos privilégios da cidade de Lisboa bem como os diplomas que despacham os capítulos das Cortes são datados de 10 de Abril;

6) Deve ter havido reuniões plenárias e reuniões separadas, sendo plenárias, pelo menos, a de abertura em que o Dr. João da Regras fez o discurso da proporção bem como a que deliberou a eleição de D. João I. Em reuniões separadas tratou-se do financiamento da guerra e dos agravamentos dos povos, assuntos que não estiveram condicionados pela solução dinástica.

Aquando da reunião das Cortes o país estava dividido em três partidos relativamente à sucessão de D. Fernando I. O "partido legitimista" considerava D. Beatriz, filha de D. Fernando I e de D. Leonor Teles, e mulher de D. João I, rei de Castela, como a única herdeira legítima, nos termos da Escritura de Salvaterra de Magos (2 de Abril de 1383), que assim estabelecia. O "partido legitimista-nacionalista" receava que a sucessão com D. Beatriz pusesse em causa a independência nacional, submetendo-a a Castela. Por isso, defendia que a herança cabia aos filhos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro, D. João de Castro ou, no impedimento deste, na altura preso em Castela, seu irmão D. Diogo de Castro. O "partido nacionalista" sustentava que o único herdeiro capaz de assegurar os interesses de Portugal era D. João, Mestre de Aviz, filho de D. Pedro I e de Teresa Lourenço, apesar de bastardo e clérigo, situação que a Santa Sé resolveria.

É claro que o "partido legitimista", solidário com Castela, não esteve representado nas Cortes de Coimbra. O "partido legitimista-nacionalista" era chefiado por Vasco Martins da Cunha e por seus filhos. Aceitava a regência do Mestre de Aviz, enquanto D. João de Castro estivesse prisioneiro em Castela. A Chronica do Condestabre, obra anónima, fornece pormenores interessantes a esse respeito. O "partido nacionalista" era constituído pela "arraia-miúda" e alguns homens-bons, à frente dos quais estava D. Nuno Álvares Pereira.

A notável e hábil argumentação do Dr. João das Regras, sujeita a algumas variações na Crónica de Fernão Lopes, pode resumir-se no seguinte:

a) D. Beatriz, para além do seu casamento com o rei de Castela, era filha ilegítima de D. Fernando. Quando este casou com D. Leonor Teles ela estava casada com João Lourenço da Cunha. Por outro lado, D. Beatriz era cismática, pois Castela reconhecia não o Papa de Roma mas o de Avinhão;

b) Os filhos de D. Inês de Castro eram ilegítimos, pois D. Pedro estava casado com D. Branca de Castela à data do casamento que dizia ter celebrado com aquela [o que é falso, foi um expediente do Dr. João das Regras, pois o casamento com D. Branca nunca ocorreu. E também não há provas que D. Pedro tenha casado com D. Inês, já que tal não foi reconhecido pelo Papa (Bula Nuper per certos ambaxiatores);

c) O próprio rei D. Fernando, filho do casamento de D. Pedro com D. Constança tinha também sido um rei ilegítimo, pois D. Pedro se encontrava casado com D. Branca [o que é falso, como se escreveu acima];

d) O Mestre de Aviz era igualmente um filho ilegítimo, como se sabia.

Tudo isto para lá de problemas de parentesco que teriam exigido dispensas papais, mas que não cabe aqui detalhar.

A conclusão pretendida por João das Regras era a de que o trono se encontrava vago e seria necessário eleger um rei, visto que todos os pretendentes eram ilegítimos. A sua argumentação, e também a persuasão militar do Condestável, levou os presentes, atendendo ao estado de necessidade do Reino e atendendo a estarem preenchidos os requisitos de elegibilidade do Mestre, a promoverem D. João à "alta dignidade e estado de rei". 

O Auto da Eleição é o documento fundamental desta fase do funcionamento das Cortes de 1385 e foi nele que Fernão Lopes se baseou para redigir, na sua Crónica, o que nelas se passou. Foi escrito em português e vertido em latim para ser enviado à Santa Sé, também com o fim de impetrar a ratificação da eleição, feita sem embargo de não ter havido prévia dispensa do defeito do nascimento e da condição clerical. Após duas embaixadas enviadas a Urbano VI, uma terceira embaixada enviada a Bonifácio IX obtém a satisfação do pretendido. O Soberano Pontífice emite a Bula Quia rationi congruit et convenit, de 29 de Janeiro de 1391, em que certifica que Urbano VI absolvera D. João I da excomunhão em que pudesse ter incorrido, dispensando-o do impedimento do nascimento para o exercício da função real e dos votos de castidade que como professo da Ordem de Cister o impediam de casar e ratificando desde logo o casamento com D. Filipa de Lencastre; e a Bula Divina disponente clementia, de 27 de Janeiro de 1391, concedendo a D. João I o desligamento dos votos de pobreza, obediência e castidade absolvendo-o do perjúrio que cometeu, legitima o seu nascimento e ratifica o seu casamento sem embargo de quaisquer impedimentos existentes.

A primeira bula destina-se a certificar urbi et orbi a regularização da situação do Mestre concedida por Urbano VI; a segunda bula, acto pessoal de Bonifácio IX, destina-se a tranquilizar a consciência de D. João I. Estas formalidades eram indispensáveis já que se vivia na Europa numa respublica christiana que subordinava os príncipes ao juízo supremo do Papa e a bênção deste vencia todos os escrúpulos. 

Na sua Monarquia Lusitana, Fr. Manuel dos Santos descreve com pormenor a cerimónia da coroação e aclamação pelas ruas da cidade, então Coimbra, mas realmente não houve coroação (nunca houve em toda a I Dinastia) e a cerimónia litúrgica terá sido apenas a missa de pontifical pelo bispo de Lamego com a assistência do novo rei no sólio. 

Como se disse acima, D. João I de Castela havia prendido D. João de Castro para que ele não fosse um estorvo às pretensões de sua mulher D. Beatriz. Mas dada a situação posterior, o rei de Castela libertou-o e nomeou-o regente de Portugal em nome dos reis castelhanos, por diploma datado de Burgos, de 24 de Março de 1386, conforme documento descoberto em Madrid pelo embaixador de Portugal (1945-1953) Dr. Carneiro Pacheco, mas o acto não deve ter chegado a ter efeito.

Deve ainda dizer-se que uma das principais razões que motivou a crise de 1383 foi a completa animosidade do povo de Lisboa em relação a D. Leonor Teles (que ficara como Regente, nos termos da Escritura de Salvaterra), já manifestada aquando do seu casamento com D. Fernando mas principalmente pelas suas ligações a Castela e pela sua relação adúltera com João Fernandes Andeiro, conde de Ourém. Entre os mais ardentes defensores da eliminação de Andeiro estava Álvaro Pais, figura notável de Lisboa, que na sua intervenção o Dr. José Carlos Amado classifica como membro da classe média, recusando a designação de burguês, já que não aceita a identificação da classe média com a burguesia «porque me parece indiscutível que, num esquema minimamente objectivo de composição social, os grandes ou médios mercadores e os mesteirais mais poderosos, não esgotam em Portugal a zona sociológica, nem as correspondentes formas de mentalidade e de comportamento, de uma camada intermédia da classe popular e da classe senhorial. Há a considerar ainda , pelo menos, os homens-bons dos concelhos, os letrados, os oficiais - usando esta palavra no sentido que lhe dá D. Duarte.» Foi Álvaro Pais que instigou o Mestre a matar o conde Andeiro, garantindo-lhe o apoio do povo. E foi ele que  correu pelas ruas de Lisboa aos gritos de "Matam o Mestre" para que o povo acorresse ao Paço da Rainha, onde D. João acabava de assassinar Andeiro e que teve de se mostrar de uma janela para provar que estava vivo e evitar maiores desacatos.

Pode dizer-se que Álvaro Pais foi a alma da revolução de 1383.

Este texto não passa de um singelo resumo dos acontecimentos de 1383-1385 e não tem outra pretensão de que recordar a primeira crise dinástica da Monarquia Portuguesa.

Concluo, citando Marcello Caetano: «Estamos, pois, perante um documento do mais vivo interesse histórico-jurídico [Auto da Eleição], porventura o de maior valor para a história do nosso direito público medieval, já que é apócrifa a acta das Cortes de Lamego. Assim resulta dos princípios nele exarados relativamente à sucessão hereditária da coroa, à vacância desta e devolução ao Reino do direito de eleição do rei, à aceitação do eleito e aos poderes da Sé Apostólica no reino de Portugal.» (p. 36)

VALETE, FRATRES