quinta-feira, 3 de abril de 2025

O D. SEBASTIÃO, DE ANTÓNIO SÉRGIO

A propósito de Exortação à Mocidade, de Carlos Malheiro Dias publicou António Sérgio, em 1924, O Desejado, em que refuta o elogio que aquele consagra a D. Sebastião na referida obra, apresentado-o como modelo para a juventude portuguesa.

Numa extensa contestação das virtudes atribuídas ao monarca, Sérgio considera-o pateta, estúpido, pedaço de asno, louco, egoísta e mais epítetos. Trata-se de uma longa dissertação filosófica, de pendor racionalista, servida por um vocabulário requintado (talvez em exagero), com a qual o polemista antecede a obra, intitulando-a de  Carta-Prefácio a Carlos Malheiro Dias, e onde escreve: «A sua argumentação sebastianófila pode reduzir-se a três ideias: 1) O intelecto é incapaz para sentenciar nesta questão, onde só vale "o dom do sentimento"; e as conclusões a que aportei, sendo um produto da inteligência, devem - por isso mesmo - ser rejeitadas; 2)  A opinião anti-sebástica (a minha) tem certo consenso com a demagogia, e com o sórdido materialismo dos nossos tempos mercantis; 3) O Desejado foi a África por "entusiasmo patriótico", e é ele a vera "reincarnação do Portugal do século XV".» (p. XII). 

Rejeitando a argumentação de Carlos Malheiro Dias e opondo-lhe a sua, que não é possível resumir aqui, conclui: «Poderia compor, também eu, uma Exortação à Mocidade, a contraditar o seu discurso naquela parte que me diz respeito, ou então traçar um painel histórico, mostrando o fundado do meu juízo acerca do louco de Alcácer-Quibir, - juízo que atacou com rara eloquência, mas sem razão, - e contra a Razão; decidi, porém, proceder pedagogicamente. [...] O meu Amigo é um inspirado; mas é também e ao mesmo tempo uma inteligência superiormente fina. "Apelo de vós para vós próprio", e dos seus brados para a sua Razão.» (pp. XXX-XXXI)

Para sustentar as suas razões, Sérgio procede depois à divulgção de sete testemunhos mais ou menos coevos que suportam os fundamentos da sua Carta-Prefácio: Avisos do Céu, de Torres de Lima; Carta a um Abade da Beira, de autor anónimo; Relação da Jornada de El-Rei D. Sebastião, de autor anónimo; Les Voyages, de Vincent Leblanc; Miscelânea do sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrogão Grande: aparecimento de sua santa imagem, fundação do seu Convento e da Sé de Lisboa... perda de El-Rei D. Sebastião, de Leitão de Andrada; Jornada de África, de Jerónimo de Mendonça; Crónica de El-Rei D. Sebastião, de Frei Bernardo da Cruz. Como escrevemos aqui esta Crónica foi erradamente atribuída a Frei Bernardo da Cruz por Alexandre Herculano, mas o seu autor é António de Vaena. 

- Avisos do Céu, de Torres de Lima, é a 4ª edição de Compendio das mais notáveis cousas que no Reino de Portugal aconteceraõ até o ano de 1627, publicado em 1630, agora com o título Avizos do ceo, successos de Portugal, com as mais notáveis cousas que aconteceraõ desde a perda d’El-Rey D. Sebastiaõ até o anno de 1627. com outras cousas tocantes ao bom governo e diversidade de Estados, editado em 1761. António Sérgio transcreve apenas algumas páginas da obra de Luiz de Torres de Lima, as que mais interessam, onde ele refere a passagem de um cometa (um aviso do céu), o fogo junto aos paços de Santos (outro aviso), a tentativa de dissuasão da expedição pelo conselho de guerra reunido em Lisboa e a do duque de Alba, em Guadalupe, e a opinião de que se devia tomar Larache em vez de se avançar contra o Moluco. A todos D. Sebastião recusou dar ouvidos, marchando para um fim previsto e inevitável.

- Carta a um Abade da Beira, uma carta que apareceu publicada por Lima Felner, em 1849, no Bibliófilo, segundo uma cópia manuscrita que ele possuía. Do 1º ao 73º item o autor descreve a desolação de Alcácer-Quibir e a irresponsabilidade em ter sido travada batalha. Está datada de 25 de Dezembro de 1578.

- Relação da Jornada de El-Rei D. Sebastião, de autor anónimo, foi também publicada por Lima Felner, no Bibliófilo, em 1849, o qual afirma ter conferido a sua cópia por outra existente na Biblioteca da Ajuda. Relata episódios dos preparativos para a expedição.

- Les Voyages, de seu título completo Les Voyages fameux du sieur Vincent Leblanc, marseillois qu'il a faits depuis l'aage de douze ans iusque à soixante aux quatre parties du monde... rédigées fidéllement sur ses Mémoires por Pierre Bergeron, parisien, está datada de 1649. Vincent Leblanc acompanhou um Dom Guilherme que o rei de França, Henrique III, enviou como embaixador ao sultão de Marrocos. Ambos desembarcaram em Larache, donde seguiram para Fez para se encontrarem com o Moluco. O trecho reproduzido é relativo à campanha de D. Sebastião, e foi traduzido por Oliveira Martins.

- Miscelânea do sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrogão Grande: aparecimento de sua santa imagem, fundação do seu Convento e da Sé de Lisboa... perda de El-Rei D. Sebastião foi publicada em Lisboa, em 1669, por Mateus Pinheiro. O seu autor, Miguel Leitão de Andrada, nasceu em 1555 e interrompeu os estudos universitários para se alistar no terço dos aventureiros. Ficou cativo na batalha, conseguindo evadir-se. Seguiu depois o partido de D. António, a cuja casa pertencia, pelo que foi perseguido e esteve preso por ordem de Filipe II. O livro contem vinte diálogos. É no sétimo diálogo (que Sérgio transcreve) que o autor - contando pela boca da personagem "Devoto" alguns sucessos da sua vida - diz o que viu na expedição a África e na batalha de Alcácer-Quibir.  

- Jornada de África é uma obra de Jerónimo de Mendonça (aproximadamente 1548-1607) que fez parte do terço dos aventureiros e ficou cativo em África, sendo, por isso, testemunha ocular dos acontecimentos. Escreveu a Jornada de África para contestar várias asserções de Jeronymo Franchi de Conestaggio, no livro Dell'unione del Regno di Portugallo alla corona di Castiglia (1585), que considerava caluniosas e ofensivas para os portugueses. A obra foi publicada em 20 de Janeiro de 1607, dedicada a D. Francisco de Sá de Menezes e compreendendo três livros: o Livro Primeiro, dividido em 7 capítulos, conta as razões de D. Sebastião para passar a Marrocos, a partida da armada, a batalha e o seu desenlace; o Livro Segundo, dividido em 18 capítulos, conta o resultado da batalha, a repartição dos cativos, a vida destes em Marrocos, as fugas e os resgates; o Livro Terceiro, dividido em 14 capítulos, evoca a vida e a morte dos "sete moços" mártires. António Sérgio transcreve os trechos mais significativos do Livro Primeiro, comentando sobre o autor: «A impressão que nos dá é a de que escreve por conta da Companhia de Jesus e dos fidalgos aceitos ao monarca, que a voz pública apontava como cúmplices no desastre. O empenho que põe em defender tais personagens e em fazer o seu elogio é demasiado indiscreto e comprometedor (se nos permitem o galicismo); defende-as excessivamente, a pontos de ser frequente o contradizer-se, bem como o desmentir afirmações de Franchi que são confirmadas por todos os restantes testemunhos que possuímos.»

- Crónica de El-Rei D. Sebastião, um texto atribuída erradamente a Frei Bernardo da Cruz, como referimos acima e que se deve a António de Vaena.

* * *

Tendo Carlos Malheiro Dias respondido a António Sérgio na 2ª edição (1925) de Exortação à Mocidade, que já comentámos,  resolveu Sérgio publicar Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a Questão de O Desejado, que será objecto de um próximo post.

 




quarta-feira, 2 de abril de 2025

EXORTAÇÃO À MOCIDADE

Em 1924, Carlos Malheiro Dias publicou Exortação à Mocidade, que seria reeditada em 1925, livro que agora comentamos, com o título Exortação à Mocidade, precedida de uma Resposta à Carta-Prefácio do Senhor António Sérgio, dedicado a Antero de Figueiredo, com uma dedicatória pessoal manuscrita a D. Luiz de Castro.

O autor fora convidado, em 1924, pelo  poeta Eugénio de Castro, então director da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a proferir na Sala dos Capelos daquela instituição, uma conferência sobre assunto livremente escolhido. Todavia, em vésperas da sessão, foi noticiado que ocorreriam desacatos provocados por estudantes extremistas caso a conferência viesse a ocorrer. Oportunamente prevenido, entendeu Carlos Malheiro Dias cancelar o evento, decidindo editar posteriormente o texto preparado, para que o mesmo não repousasse no olvido.

Nesta exortação aos jovens estudantes portugueses, propõe-se o autor exaltar o patriotismo e os valores do espírito. Recordando os anos de "exílio" que viveu no Brasil, escreve: «Lá, a mais antiga das duas democracias era uma nação apenas adolescente, coroada de esperança; aqui, a mais jovem das duas repúblicas, uma nação anciã, aureolada de glória. E entre estas democracias, uma concebida na matriz anglo-americana, a outra fundida nos moldes da Revolução Francesa, conquanto ambas idênticas na substância ancestral, produziam-se divergências terminantes e irredutíveis. Aquela evoluía no sentido da liberdade garantida pela ordem a mais autoritária; esta definhava lacerada pela insubmissão a um poder exíguo e oscilante, que frequentemente buscava auxílio nas truculências da paixão popular. Numa, o livre pensamento, sob a pressão combinatória de influências sectárias, ensaiara renovar a experiência funesta da Revolução Francesa, substituindo à fé religiosa e multi-secular a soberania leiga da razão; noutra, a filosofia comtista, que a organizara, cedia o passo a uma avassaladora onda espiritual, que anualmente conduz os cadetes da Escola do Exército aos templos católicos para a benção solene das suas espadas.» (pp. 13-14)

«Patriotismo e materialismo são sentimentos antagónicos. Uma demagogia nunca foi patriótica, a não ser por instinto de conservação, quando atacada. Nesse caso, o instinto de defesa coincide com o interesse de preservação da pátria.» (p. 35)

«Insisto em declarar-vos que a doença nacional tem mais de um século, e o seu primeiro e alarmante sintoma remonta a 1807, quando uma deputação da maçonaria foi indecorosamente a Sacavém, vestida à francesa, apresentar as boas vindas a Junot. Gomes Freire, que a literatura romântica vos apresentou como um mártir do patriotismo, foi a encarnação maléfica e desventurada da geração portuguesa da Revolução de França; e essa Revolução ateia e regicida ainda hoje a temos no sangue, a intoxicar-nos.» (p. 50)

«Não, mocidade! Quem tem razão não é o racionalista, mas o poeta visionário. D. Sebastião foi uma reencarnação do Portugal do século XV: o seu misticismo, a sua bravura, a sua pureza reencarnadas.» (p. 52)

«D. Sebastião "era uma alma nobre e teve uma inspiração política da idade média; quis ser descendente dos reis cavaleiros, dos reis municipais, dos reis chefes da nação cristã, no meio de uma nação de bufarinheiros, de sobrecargas, de judeus agiotas, de cortesãos e de tartufos".» (pp. 53-54)

«Não vos deixeis embaír nem atemorizar. A Pátria está no Pretório. Os facciosos, em clamor e tumulto, agitadamente se recusam a deixar salvá-la, invocando a sua lei. Mocidade, que vais fazer? Terás, como Pôncio Pilatos, receio de desagradar ao poder? Vais lavar as mãos como ele e contentar-se em dizer à turba desvairada que a ruína da pátria recaia sobre ela...?» (pp. 59-60)

«Somos a decana de todas as nações da Europa na sua actual configuração territorial; e só nos falta que a consciência da nossa soberania unitária se prolongue às dispersas províncias ultramarinas para que Lisboa volva a ser a cabeça de um grande império, a metrópole dos Estados Unidos de Portugal.» (p. 62)

«Mocidade! Quando amanhã, armada de fé inquebrantável, desceres desta colina espiritual, espero que, à semelhança do cândido Parsifal nos jardins maléficos de Klingsor, resistirás às tentações da feiticeira e lograrás arrancar com juvenil denodo das mãos da Ignorância a lança milagrosa cujo contacto há de salvar a ferida da Pátria!» (p. 64) 

* * * * *

A este livro respondeu António Sérgio com o livro O Desejado, precedido de uma Carta-Prefácio a Carlos Malheiro Dias (1925). A presente edição que comentamos é antecedida da Resposta à Carta-Prefácio do Senhor António Sérgio. 

Assinalamos a seguir os pontos mais importantes da réplica de Carlos Malheiro Dias a António Sérgio, que deverá ler-se após a argumentação de Sérgio em O Desejado, que apresentaremos em próximo post deste blogue.

Escreve Carlos Malheiro Dias: «A personalidade despótica do sr. António Sérgio, as suas zombarias sarcásticas, a ênfase professoral com que se me dirige, a intenção manifesta de me reduzir à posição de um subalterno, de me desacreditar como romântico destituído de discernimento, sem excluir o mixto enervador de afabilidades e de ironias, de cumprimentos e de escárnios, de blandícias e ferroadas, que se alternam na sua Carta felina, impõem-me o dever, a que me submeto com desgosto, de analisar ao mesmo tempo as suas intenções e o facciosimo do seu juízo crítico.» (pp. XVI-XVII)

E continua: «Apelando "dos meus brados para a minha Razão",  esperando de mim uma sentença "sem paroxismos nem crispações", o sr. António Sérgio parece esquecer que nas vinte e cinco páginas do seu prefácio, paroxisticamente, crispadamente, faltando à compostura e reverência devidas à sua cultura, à sua hierarquia mental e à gravidade da História; repudiando os conceitos que esculpira na enfatuada dedicatória da sua obra; perdendo o "sentimento da medida, da modéstia e do senso crítico"; desobedecendo à disciplina mental a que se confessa subordinado; desatendendo o seu conselho de analisar "sem paixão nem preconceito";  - invectiva D. Sebastião e exaltadamente lhe chama "pateta, imbecil, fanfarrão, mentiroso, estúpido, perfeito pedaço de asno, desbocado, rufião, bruto, cruel, monstro, egoísta, miúdo, vesânico, insensato, tonto, zote, bobo, idiota, bronco, torpe e vil"! E tem, depois disto, o sr. António Sérgio o topete, o desplante de invocar o seu "auto-domínio"!» (pp. XVII-XVIII)

Contesta depois Carlos Malheiro Dias os "Testemunhos Históricos" evocados por António Sérgio em O Desejado,  a que chama "inventário esquelético", contrapondo-lhe outras fontes a que atribui maior importância e fidedignidade. 

Não é possível sintetizar aqui as cem páginas da Resposta de Carlos Malheiro Dias, em que desmente que tenha apresentado D. Sebastião à mocidade como "seu herói exemplar" ou que tenha proclamado o culto do "Desejado". Às considerações de Sérgio, que invoca Manuel Bento de Sousa, no seu livro O Doutor Minerva, Malheiro Dias entende que o retrato que aquele faz de D. Sebastião é uma hipótese de médico e não a interpretação de um historiador. Segundo o autor, «O Encoberto não é hoje o rei vencido pelos mouros; é Portugal flagelado pelas calamidades da hora presente, e que todos os patriotas de coração e consciência aspiram a ver reposto na estima e no conceito universais.» (pp. LXX-LXXI)

E conclui: «O Patriotismo - eis o nosso Messias! Mas Patriotismo militante, animado pela fé, embelezado pelo ideal: Patriotismo de Sentimento e de Razão - pois, como advertia o bispo de Silves a D. Sebastião, "a vontade por si, sem obediência do entendimento, he desconcerto".» (p. CVIII)

A obra de Carlos Malheiro Dias vale pelo estilo mas a argumentação aduzida  é insustentável nos nossos dias, ainda que a sua formulação seja brilhante.

 

domingo, 30 de março de 2025

D. SEBASTIÃO, UMA VISÃO BRASILEIRA

O romancista e jornalista brasileiro Aydano Roriz publicou em 2004 O Desejado - A Fascinante História de Dom Sebastião, em que aborda o período que vai dos últimos tempos de D. João III até à morte de D. Sebastião. Trata-se de um livro muito bem escrito, em português de Portugal (adaptação da edição brasileira), empregando um estilo elegante que vai, contudo, vulgarizando-se com o correr das páginas.

Os capítulos seguem em geral a ordem cronológica mas as datas estão praticamente ausentes do texto, o que poderá constituir um problema para os menos industriados na matéria mas facilita a arrumação dos assuntos sem a preocupação rigorosa da ordem dos acontecimentos.

O autor revela excelente cultura e está pormenorizadamente informado dos factos do período que descreve, notando-se apenas leves imprecisões, exceptuando o caso notório da morte do rei D. Duarte, quando afirma (p. 121) que ele morreu a combater os mouros, o que é manifestamente falso.

Quanto à interpretação dos acontecimentos, Aydano Roriz permite-se algumas fantasias, o que empresta à obra um certo picante. 

Não interessando discorrer sobre os eventos propriamente históricos, que já foram por nós abundantemente referidos em vários anteriores posts deste blogue, assinalaremos os casos que decorrem da imaginação criativa do autor.

- O rei D. Manuel I casou pela terceira e última vez em 1518 com D. Leonor de Áustria (1498-1558), irmã de Carlos Quinto, que fora prometida ao príncipe D. João (futuro D. João III).  Mas D. Manuel I morreu em 1521, sem filhos deste casamento. Viúva, D. Leonor casaria novamente em 1530 com o rei Francisco I de França. Dado que D. Leonor permaneceu algum tempo em Lisboa depois da morte do marido, antes de regressar a Espanha e de ir depois para França, o autor imagina que o jovem D. João III manteve uma ligação sexual com a madrasta, praticamente da sua idade, e com a qual esteve até para se consorciar após a morte do pai. Aliás, era essa a vontade de muitos portugueses. A efabulação vai ao ponto de relatar que desse relacionamento nasceu uma criança e que D. Leonor ficou oculta num mosteiro de Espanha a fim de a dar à luz. (p. 34)

- O rei D. Sebastião nasceu hermafrodita, com um pequeno pénis e uma pequena vagina e com a bolsa escrotal murcha.  Assustado, D. João III confidenciou o caso ao seu amigo de muitos anos, o conde de Castanheira, encarregando-o de procurar um físico para esclarecer a situação. O conde conseguiu trazer a Portugal o cristão-novo João Rodrigues (que ficou conhecido como Amato Lusitano) para se informar sobre o futuro do futuro rei de Portugal. O famoso médico e erudito declarou que nada havia a fazer, limitando-se a receitar algumas substâncias para desenvolver os humores masculinos. O assunto permaneceu na maior confidencialidade, dele havendo conhecimento, além de D. João III e de D. Catarina, o cardeal D. Henrique e o conde de Castanheira. (p. 46)

- Em 1552, Lourenço Pires de Távora foi buscar a Castela a princesa D. Joana, filha de Carlos Quinto e irmã de Filipe II, para se casar com D. João Manuel, filho de D. João III. No percurso para Lisboa, a comitiva pernoitou em diversos locais, tendo o fidalgo e a princesa dormido muitas noites sob o mesmo tecto. Como D. Joana engravidou muito rapidamente, e haviam sido surpreendidos a trocar confidências, muita gente pensou que, apesar de muita devota, ela tivesse tido relações com Lourenço de Távora, que seria o verdadeiro pai de D. Sebastião. (p. 55)

- A piedade de D. Joana foi bem conhecida. Após muitas tentativas, conseguiu ingressar, com autorização do Papa, na Companhia de Jesus, com o nome de Mateo Sánchez. Tratou-se de um assunto da maior confidencialidade, já que a Ordem não admite mulheres. A princesa fundaria o Mosteiro de las Descalzas Reales, em Madrid.  (p. 73)

- A mesma D. Joana terá sido violada, com grande violência, por seu sobrinho o príncipe D. Carlos, filho de Filipe II, que a surpreendeu no leito. O príncipe, que dava sinais de loucura, foi mais tarde preso pelo pai e apareceu enforcado na sua cela. (p. 206)

Mencionados estes episódios, que não são inverosímeis, não alongaremos o texto. Resta frisar que o autor trata sempre D. Sebastião com ironia ou mordacidade, salientando o carácter autoritário e irreflectido do rei.

 

quarta-feira, 26 de março de 2025

CARTA AOS ESTUDANTES PORTUGUESES

Em 1922, Carlos Malheiro Dias editou a Carta aos Estudantes Portugueses, que fora publicada anteriormente no jornal "O Século".

Trata-se de um texto, dirigido aos jovens estudantes portugueses, em que o autor manifesta as suas preocupações com o futuro do país, salientando a importância que cabe aos jovens na prossecução de um destino nacional.

É uma primeira exortação à mocidade portuguesa (seguiu-se-lhe mais tarde a Exortação propriamente dita, 1924), incentivando-a a assumir responsabilidades cívicas e patrióticas.

A Carta inclui uma espécie de epígrafe: - "Amemos o Brasil !" -, país que Malheiro Dias muito estima e elogia, e nela o autor exalta o nacionalismo brasileiro, que não considera anti-português nem anti-tradicionalista, e critica o nativismo, que estima ser um "remanescente anacrónico do modesto conflito da emancipação". Desmente que o presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, seja um lusófobo inconvertível e transcreve a "Exortação" deste aos académicos de São Paulo.

Termina, escrevendo: «Moços da minha terra, amemos Portugal como o Presidente do Brasil ama a sua Pátria. E o nosso amor, reintegrando-nos na plenitude da nossa dignidade e da nossa honra histórica, nos restituirá o respeito de que decaímos e a estima que desmerecemos. Nas paredes arruinadas do lar pátrio pendem as panóplias, as liras, os arados e os velames com que os antepassados combateram, cantaram, lavraram e navegaram. Retomemos essas alfaias venerandas, reacendamos a fé em nossos corações e renasçamos!».

A anteceder a Carta, o autor publica "Aos que não Querem ser Cúmplices", texto em que denuncia as injúrias e as invectivas de Guedes d'Oliveira, professor e director da Escola de Belas Artes do Porto e de Homem Christo, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que trata de panfletários, e que o atacaram a propósito da publicação da Carta aos Estudantes Portugueses em "O Século". E escreve: «A insólita atitude assumida por esses dois homens vulgares ante a explosão dos sentimentos lusófobos de algumas dúzias de brasileiros, isolados entre a indiferença, senão a reprovação geral, representa uma das mais significativas e intoleráveis manifestações da iconoclastia grosseira e da arrogância que anima esta espécie maligna de demagogia letrada, este terrorismo panfletário, só possíveis no período de depressão moral em que vivemos».

 Esta polémica antecedeu a que Carlos Malheiro Dias manteve com António Sérgio e que analisaremos posteriormente.


domingo, 23 de março de 2025

BREVE ENSAIO SOBRE CARLOS MALHEIRO DIAS

Foi publicado em 1992, pela "Biblioteca Breve", do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (uma colecção que tantos serviços prestou aos leitores portugueses), o breve ensaio Carlos Malheiro Dias na ficção e na história, de João Bigotte Chorão.

Trata-se de um pequeno livro sobre a vida e a obra de Carlos Malheiro Dias (1875-1941), analisando o seu trajecto entre a história e a ficção, sem esquecer a crónica e a polémica célebre que manteve com António Sérgio.

Na ficção, assinalam-se Filho das Ervas, Os Teles de Albergaria, Paixão de Maria do Céu, Cartas de Lisboa, O Grande Cagliostro, A Vencida, A Esperança e a Morte, A Verdade Nua e Amor de Mulher.

Na história destacam-se Quem é o Rei de Portugal, Do Desafio à Debandada (I - O Pesadelo; II - Xeque ao Rei), Zona de Tufões; Em Redor de um Grande Drama/Subsídios para uma História da Sociedade Portuguesa - 1908-1911; Entre Precipícios... (Crónicas Políticas dos Últimos Tempos); História da Colonização Portuguesa do Brasil; O "Piedoso" e o "Desejado".

Na doutrina e ensaio salientam-se Carta aos Estudantes Portugueses; Exortação à Mocidade; Um Ensaio sobre o Pintor Henrique Medina; Pensadores Brasileiros.

Lamenta-se que João Bigotte Chorão tenha eliminado da Bibliografia o primeiro romance do escritor, A Mulata, publicado no Brasil. É certo, que devido ao escândalo que então provocou, Malheiro Dias tinha-o retirado da Lista das Obras, mas nada impedia que, neste trabalho, e morto o autor há muitos anos, o romance aparecesse agora no seu devido lugar.

Muitos especialistas não concedem a Carlos Malheiro Dias o estatuto de historiador, até porque não utilizava os métodos próprios do ofício.  Citamos: «Historiador, e não apenas escritor, talentoso escritor, de temas históricos, como reconhece Marcello Caetano. Discordando de Jaime Cortesão, reticente quanto à condição de historiador de Malheiro Dias, a quem sobrava talento literário mas falecia o método histórico, entendia, pelo contrário, Marcello Caetano que ele dispunha da informação, do rigor, da seriedade do historiador. Reportando-se à História da Colonização Portuguesa do Brasil, afirma Marcello Caetano: "A bibliografia de que se serve é abundante, citando os mais autorizados autores brasileiros e portugueses, sempre com grande escrúpulo: nomes e títulos corretos, indicação de página exata, transcrições fiéis. O mesmo escrúpulo de citação se nota quanto à procedência e localização dos documentos transcritos, ou invocados, procedendo com um cuidado que nem sempre historiadores ilustres [...] tiveram nos seus escritos". Daí que Marcello Caetano se sinta autorizado a concluir que Carlos Malheiro Dias foi historiador, e notável historiador. Mais ainda: que a sua obra de historiador sobreleva "a sua restante obra", "por mais valiosa que ela seja".» (p. 82) Esta afirmação de Marcello Caetano foi feita na conferência que proferiu no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 10 de Dezembro de 1975, em sessão comemorativa do centenário do escritor.

Quanto à sua polémica com António Sérgio, abordá-la-emos em próximos posts. 

Sendo monárquico convicto, Malheiro Dias, sem abdicar das suas convicções, cultivou um espírito de convivência com os seus pares, mesmo com os republicanos mais intransigentes, reconhecendo o seu mérito, quando era o caso. Por exemplo, prefaciou Jardim das tormentas, de Aquilino Ribeiro, o qual esteve presente no seu funeral, em 1941, e em que Júlio Dantas fez o elogio fúnebre, no cemitério do Lumiar, dizendo que "nenhum dos romances de Malheiro Dias [...] é tão comovedor como o romance da sua própria vida", evocando o homem e o seu drama, defendendo que na sua obra "se conjugam o vigor de Camilo e a elegância de Eça, e em que todos os géneros se encontram opulentamente representados" e terminando protestando que não é aquele "pobre cemitério de toda a gente" o cenário para despedir-se de Malheiro Dias, mas o Panteão, onde o devia acolher a "gratidão nacional".

Passou o escritor parte da sua vida no Brasil. Viajou para o Rio e Janeiro em 1893 e ali se manteve até 1896, ano em que foi publicado o romance A Mulata, que provocou grande escândalo e forçou Maalheiro Dias a regressar. Voltou ao Brasil em 1913, depois da proclamação da República em Portugal e aí permaneceu até 1935, quando gravemente doente retornou a Lisboa, mas já não lhe foi possível ocupar o cargo de embaixador de Portugal em Madrid, para que fora nomeado por sugestão de António Ferro.

Concluímos com esta transcrição da contracapa: «Pelo seu talento de romancista, considerado o legítimo herdeiro de Eça de Queirós, Carlos Malheiro Dias abandonou, porém, a ficção para se dedicar ao jornalismo. As razões, mais pessoais que literárias, de tal "deserção" são estudadas neste livro, à luz de documentos inéditos do espólio do escritor. Procurando restituir a Carlos Malheiro Dias o lugar que lhe cabe na literatura portuguesa, esta obra sublinha também os aspectos camilianos deste ficcionista queirosiano.»

 

terça-feira, 18 de março de 2025

A HISTÓRIA DE UM ESTAFETA

Acabou de ser editado em DVD L'Histoire de Souleymane, um filme de Boris Lojkine (2024) que conta 48 horas da vida de um estafeta de bicicleta que entrega refeições em Paris. 

O jovem guineense Abou Sangaré (n. 2001) interpreta, enquanto Souleymane Sangaré, um papel que conhece bem, embora não tenha sido anteriormente estafeta. 

Abou deixou o seu país ainda adolescente para ajudar a sustentar a mãe doente. Para atingir a França passou pelo Mali, pela Argélia, pela Líbia e pela Itália, chegando a Paris em 2018, quando tinha apenas 16 anos.

Sendo mecânico de profissão, trabalha nesse ofício em Amiens. Estando ilegal, os papéis foram-lhe recusados por três vezes. O realizador Boris Lojkine contratou-o para interpretar este filme, que recebeu o Prémio do Júri (Secção "Un Certain Regard") do Festival de Cannes (2024) e o César da Melhor Revelação Masculina (2025).

Após um quarto pedido de legalização, obteve finalmente uma autorização de residência por um ano em Janeiro deste ano. Tenciona seguir a carreira de mecânico.

Para todos os que conhecem a vida atribulada dos estafetas, este filme é um documento de impressionante autenticidade.


sábado, 15 de março de 2025

A MULATA

Em 1975 foi publicado pela primeira vez em Portugal o romance A Mulata, de Carlos Malheiro Dias (1875-1941), assinalando o primeiro centenário do seu nascimento, e que havia sido editado originalmente no Brasil em 1896.

Acontece que A Mulata não é verdadeiramente um romance mas antes uma longa dissertação filosófico-literária onde se encontra incrustado (hoje dir-se-á plasmado) um romance. Trata-se de um livro de mais de 400 páginas, servido por uma linguagem rebuscada e ortodoxamente naturalista, mas demonstrando já as capacidades do autor, então com apenas 21 anos, que se tornaria mais tarde um consagrado romancista, jornalista e historiador, e também político, mas que se encontra hoje praticamente esquecido.

Monárquico convicto e católico assumido, Carlos Malheiro Dias foi iniciado na Maçonaria em 1897, donde seria posteriormente irradiado.

A obra, recheada de citações e referências eruditas, é também um ensaio de psicologia não só das personagens mas da humanidade em geral, e especialmente do protagonista, Edmundo, jornalista tuberculoso de 21 anos cuja paixão fatal por Honorina, a "mulata", o há-de conduzir à morte.

Embora gostando de Edmundo, Honorina é uma prostituta que não se exime a manter relações sexuais com outros homens, e mesmo com mulheres, já que, com a sua amiga Emília, cultiva o lesbianismo. 

Outras figuras perpassam pelo livro, como Julião, o pobre estudante de medicina que, mergulhando no álcool, acaba na prisão, ou Emílio de Alcântara, que acha as mulheres impuras, faz o elogio da Antiguidade, arranja um efebo e indigna-se por não encontrar nas livrarias do Rio de Janeiro (onde a acção decorre) o livro de Abel Botelho O Barão de Lavos (1891), comentando: «Não encontro; decididamente, não há livrarias nesta terra, ninguém lê... - E baixando a voz: - A pederastia morre à falta de incentivos! E é pena...» (p. 332)

Atendendo ao conteúdo, e também por alusões à situação política brasileira, A Mulata provocou um escândalo no Brasil e Carlos Malheiro Dias foi constrangido a regressar a Portugal, acabando mesmo por retirar o romance da lista das suas obras publicadas. Pelo seu teor, o livro foi considerado um insulto ao povo, à magistratura, ao exército, à imprensa, à literatura. Porém, sem razão. Os brasileiros já tinham lido O Mulato, de Aluísio Azevedo (1881) e O Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha (1895), embora este, por tratar não só de relações entre pessoas de etnia diferente mas também da homossexualidade na Marinha, tivesse igualmente originado escândalo público.

Com a proclamação da República em Portugal (1910), Carlos Malheiro Dias voltaria ao Brasil, onde residiu até 1935, data em que regressou a Lisboa.

O prefácio à presente edição de A Mulata é assinado por Alexandre Pinheiro Torres.

 

sexta-feira, 7 de março de 2025

D. JOÃO III E D. SEBASTIÃO

Releio, no centenário da sua publicação, O "Piedoso" e o "Desejado" (1925), de Carlos Malheiro Dias. 

Não se trata propriamente de uma biografia de D. João III e de D. Sebastião, mas antes de uma evocação histórico-romântica daqueles soberanos, pela pena do conhecido escritor.

O autor descreve o panorama dos dois reinados, salientando a pobreza e o endividamento do país, os gastos com a Índia e com a expedição de Alcácer-Quibir. Refere as preocupações financeiras de D. João III, as suas despesas avultadas com benesses que concedia, com a continuação da construção dos Jerónimos, com as possessões ultramarinas. 

Refere as ligações familiares de D. João III com Carlos Quinto, de quem era duplamente cunhado, por ser casado com uma irmã do imperador (D. Catarina) e por este ser casado com uma irmã de D. João III (D. Isabel). Evoca ainda o facto de, até por razões de dote, D. João III ser instado a casar com sua madrasta D. Leonor (também irmã do Imperador) que enviuvara de seu pai (D. Manuel I) e que voltou a casar com Francisco I de França. O rei recusou tal casamento, que considerou inapropriado. 

Nas considerações sobre D. João III, Carlos Malheiro Dias recorre frequentemente aos Anais de Frei Luís de Sousa, de que cita muitas passagens. O autor tem também palavras de alguma compreensão para a Inquisição, cuja instalação em Portugal, a pedido de D. João III, justifica pelo ódio que os portugueses nutriam por judeus e cristãos-novos: «Quanto à ordem interna, nenhuma nação a gosou mais completa, e se a Inquisição manchou de fumo e sangue o reinado joanino, as suas victimas foram incomparávelmente em menor número que as imoladas pelas lutas religiosas que convulsionaram a Europa. Em confronto com as carnificinas dos huguenotos franceses, levados à fogueira e ao cadafalso pela plebe ávida de vingança, que se substituia aos carrascos para fazer justiça pelas próprias mãos, o tribunal do Santo Ofício foi em Portugal uma instituição ao serviço da ordem e que, embora por processos crueis, que eram os do tempo, concorreu para consolidar a unidade nacional.» (pp. 98-99) Certamente, uma apreciação muito benévola.

Sobre D. Sebastião, o autor escreve: «D. Sebastião não era o produto do fanatismo, da Inquisição e dos jesuítas, mas um filho póstumo da Idade Média, com a consciência hierática da sua magistratura de monarca, vendo nos prodígios do seu povo os favores tutelares da Divindade. O rei não escrevera os Lusíadas, mas, como Camões, tinha a concepção épica da pátria. Tal o poeta, arquitectava grandes e regeneradoras emprêsas. "Fazia das virtudes degraus para se precipitar nos abismos dos temerários". Tinha como preceito que a falta de perigo nas pelejas diminui os quilates às vitórias. Poesia! quando governar bem seria vender pelo maior preço a pimenta da Índia, fundir para relhas de arado os arnezes da armaria, fazer um filho numa princesa de Castela ou de França, cuidar mais da lavoura que da guerra... Mas a criança real brincava com as tempestades, guardava castidade, escrevia de joelhos o regimento dos seus heróis.» (pp. 118-119)

Este livro, sobre o reinado dos dois monarcas, é especialmente uma obra de exaltação patriótica e os factos são apresentados na interpretação própria do autor e manifestando as suas preocupações com aspectos específicos. Assim, pode ler-se: «Com a narrativa que da jornada de Elvas a Lisboa nos deixou um letrado do séquito cardinalício [Viagem do Cardeal Alexandrino, Miguel Bonello, sobrinho de Pio V, legado aos reis de França, Hespanha e Portugal, no anno de 1571, por João Baptista Venturino] podemos ressuscitar, atónitos, o fausto inverosímil que atingira nas vésperas da catástrofe o Portugal bélico-comercial da Renascença, onde se haviam acumulado as ruínas e as riquezas da política expansionista de três reinados. Logo de entrada, na recepção do duque D. João de Bragança, as pompas portuguesas deixam estupefacto o séquito do prelado romano. O duque apresenta-se faúlhante de pedrarias, as bandas da capa apresilhadas com rubis, o barrete de veludo guarnecido de pérolas e diamantes. O seu palácio é mais sumptuoso que todos os que os italianos viram em Espanha, exceptuando o de Madrid. As paredes das suas salas e escadarias estão recobertas de tepeçarias de sêda, ouro e prata, representando umas a tomada afortunada de Azamor pelo duque D. Jaime, outras a batalha de Aljubarrota. O leito do legado é de brocado de ouro, e com a mesma áurea tela está recoberta a mesa de estado. As cadeiras são de veludo franjado de ouro, e Venturino avalia em cento e cincoenta mil escudos as baixelas de ouro e prata que refulgem nos aparadores, enormes como altares. No banquete teatral servem-se, enquanto tocam os atabales, as trombetas, as adufas e os pífaros, pavões armados e pasteis de onde voam, ao abrirem-se, perdizes, melros e pombas bravas. O duque, como um soberano, é servido de joelhos. Para lhe darem de beber cumpre-se um cerimonial ostentoso. Adiante do escanção, que lhe apresenta a copa e o jarro de água, posta-se o mordomo com o bastão, entre os maceiros e os reis de armas, vestidos com sobrevestes de brocado de ouro. E quando, ajoelhado, o escanção oferece ao duque a copa de ouro, os instrumentos tocam, as trombetas estrugem! Assim bebia um copo de água o duque de Bragança, em 1571. Sete anos depois, o filho primogénito do senhor de Vila Viçosa, cativo dos mouros, dormiria sôbre o chão duro, entre os miasmas cadavéricos de Alcácer...» (pp. 139-140-141)

E, no mesmo tom: «Era louco o plano de D. Sebastião? Eram levianos os seus desígnios? De modo nenhum. O empreendimento de política mercantil do Oriente falira. Para sustentar a Índia seriam necessários o dobro dos homens e dos sacrifícios que custaria a manter ao pé da porta o Algarve africano. D. Sebastião era inspirado no seu projecto por um seguro instinto de política nacionalista. Suprema injustiça é querer vêr apenas em D. Sebastião o vencido de Alcácer-Quibir, e não o herói que ia combater pelo proveito da pátria. o seu acto não é um suicídio, mas uma reacção. Pretendendo ressuscitar as virtudes antigas, a sua castidade, irmã da de Nun'Álvares, era um protesto contra os vícios que infeccionavam a nação. A sua curta e formosa vida é um exemplo de imaculada fé, de coragem enérgica, de dignidade nobre e de patriotismo ardente. Podendo dormir entre os braços brancos de Margarida de Valois e envelhecer entre festins e caçadas, vendendo a pimenta da Índia e divertindo-se com as facécias dos bobos, preferiu ao amor das mulheres o amor da pátria e quis ser antes um herói do que um mercador de especiarias. Foi vencido: eis a culpa que lhe assacam. Foi um temerário: eis o defeito com que o desprestigiam. No depoïmento de quantos procuraram alijar as suas responsabilidades inculpando o monarca pela decadência que quis regenerar, e na obra tendenciosa com que a política espanhola intentou abafar a patriótica saüdade portuguesa pelo seu rei, se tem pretendido confirmar a sentença iníqua.» (pp. 167-168)

O parágrafo anterior ilustra o espírito do livro. Todavia, Carlos Malheiro Dias foi autor de vários romances que obtiveram o maior sucesso na sua época. Foi então considerado literariamente como o herdeiro natural de Eça de Queiroz. Mas a sua obra está praticamente, e injustamente, esquecida. 

Registe-se ainda que, a propósito de D Sebastião, Carlos Malheiro Dias travou uma célebre polémica com António Sérgio, assunto a que nos referiremos nos próximos posts deste blogue.