segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

D. SEBASTIÃO, ANTES E DEPOIS DE ALCÁCER-QUIBIR (BELARD DA FONSECA)

Em 1978, António Belard da Fonseca publicou a obra em dois volumes Dom Sebastião, Antes e Depois de Alcácer-Quibir, sobre a vida e a pós-vida do sempre lembrado monarca português.

No Primeiro Volume o autor trata do nascimento, educação, feitos do reinado e iconografia do rei e das causas e ocorrência da batalha de Alcácer-Quibir. No Segundo Volume são abordadas as origens do Sebastianismo, o aparecimento dos falsos "Dom Sebastião" e a investigação nos arquivos nacionais e estrangeiros.

Por se tratar de matéria já comentada anteriormente a propósito de livros sobre idêntico tema - que continuaremos a analisar -  limitar-nos-emos a referir os aspectos singulares da obra agora em apreço.

Escreve António Belard da Fonseca no Prefácio: «Efectivamente, no meio dessas centenas de livros, artigos, notas ou simples referências, apenas se destacam, pela análise documentada e generosa e patriótica intenção, a notável obra de Costa Brochado e o interessantíssimo estudo de Costa Ramalho.»

O livro de Costa Brochado é D. Sebastião, O Desejado, sobre o qual escrevermos oportunamente; o estudo de Costa Ramalho (Manuel) é um texto (O Desejado) publicado no Guia de Portugal Artístico. Parece que Belard da Fonseca se esqueceu (1978) das obras mais importantes já então publicadas sobre D. Sebastião.

Afirma ainda o autor no Prefácio que foi a contemplação do epitáfio no túmulo de D. Sebastião nos Jerónimos que deu origem ao seu trabalho, deixando supor que duvida da autenticidade dos seus restos mortais (provavelmente mesmo da sua morte em Alcácer-Quibir).

Do Primeiro Volume, a Primeira Parte incide sobre "Dom Sebastião" e a Segunda Parte sobre "A Batalha de Alcácer-Quibir".

Sobre o nascimento, mocidade e educação do rei (Capítulo I), Belard da Fonseca segue, em geral, a narrativa que já conhecemos. O Capítulo II é dedicado à pessoa do soberano e ao seu temperamento, compreendendo as doenças, os casamentos malogrados e os amores desconhecidos. 

Começa o autor por tecer considerações infundadas sobre os críticos de D. Sebastião: «E se os feitos pelos escritores que o conheceram  - ou os daqueles que, posteriormente, se inspiraram nessas obras - ainda se revestem de certo valor histórico e iconográfico, os dos historiadores e romancistas e os dos clínicos dos séculos XIX e XX são quase sempre destituídos de qualquer mérito especial ou fundamento sério. Estes últimos "retratos" do infeliz soberano são, realmente, pintados com as tintas das ideias políticas, dos devaneios literários, ou das fantasias pseudo-científicas ou psiquiátricas do seus autores, pelo que nos dão uma imagem imperfeita do retratado ou, pior ainda, inteiramente deformada.» (p. 32)

Cita Belard da Fonseca vários escritos sobre a personalidade de D. Sebastião, enaltecendo os que louvam as virtudes do monarca mas menosprezando aqueles que não suportam a sua visão laudatória do monarca, como Manuel Bento de Sousa, Camilo Castelo Branco, Sampaio Bruno, Costa Lobo, António Sérgio, Ricardo Jorge ou Montalvão Machado. Mas aceita o juízo de Alexandre Herculano. E, valha-nos isso, concorda com a opinião de Queiroz Veloso e subscreve o parecer de Moura Relvas (já comentado neste blogue). 

Sobre as doenças, o autor nada adianta em relação aos testemunhos conhecidos, embora insista em negar a impotência do rei.

Quanto aos malogrados casamentos, também o autor elenca os nomes das (im)prováveis noivas. Margarida de Valois, a arquiduquesa Isabel de Áustria e a infanta Isabel Clara Eugénia, escolhidas por terceiros, é certo, embora no caso da última D. Sebastião tivesse solicitado a sua mão a Filipe II em Guadalupe. Já por sua iniciativa, D. Sebastião propôs casamento à filha do Grão-Duque da Toscana (enquanto negociava com o tio Filipe II o casamento com sua prima Isabel Clara Eugénia) mas apenas com a intenção de obter apoio para a expedição a África (Belard não refere este pormenor, insistindo em que o rei não era de algum modo avesso ao casamento). 

Sobre os amores desconhecidos de D. Sebastião, menciona o autor uma princesa moura (Xerine, filha do derrotado Muley Mohammed), a filha do duque de Aveiro (D. Juliana) e até D. Joana de Castro, filha dos condes da Feira. A estes "amores" ter-se-ão referido o visconde da Juromenha e até Frei Luís de Sousa. Da leitura de obras anteriores, parece que estas alusões não passarão da imaginação fértil daqueles que as mencionam. É por demais conhecida a misoginia de D. Sebastião, dir-se-ia mesmo a sua aversão às mulheres, conforme testemunham algumas das biografias eruditas que comentámos anteriormente.

O Capítulo III intitula-se "Os Gloriosos Feitos Guerreiros do seu Reinado e os Actos Mais Notáveis da sua Administração". Escreve o autor: «E, todavia, tratou-se na realidade de um dos períodos mais brilhantes (se esquecermos, por momentos, a Gesta dos Descobrimentos) da História dos Portugueses. As graves consequências dessa derrota e a perda da independência da Pátria, como que ofuscaram da mente dos modernos historiógrafos - mesmo dos poucos verdadeiramente imparciais - a marcha gloriosa deste pequeno-grande Povo que, com escassa gente e fracos meios, se impôs em todas as partes do Mundo.» (p. 73) E menciona os feitos dos portugueses desde 1568 a 1574. Refere igualmente a Lei de 28 de Abril de 1570, que impõe rigorosas medidas de austeridade (algumas idiotas) que nunca foram verdadeiramente aplicadas e caíram rapidamente em desuso.

O Capítulo IV é dedicado à "Iconografia de D. Sebastião e seus Pais". O livro inclui reproduções de retratos de D. Sebastião, de D. Joana de Áustria, sua mãe e de D. João Manuel, seu pai. Os retratos do rei apresentados são os do Mosteiro das Descalzas Reales, de Madrid, por Cristóvão de Morais; do Museu Nacional de Arte Antiga, por Cristóvão de Morais (que Belard da Fonseca atribui erradamente a Cristóvão de Figueiredo); do Museu San Telmo, de San Sebastián, por Alonso Sánchez Coello (o retratado é muito improvavelmente D. Sebastião); do Kunsthistorisches Museum, de Viena, por Alonso Sánchez Coello (igualmente improvável que o retratado seja D. Sebastião); da colecção do arquiduque Fernando do Tirol, sem indicação de localização e autor, que Belard da Fonseca apresenta como sendo do rei; e o de Hieronymus Cock, que Belard da Fonseca indica encontrar-se em Viena, embora haja informação de que pertence a uma colecção particular portuguesa. Segundo José de Figueiredo, que foi o primeiro director do Museu Nacional de Arte Antiga, apenas as duas pinturas de Cristóvão de Morais e a gravura de Cock podem ser considerados retratos autênticos de D. Sebastião.

Na Segunda Parte, o autor trata das causas da batalha (Capítulo I), do desaparecimento e morte do rei (Capítulo II), da identificação do cadáver (Capítulo III) e do funeral nos Jerónimos (Capítulo IV).

Sobre as causas próximas e remotas da guerra em África e motivos da derrota, Belard da Fonseca acompanha, em geral, os relatos de Queiroz Veloso e Alfonso Danvila, embora enfatize sempre a necessidade de se combaterem os mouros, o perigo turco e a manifesta vontade dos portugueses na realização da expedição e justifique, na sua opinião pelas melhores razões, a decisão de D. Sebastião. Sabemos que a verdade histórica é bem diferente, mas importa compreender que a publicação desta obra se destina, acima de tudo, a "reabilitar" a figura do monarca português. O autor recusa admitir a obstinação, a arrogância e vaidade do rei. Insiste Belard que a causa da derrota em Alcácer-Quibir foi a decisão de tomar Larache por terra, devido à falta do prometido auxílio naval de Filipe II. Ora sabemos que a generalidade dos nobres portugueses que acompanhavam D. Sebastião procurou, debalde, a conquista marítima, para a qual existiam meios, e que foi a teimosia do rei, desejoso de confrontar pessoalmente Abd el-Malik, que prevaleceu na decisão de realizar a malograda expedição terrestre, olvidando Larache e embrenhando-se na planície de Alcácer-Quibir.

No Capítulo II, o autor esclarece que utilizará apenas elementos de Frei Bernardo da Cruz, Jerónimo de Mendonça e Miguel Leitão de Andrada, no que respeita ao desaparecimento ou morte de D. Sebastião, pois que as narrativas dos autores seiscentistas, setecentistas e oitocentistas ou mesmo as do nosso tempo não lhe merecem grande crédito. Mas recorre ao espanhol Luís de Oxeda, que combateu em Alcácer-Quibir [publicação de 1904, ao que presumo], que a certa altura afirma que D. Sebastião foi degolado, o que inviabilizaria, naturalmente, o reconhecimento do cadáver. Cita também Salvador de Medeiros, criado do cardeal D. Henrique, António de Escovar, então em Marrocos, D. João de Castro, filho de D. Álvaro de Castro, salientando que Luís de Brito, Jorge de Albuquerque Coelho e Sebastião Figueira viram o rei, embora em ocasiões distintas, já fora do campo de batalha e livre de mouros, e segundo Figueira, com alguns fugitivos, e segundo Oxeda, a caminho de Arzila (na outra hipótese de D. Sebastião não ter sido degolado). Esta é  velha tese do "embuçado" chegado a Arzila, que já comentámos em posts anteriores. Também Diogo Barbosa Machado, em Memorias para a Historia de Portugal, que comprehendem o governo d'el-rei D. Sebastião, unico do nome, desde o anno de 1554 até o de 1561, publicadas de 1736 a 1751, considera que a precipitação de D. Diogo de Sousa partir com a armada rapidamente de Arzila só se explica por ter a bordo D. Sebastião. Belard insiste que a identidade posteriormente divulgada do "embuçado" como sendo Diogo de Melo apenas teve lugar muito mais tarde, na Historia general del mundo del tiempo del rey Felipe II, desde 1559 hasta su muerte, (1601-1612), de Antonio de Herrera. Acrescenta Belard que Herrera não se refere a Diogo de Melo na edição de 1601 mas apenas na 2ª edição de 1606, pois nessa altura já tivera lugar a execução do "4º falso D. Sebastião", em 1603, em Sanlúcar de Barrameda. Segundo o autor, também o historiador espanhol Ignacio Bauer y Landauer (1891-1961) observa, em Miscelanea histórica referente al rey Don Sebastián, citando uma obra da época de Alcácer, que o médico Mendez Pacheco foi castigado em vida do cardeal D. Henrique por ter dito que D. Sebastião estava vivo e por ter tratado as suas feridas. Ainda Belard transcreve passagens da Historia Sebastica (1735), do monge cisterciense Frei Manuel do Santos.

Conclui Belard da Fonseca que em face dos elementos históricos disponíveis não se pode afirmar que D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir.

O Capítulo III reporta-se à inscrição "Si vera est fama" existente no no túmulo de D. Sebastião no Mosteiro dos Jerónimos. Logo, sobre a dúvida dos restos mortais do rei se encontrarem no sarcófago. Belard da Fonseca divide o assunto em três partes: 1 - O pretendido achamento do corpo do rei; 2 - A sumária identificação do cadáver; 3 - A marcha do corpo de Alcácer até Ceuta.

Segundo  a narrativa aceite, na manhã de 5 de Agosto, dia posterior à batalha, Sebastião de Resende, moço de câmara do rei, comunicou ao novo xerife que tinha reconhecido D. Sebastião entre os mortos, oferecendo-se para ir buscar o cadáver, para o que lhe foi dada uma mula e escolta. E trouxe um corpo completamente nu para a tenda de Muley Ahmed. O soberano ordenou então a alguns fidalgos prisioneiros que procedessem ao reconhecimento do cadáver: D. Duarte de Meneses, D. Jorge de Meneses, D. Constantino de Bragança, D. Nuno de Mascarenhas, D. António de Noronha, João Rodrigues de Sá, D. Duarte de Castelo Branco e Belchior do Amaral. O corpo apresentava vários fermentos, um dos quais muito profundo do lado direito, e também na cabeça. No dia 7, antes de meterem o corpo no caixão, foi solicitada a presença de dois portugueses para nova identificação. Um não compareceu por estar ferido (Fernão da Silva), o outro quando viu o cadáver não o reconheceu, por se encontrar em adiantada decomposição (Martim de Castro dos Rios). Então, o corpo foi coberto por uma grande porção de cal e o caixão transportado para Alcácer-Quibir. O autor transcreve as afirmações de Leitão de Andrada, Jerónimo de Mendonça e Frei Bernardo da Cruz, que têm alimentado a narrativa oficial, e também a de Luís de Oxeda, testemunha presencial, que declara que o corpo só chegou à tenda do Xerife às oito da noite. E que era um mouro quem trazia o cadáver e que Sebastião de Resende se limitou ao reconhecimento prévio ao dos fidalgos por ser moço de câmara e poder reconhecer os sinais físicos e íntimos do rei. [Aqui Belard releva a falta de rigor desta interpretação, pois é dado como adquirido que D. Sebastião, por um excesso de pudor, nunca se despia nem mesmo diante de criados, apenas perante os médicos].  

Contesta Belard da Fonseca o valor probatório do depoimento de Sebastião de Resende, que se ofereceu ao Xerife para reconhecer o corpo em troca da liberdade, e interroga-se como tenha o seu testemunho podido servir aos cronistas e escritores posteriores. Opina, assim, que a verdade deve estar com Oxeda. 

Menciona ainda o autor um texto de Pedro Matheo (Histoire des Derniers Troubles de France, c. 1606) em que este refere uma conversa entre o Príncipe de Condé, Henri de Bourbon e o Padre José Teixeira, erudito português muito considerado na corte de Henrique IV. Nesse trecho, é afirmado que o "ce cadavre qui fut enterré en Betheleem, comme sien [de D. Sebastião], en Janvier 1583, était celui d'un Suisse, aussi l'appellaient commument les Portugais.»

Como é sabido, o corpo foi transportado, em 7 de Agosto, para uma dependência da casa do alcaide de Alcácer -Quibir. Estavam presentes dois cativos chamados para o efeito: Fernão da Silva e Martim de Castro, que deveriam proceder a nova identificação, o que se revelou inútil dada o rosto se encontrar já irreconhecível. O corregedor da Corte, Belchior do Amaral, acompanhou o cadáver, tendo sido logo libertado e indo dar a notícia a Arzila e Tânger. Belard da Fonseca considera-o uma personagem muito duvidosa e oportunista.

Antes de concluir este capitulo, Belard da Fonseca fornece uma informação que não consta das obras anteriormente comentadas neste blogue (pp. 160-1):

«Em 28 de Agosto, D. Henrique é aclamado rei e começa logo a fazer diligências, a fim de resgatar o corpo sepultado em Alcácer, encarregando dessa missão Frei Roque, religioso da Ordem da Santíssima Trindade, residente em Ceuta o qual foi autorizado a oferecer ao xerife uma importância até setenta mil cruzados. Surge, porém, nessa altura, uma situação absolutamente anormal e estranha. É que um estrangeiro, de nome André Gaspar Corso, comerciante genovês que vivia em Marrocos, faz também negociações por sua conta, para esse resgate, obtendo do sultão a promessa de só lhe entregar, a ele, o referido cadáver. Os cronistas, ao mencionarem tal actuação misteriosa - tanto mais que, juntamente com essa entrega, o genovês negociava a de D. João da Silva, embaixador de Espanha em Lisboa, feito prisioneiro na batalha, o que mostrava não ser Filipe II alheio ao negócio - concluem, apenas, que Gaspar Corso pretendia obter as boas graças do soberano espanhol. O certo é que foi este genovês quem foi a Alcácer buscar o corpo, dito de D. Sebastião, acompanhando-o cinco fidalgos portugueses, já resgatados, e o citado diplomata espanhol, sendo aquele, igualmente, quem o veio a entregar a Frei Roque, na cidade de Ceuta. O certo é, também, que esse restos mortais não vieram, para Portugal, senão passados quase cinco anos (o que se torna inexplicável, em face das diligências de D. Henrique), quando já tinha morrido o Cardeal e era novo rei Filipe II de Espanha. Por que vieram essas ossadas, em fins de 1582, para Lisboa, compreende-se perfeitamente; mas que as não tenham trazido, em Dezembro de 1578, é que faz pensar num motivo oculto.»

Entende o autor que a intenção de Gaspar Corso era a de que o corpo fosse entregue a Filipe II e não a D. Henrique, visto que aquele pretendia conduzi-lo para Castela. Mas o rei de Espanha reconsiderou, e como se aprestava a tornar-se rei de Portugal, entendeu que seria preferível que os restos mortais permanecessem em Ceuta, para só posteriormente serem trasladados para Lisboa. E conclui que o facto das ossadas terem permanecido em África quase cinco anos (o tempo normal para a desagregação do esqueleto) confirma que Filipe II, ao contrário de D. Henrique, tinha dúvidas sobre a sua autenticidade.

O Capítulo IV trata do funeral de "D. Sebastião". Em Dezembro de 1582, sendo Filipe II já rei de Portugal e encontrando-se em Lisboa, o duque de Medina Sidónia foi buscar os restos mortais a Ceuta. A esquadra aportou ao Algarve, tendo o féretro sido desembarcado em Faro a 7 desse mês. Depois das cerimónias fúnebres, o funeral seguiu para Tavira, Beja e Évora, onde chegou no dia 9, sendo aguardado pelo arcebispo, D. Teotónio de Bragança. Após algumas missas, o cortejo dirige-se a Almeirim, onde é incorporado no préstito o corpo do cardeal D. Henrique, que ali estava sepultado. O funeral desce então o Tejo até Belém,  e a 20 de Dezembro são sepultados nos Jerónimos D. Sebastião, D. Henrique, bem como os restos mortais de alguns infantes, filhos de D. Manuel I e de D. João III, que se encontravam em Évora. 

O autor, contra algumas opiniões já expressas, defende que as ossadas dos infantes que se encontravam em Évora foram aí misturadas, intencionalmente, no caixão em que vinham os restos mortais atribuídos a D. Sebastião. No túmulo do rei foi colocado este epitáfio: HOC JACET IN TUMULO (SI VERA EST FAMA) SEBASTUS QUEM DICUNT LYBICIS OCCUBUISSE PLAGIS. Todavia, no túmulo de mármore hoje existente, mandado construir por D. Pedro II, a inscrição é a seguinte: CONDITVR HOC TVMVLO, SI VERA EST FAMA, SEBASTVS/ QUEM TVLIT IN LIBICIS MORS PROPERATA PLAGIS/ NEC DICAS FALLI REGEM QVI VIVERE CREDIT/ PRO LEGE EXTINCTO MORS QVASI VITA FVIT (Guarda-se neste túmulo (se é verdade o que se diz) Sebastião a quem a morte prematura levou nas plagas da Líbia. Não digas que se engana aquele que crê viver o rei para o morto, pela lei cristã, a morte é como se fosse a vida). [Tradução do autor].

António Belard da Fonseca discorda que o primeiro epitáfio tenha podido existir, não só porque as ossadas de D. Sebastião estavam encerradas num caixão de madeira, insusceptível de gravação, mas porque Filipe II nunca teria permitido a inscrição "si vera est fama", que colocaria em dúvida a autenticidade dos restos mortais. Explica depois que o primeiro epitáfio, mencionado na História Sebástica (1735),  de Frei Manuel dos Santos, é uma invenção deste, possivelmente devida a confusão decorrente da consulta de obras anteriores. A mudança dos ossos do caixão de madeira para o mausoléu de mármore, em 1682, efectuada em cerimónia privada, deve ter obedecido à comemoração do primeiro centenário da trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos realizada em 1582. Estiveram presentes os Conselheiros e o Secretário de Estado, além do Provedor das Obras, que mandou encerrar o túmulo.

Insiste Belard da Fonseca que, mesmo no século XVII, haveria médicos capazes de determinar se os ossos eram de D. Sebastião, atendendo a algumas conhecidas deformidades do rei, mas que isso não seria possível pois que, no saco de linho que viera de Ceuta, tinham sido introduzidas em Évora, como se disse, as ossadas de alguns infantes. 

A concluir o Primeiro Volume, afirma o autor, e aí estaremos todos de acordo, que, quer em 1582, quer em 1682, quer hoje, ninguém tinha ou tem a certeza que que os restos mortais contidos no mausoléu dos Jerónimos sejam os de D. Sebastião.

* * * * *

Vejamos agora o Segundo Volume. A matéria encontra-se dividida em quatro capítulos. Trata o I das Origens do Sebastianismo; o II, dos Falsos "Dom Sebastião"; no III, se o "Prisioneiro de Veneza" seria D. Sebastião; o IV aborda a investigação do caso nas bibliotecas e arquivos nacionais e estrangeiros.

No Capítulo I o autor começa por referir a obra de Costa Lobo, Origens do Sebastianismo, e a de Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, que comentaremos em publicações posteriores. E também as Trovas, de Gonçalo Anes, mais conhecido por o "Bandarra", sapateiro de Trancoso, que as escreveu entre 1530 e 1540, portanto antes do nascimento de D. Sebastião, que se inspirou nas Coplas de Frei Juan de Rocacelsa, religioso aragonês, contemporâneo dos Reis Católicos. O autor empenha-se em reabilitar a figura de D. João de Castro, neto do célebre vice-rei da Índia e filho natural de D. Álvaro de Castro, que foi ministro de D. Sebastião. É verdade que D. João de Castro foi um partidário acérrimo do Prior do Crato, tendo combatido ao lado deste, e empenhou-se em provar que o "D. Sebastião de Veneza" era verdadeiramente o rei.  Belard entende que ele não foi um louco, um sonhador ou um visionário, como é habitualmente tratado pelos historiadores, mas um patriota, uma pessoa inteligente e um escritor de mérito. Barbosa Machado diz que ele esteve em Alcácer-Quibir, Lúcio de Azevedo contesta, chegando a afirmar que ele nunca conheceu D. Sebastião. Belard da Fonseca infirma a afirmação de Lúcio de Azevedo. 

O Capítulo II é dedicado aos Falsos "Dom Sebastião". Estes pretendentes foram já analisados em posts anteriores. São, por esta ordem, o "Rei de Penamacor", cujo nome se ignora, o "Rei da Ericeira", o açoriano Mateus Álvares, o "Pasteleiro do Madrigal", o espanhol Gabriel de Espinosa e o "Prisioneiro de Veneza", o italiano Marco Túlio.

A descrição a que Belard da Fonseca procede acerca dos três primeiros pretendentes coincide com a apresentada nas obras que comentámos anteriormente, salvo no que respeita à presumível existência de uma filha de Espinosa e de D. Ana de Áustria referida pelo autor. Haveria no Arquivo de Simancas documentos sobre essa ligação, também mencionada no livro As Virtudes Antigas, de Camilo Castelo Branco. Já no que se refere ao italiano Marco Túlio o caso é diferente. O caso deste 4º pretendente ocupa muitas páginas do livro, já que Belard parece não estar convencido da inverosimilidade, largamente comprovada à época, do calabrês, assunto convenientemente descrito nas obras eruditas já comentadas neste blogue. A pretensão de Marco Túlio foi objecto de um livro de um dos seus mais ardentes defensores, D. João de Castro (neto do célebre vice-rei da Índia): Discurso da vida do sempre bem vindo e apparecido Rey D. Sebastião. Belard da Fonseca recorre especialmente ao livro (que já comentámos) de Miguel D'Antas, considerando que este desvaloriza a priori as possibilidades de o calabrês poder ser o rei D. Sebastião. E insinua que o "prisioneiro" de Veneza e, depois, do Bargello, em Florença (e que terá sido reconhecido por alguns portugueses como o verdadeiro rei).o chamada "Cavaleiro da Cruz", não é o mesmo que o calabrês Marco Túlio Catizone que foi preso em Nápoles.

O autor narra depois, com algumas variantes, o processo e posterior execução de Marco Túlio Catizone, conforme a narrativa constante das anteriores obras comentadas. E transcreve alguns manuscritos do Arquivo Geral de Simancas. 

O Capítulo III é expressamente dedicado a «O "Prisoneiro de Veneza" seria D. Sebastião?»

Começa Belard por escrever: «Como se viu no capítulo anterior, o aparecimento dos "Falsos D. Sebastião" não teve, inicialmente, a mesma causa. Com efeito, os casos do "Rei de Penamacor", do "Rei da Ericeira" e do "Pasteleiro do Madrigal" obedeceram a planos - alguns habilmente preparados - de terceiras pessoas, com o aproveitamento de indivíduos de qualquer forma semelhantes ao infeliz soberano, para se conseguir, assim, o alvoroço e o apoio do povo português na luta contra a dominação espanhola. Tratou-se, pois, em todos, da organização de movimentos patrióticos, com o fim de obter a independência, por meio de uma revolução nacional. E se dois deles abortaram quase à nascença, o do chamado "Rei da Ericeira" deu origem a um levantamento popular e a escaramuças de certa importância, que só foram sufocados, a custo, pelas tropas espanholas. De resto, esses três impostores surgiram, respectivamente, nos anos de 1584, 1585 e 1594, ou seja num período ainda próximo do desaparecimento do Rei em Alcácer-Quibir, quando o povo esperava vê-lo voltar um dia, e em que era, portanto, relativamente fácil atear, nele, a chama do patriotismo. Mas o caso do "Prisioneiro de Veneza" começa em 1598, vinte anos depois da cruenta batalha, quando as paixões patrióticas já estavam inteiramente adormecidas e quando o domínio espanhol parecia consolidado por completo. E surge espontaneamente, sem resultar como os outros mais antigos de uma cabala preparada por outrem, que urdira o plano, em todos os pormenores, e dirigia os "falsos D. Sebastião", como personagens de uma peça de teatro. Neste estranho caso de Veneza, o indivíduo que o viveu aparece, misteriosamente, sob o título de "Cavaleiro da Cruz", com toda a modéstia e sem fazer alarde da sua pretendida posição social ou qualidade de soberano.» (pp. 89-90)

O autor considera que Miguel d'Antas se apressou a descartar a possível autenticidade do "Prisioneiro de Veneza", para fundamentar a sua tese da falsidade de todos os pretendentes, o que foi rapidamente aceite por Rebelo da Silva, Mendes Leal e Pinheiro Chagas. E em abono da sua convicção de que o "Prisioneiro" era o verdadeiro Rei, publica a "Sentença de Clemente VIII", de 23 de Dezembro de 1598, onde o Papa reconhece D. Sebastião. Este documento é citado em Noites de Insomnia, de Camilo Castelo Branco. Existe também outra sentença papal, esta de Paulo V, de 17 de Março de 1617, mandando Filipe III entregar o Reino a D. Sebastião, sendo que Catizone havia sido executado em 1603!?! Haveria então em 1617 outro indivíduo em Roma a clamar os seus direitos? Mas há ainda um breve pontifício de Urbano VIII, destinado a Filipe IV, datado de 20 de Outubro de 1630, em que este Papa, ordena ao rei de Espanha a entrega de Portugal a D. Sebastião, que lhe fora apresentado no  Castel Sant'Angelo e lhe exibira as duas sentenças anteriores. É referido neste último breve que o peticionário tem filhos e mulher e solicita a transmissão de direitos.

«É claro que, como não há conhecimento de qualquer quinto "falso D. Sebastião" e o quarto tinha morrido em 1603, só se podem considerar duas hipóteses: ou os breves são autênticos e o rei sobreviveu à batalha de Alcácer-Quibir e lutou pelos seus direitos ao trono de Portugal, entre 1598 e 1630; ou essas sentenças são falsas e foram forjadas com determinado propósito. Os ilustres escritores que, antes de nós, se ocuparam desse problema - e que só conheceram tais breves, pela citação de Camilo - resolvem-no por forma, salvo o devido respeito, bastante simplista. Assim, Lúcio de Azevedo afirma, sem qualquer prova: "Os breves referiam-se ao D. Sebastião, de Veneza (Marco Túlio), de cujo suplício em S. Lúcar poucos sabiam, e que a parte dos sebastianistas, a quem eram desconhecidas as obras de D. João de Castro, supunha ter passado de Florença para França, pela Sabóia, escapando às ciladas dispostas no caminho pela protérvia dos Castelhanos."» (p. 98)

O autor refere-se também à Prova Num. XXVII, dos autos criminais contra a Companhia de Jesus, em que Seabra da Silva aponta três fingidas Bulas em toda a sua extensão, acrescentando: «Ora isto não prova, de qualquer forma, uma falsidade, porquanto nada do texto dessa intitulada "Prova Num. XVII", de Seabra da Silva, testemunhal ou documentalmente, mostra que tais sentenças pontifícias não sejam autênticas.» (p. 103)

Volta agora Belard da Fonseca a colocar a questão dos sinais físicos de D. Sebastião, que já abordara no capítulo anterior e que tem sido referido nos diversos livros sobre os falsos pretendentes. «Quando os pouco portugueses, exilados em Veneza, conheceram o "Cavaleiro da Cruz", em Junho de 1598, e o tomaram por D. Sebastião, como já tivessem decorridos vinte anos sobre o desaparecimento do seu soberano em Alcácer-Quibir, pretenderam certificar-se do facto com absoluta segurança. Tratava-se, todavia, de pessoas de condição modesta, alguns comerciantes e religiosos. que não tinham privado com o rei, ou que eram muito novos em 1578, quando este partira para Marrocos. Tinham, portanto, somente, duas formas de fazer essa identificação: por pessoas mais idosas, nobres que tivessem frequentado a Corte e que o tivessem conhecido pessoalmente; ou pela indagação exacta dos seus sinais particulares, devidamente comprovada. Procuraram, por tal motivo, chamar a Veneza outros compatriotas de elevada condição social, como Frei António de Sousa, Manuel de Brito de Almeida, Frei Lourenço de Portugal, D. Cristóvão, filho do Prior do Crato, e Frei Estêvão de Sampaio. Quando estes chegaram, porém, àquela cidade, já o "Cavaleiro da Cruz" tinha sido preso, por ordem da Senhoria e a pedido do embaixador de Espanha. E não mais conseguiram ver o prisioneiro, ao qual não eram permitidas visitas. Um juiz ou senador veneziano, de nome Marco Quirini, que pretendia esclarecer-se sobre a identidade do prisioneiro, aconselhou Frei Estêvão a ir a Portugal obter os elementos necessários para se concluir se o mesmo seria ou não o infeliz soberano português. Esse religioso parte, por isso, para Lisboa onde chegou no fim de 1599, tendo procedido a demorada indagação quanto aos sinais particulares de D. Sebastião. Essa investigação foi escrupulosa, feita com a colaboração do cónego Rodrigues da Costa, junto de pessoas de idade que o tinham conhecido bem, tendo sido elaborada uma relação completa autenticada pelo notário Tomé da Cruz, dos sinais característicos ou morfológicos do corpo do rei. Tal relação - que Frei Estêvão de Sampaio levou, seguidamente, para Veneza, onde já se encontrava em Junho de 1600 - é conhecida, por tê-la transcrito o Padre José Teixeira, numa obra publicada em Paris no ano de 1601. E serviu, para os portugueses, especialmente Pantaleão Pessoa - como consta duma carta do mesmo, para D. Manuel de Portugal, filho mais velho do Prior do Crato -, procederem a demorado exame do "Prisioneiro de Veneza", na própria noite, de 15 de Dezembro de 1600, em que este foi posto em liberdade pela Senhoria. Verificaram, nessa altura, que tal indivíduo apresentava quase todos - e não viram os mais íntimos, porque, querendo ele despir-se para o efeito, não lho consentiram por respeito pela pessoa, na qual viam o seu soberano - esses caracteres morfológicos.» (pp. 105-6-7)

Esta argumentação de Belard em defesa da autenticidade do "prisioneiro", enferma de três vícios: 1) se era uma prova tão decisiva, todos os sinais sem excepção deveriam ter sido examinados; 2) se o "prisioneiro" pretendeu despir-se, isso contraria a habitual disposição de D. Sebastião de não se despir diante de qualquer pessoa, mesmo dos seus criados, e muito menos de exibir as suas partes íntimas; 3) não faz sentido a atitude deferente dos "examinadores" no "respeito pela pessoa", pois até à verificação integral do corpo não estavam certos de se tratar ou não do soberano, pelo que qualquer respeito em tão delicada matéria seria despiciendo.

Dispensamo-nos de transcrever a longa lista dos sinais e anomalias conhecidas do rei (constantes das diversas biografias), segundo Pantaleão da Cruz. Como não lhe tiraram o vestuário, nem todos os sinais puderam ser confirmados. O que não incomoda Belard da Fonseca, pois acha suficientes os que foram confirmados. E acrescenta que o juiz espanhol Luciano Négron, servindo-se da mesma "relação" não encontrou qualquer desses sinais em Marco Túlio Catizone. Daqui conclui o autor, sem sombra de dúvida, que o "Prisioneiro de Veneza" e "Marco Túlio Catizone" seriam duas pessoas difeentes. «E como não existiu um quinto "falso D. Sebastião", teríamos de admitir uma troca de presos, em qualquer ocasião do percurso de Veneza a Florença e a Nápoles (as cidades onde, sucessivamente, a misteriosa personagem esteve encarcerada), ou, até, na povoação espanhola de San Lucar» (p. 111)

O autor elabora depois largamente, com base numa narrativa de uma revista francesa de 1844, a favor da sua tese da troca de prisioneiros, acabando por admitir que o verdadeiro D. Sebastião, que Catizone substituiu, foi encarcerado num castelo de Espanha por Filipe III.

O Capítulo IV, e último, trata de "A Investigação do Caso nas Bibliotecas e Arquivos Nacionais e Estrangeiros". 

No Arquivo Secreto do Vaticano procurou verificar a autenticidade dos breves pontifícios anteriormente citados mas as suas pesquisas foram infrutíferas. Tal como na Biblioteca Apostólica. Investiga também no Arquivo Geral de Simancas e noutros arquivos com resultados irrelevantes. Encontra finalmente um manuscrito encriptado que se propõe decifrar e onde encontra matéria que lhe permite sustentar a sua tese da troca de prisioneiros. 

O livro é acompanhado pela reprodução de dezenas de manuscritos que o autor cita ao longo do texto.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

LIBERDADE

Li, integralmente, Liberdade, no original Freiheit. Erinnerungen 1954-2021 (Liberdade. Memórias 1954-2021), autobiografia de Angela Merkel, que foi chanceler da Alemanha de 2005 a 2021 e a quem o saudoso Eduardo Pitta costumava chamar “camponesa luterana obstinada”.

Trata-se de um imenso livro, recentemente publicado, de 714 páginas em letra miúda, o que em caracteres normais significaria cerca de 1 000 páginas.

Deve dizer-se que o livro se encontra formalmente bem escrito, combinando aspectos da sua vida pessoal, da sua vida política, da sua actividade académica, da situação na República Democrática Alemã e depois na Alemanha reunificada, da sua fulgurante ascensão a deputada, ministra e finalmente chanceler do país. Com muitas descrições minuciosas, outras nem tanto, a que se juntam episódios de carácter doméstico e alguns mesmo anedóticos, tudo isto descrito, obviamente, na perspectiva da autora. Existem algumas imprecisões, notam-se várias lacunas mas há que reconhecer tratar-se de um trabalho colossal, só possível pelo facto de a autora ter reunido ao longo da sua carreira o material indispensável à realização desta obra, na qual teve como preciosa auxiliar Beate Baumann, sua colaboradora desde que ingressou na vida política. Importa também salientar que a tradução é geralmente fluente, apesar de ter sido executada por quatro pessoas, dada a compreensível urgência editorial da publicação do livro.

É possível que Angela Merkel tenha pensado, desde muito cedo, em publicar as suas memórias. Mas creio, até pelo teor da obra, que a sua decisão tenha correspondido principalmente à necessidade de se justificar, perante os alemães e o mundo, de muitas das suas decisões e indecisões, numa altura em que a Alemanha desempenhava um papel fulcral na política europeia, e até internacional, o que já não se verifica no tempo que vivemos. E também lhe dá espaço para proceder ao seu auto-elogio, de que não prescinde sempre que a ocasião se proporciona. 

 
Não permite este espaço um comentário detalhado sobre o enorme livro, pelo que se fará referência apenas a alguns aspectos que solicitaram particular atenção.

Devo acrescentar que não comungo dos pressupostos ideológicos de Angela Merkel e que, neste livro, me interessei especialmente sobre a sua intervenção na política internacional, até pelo facto de não ter acompanhado com a devida atenção o seu desempenho na vida interna da Alemanha.

É um pouco estranha a vida familiar de Angela Merkel. Casou em 1977 com o seu colega Ulrich Merkel, tinha então 23 anos e ele 25, de quem viria a divorciar-se posteriormente (1982), embora continuasse a manter o respectivo apelido. Casou pela segunda vez em 1998 com Joachim Sauer, cinco anos mais velho e pai de dois filhos de um casamento anterior. Angela Merkel nunca teve filhos, presumo que para não perturbar a sua carreira política (é uma opção), embora se possa também dever a causas biológicas que desconheço. Angela, tal como os dois maridos, é cientista na área da físico-química. O segundo marido, que raramente é mencionado na biografia (apenas a acompanhá-la em algumas visitas oficiais) deve ter-se resignado a um papel académico e de consorte.

 
Ao longo destas memórias, Angela Merkel tenta demonstrar-nos a forma como tomou as suas decisões, embora admita ter cometido alguns erros. E as suas “confissões” permitem entrever alguns actos certamente menos felizes, como a forma como puxou o tapete ao ex-chanceler Helmut Köhl, envolvido num aparente caso de corrupção, a quem ela devia a sua ascensão política, e que foi obrigado a demitir-se de presidente honorário da CDU.

Também não deixa de ser curiosa esta afirmação de Merkel no discurso de apresentação da candidatura a presidente da CDU, em 2000:

 
«… Mas quero também uma CDU que, após os debates e as discussões, tome decisões claras, aceite as decisões por maioria e siga em frente perfilhando um caminho comum…» (p. 259)
Este discurso de Angela Merkel assemelha-se muito ao de Salazar, em 27 de Abril de 1928, quando tomou posse como ministro das Finanças:

 
«Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.» (Oliveira Salazar, Discursos, Volume I, p.6)

No que respeita à guerra do Iraque, Angela Merkel foi muito favorável à sinistra invasão protagonizada por George W. Bush e Tony Blair, em oposição ao então chanceler Gerhard Schröder. Reconhece agora o embuste das armas de destruição maciça mas não se coíbe de dizer que foi muito bom que Saddam Hussein tenha sido derrubado.

Conta também algumas conversas com Vladimir Putin, entre as quais a seguinte:
«Nove meses depois, a 21 de Janeiro de 2007, visitei Vladimir Putin na sua residência de Sochi, junto ao mar Negro. Durante a conversa, ele atirou-me à cara que, na sua opinião, o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. Esta atitude não era nova, já a havia manifestado publicamente em 2005 no discurso sobre o estado da Nação. […] Em Sochi, deixei-o falar e tentei manter-me calma. Respondi que ele deveria conversar com George W. Bush acerca do sistema antimísseis e sublinhei ainda que a maior catástrofe do século XX foi o nacional-socialismo na Alemanha e que, de um modo totalmente inesperado, o fim da Guerra Fria mudou a minha vida para infinitamente melhor.» (pp. 362-3)

Perfilho a opinião de Vladimir Putin que o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. O nacional-socialismo, na sua hubris alucinada, foi também uma catástrofe, todavia de características diferentes. No primeiro caso, houve o desmoronamento súbito de um sistema responsável pela vida de 300 milhões de pessoas. No segundo, uma guerra devastadora que causou cerca de 80 milhões de mortos entre militares e civis. Ambos os casos foram uma tragédia, embora a queda da URSS configure a implosão de um só território.

 
Entre várias imprecisões, registo esta - confusão de Angela Merkel ou problema de tradução - a propósito de uma conversa com o secretário do Tesouro norte-americano, Henry M. Paulson:

 
«Mostrou-se particularmente interessado em saber porque diabo os países da Zona Euro estabeleceram um pacto de estabilidade no qual se comprometiam a limitar o défice orçamental a 3% do produto interno bruto (PIB) e a dívida pública a 60% do PIB. A minha resposta de que, tendo em conta a responsabilidade para com as gerações futuras, era importante fazer uma gestão sustentada, em particular num continente com uma população envelhecida, suscitou-lhe apenas um sorriso rasgado.» (p. 372)
Que Paulson se tenha rido desta afirmação de Merkel não surpreende. Um secretário do Tesouro norte-americano é por natureza um ser desumano cuja vida consiste em amontoar ouro à sua volta. A própria nota de dólar [In Go(l)d we trust] é disso prova. O que é realmente surpreendente é a afirmação do défice orçamental ser 3% do PIB; ora o que está indexado ao PIB é naturalmente a dívida e não o défice, que é meramente orçamental.

 
Há no livro uma larga descrição da crise financeira (decorrente da falência do Lehman Brothers) e da crise do Euro. Merkel descreve, à sua maneira, as diligências que fez para salvar o Euro, embora isso tenha levado a dolorosos sacrifícios das populações de Portugal, Espanha, Itália e especialmente Grécia. E enaltece a sua acção, respaldada pelo Tribunal Constitucional da Alemanha e apoiada ou forçada pelo inenarrável ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, no sentido de encontrar uma solução “compatível com as exigências dos mercados”, frase de que posteriormente se viria a arrepender, como ela mesmo diz, pois foi geralmente interpretada como se ela quisesse uma democracia compatível com as exigências dos mercados. No fundo, interrogo-me se não seria isso mesmo que ela queria. E escreve:
«É evidente que, neste contexto, fui a todo o tempo confrontada com a pergunta sobre se não podia ter simplesmente cedido e prescindido de todas as exigências de duras medidas de austeridade e reformas económicas face á situação da Grécia, Portugal, Espanha e Itália. A minha reputação nestes países estava na lama, em particular na Grécia.» (p. 412)

Naturalmente que haveria outras soluções, não fora a sua obstinação e a inconcebível ortodoxia financeira do Bundesbank. As medidas posteriores de Mario Draghi, no Banco Central Europeu, contribuíram para ajudar a resolver a crise do Euro.

 
Mas não foi só a reputação de Merkel que andou pela lama. Nos países vítimas da sua política, muitas vozes se ouviram gritando contra ela a última fala (dita por Herodes) da peça Salome, de Oscar Wilde, escrita originalmente em francês e logo a seguir traduzida para inglês por Lord Alfred Douglas:

“KILL THAT WOMAN!”

A questão da Ucrânia é amplamente tratada no livro. Na Cimeira da NATO em Bucareste, em 2008, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, em nome da Alemanha e da França, opuseram-se à concessão do estatuto Membership Action Plan (MAP) à Ucrânia, para grande frustração do então presidente Viktor Yushchenko. Pelas razões largamente explanadas, Merkel continua a entender que, na altura, foi a opção correcta. E menciona o facto de apenas uma minoria da população ucraniana apoiar então a pertença do país à NATO (p. 426) e da frota da Marinha russa no Mar Negro estar estacionada na península da Crimeia, de acordo com um tratado celebrado entre a Ucrânia e a Rússia, com validade até 2017. Note-se que este tratado foi prorrogado, em Abril de 2010, por um período de mais 25 anos, até 2042, por acordo entre os então presidentes Ianukovitch e Medvedev. A oposição à concessão do estatuto MAP à Ucrânia, naquela reunião, abrangeu também a Geórgia.

«Paralelamente ao alargamento da União Europeia em 2004, com a entrada de dez novos estados membros – Polónia, Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Eslovénia, Chéquia, Hungria, Malta e Chipre – a Comissão Europeia elevou a um novo patamar a cooperação com os vizinhos a leste a e a sul da EU, apresentando uma estratégia para a chamada Política Europeia de Vizinhança. Foi com esta base que, a 13 de Julho de 2008, em Paris, se fundou com os países do Sul a chamada União para o Mediterrâneo, à qual pertenciam então vinte e sete Estados-membros da União Europeia e dezasseis países mediterrânicos. Entre os países vizinhos a leste, a Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Geórgia, Moldávia e Ucrânia desejavam a integração na Política Europeia de Vizinhança, mas não a Rússia, apesar de muitos países da EU, entre os quais a Alemanha, serem a favor.» (pp. 441-2)

«Depois da guerra empreendida pela Rússia contra a Geórgia, em Agosto de 2008, gerou-se no seio dos membros da União Europeia, entre os quais a Alemanha, uma maior disponibilidade para agir, mesmo sem ou contra a Rússia. Por conseguinte, a 7 de Maio de 2009, em Praga, durante a presidência checa do Conselho Europeu, teve lugar a cimeira fundadora da chamada Parceria Oriental, na qual participaram o Azerbaijão, Arménia, Geórgia, Moldávia, Bielorrússia e Ucrânia, tornando-se assim, após a União para o Mediterrâneo, dez meses antes, a segunda etapa da Política Europeia de Vizinhança. (p. 442)

«O primeiro país da Parceria Oriental a concluir em 2011, as negociações de um acordo de associação com a EU foi a Ucrânia. Antes disso, operou-se uma mudança de Governo no país. Nas eleições presidenciais de 2010, o titular do cargo, Viktor Yushchenko, ficou fora da corrida na primeira volta, com apenas 5,5 % dos votos. Na segunda volta, em Fevereiro de 2010, Viktor Ianukovitch ficou à frente de Iulia Timoshenko, que em 2005 Yushchenko tinha exonerado do cargo de primeira-ministra.» (p. 443)

Na Cimeira da Parceria Oriental, em Vilnius, em 28 e 29 de Novembro de 2013, Ianukovitch disse a Merkel que ainda não era oportuno assinar o acordo com a União Europeia, devido ao diálogo que mantinha com a Rússia e os países da CEI.

 
Segue-se a descrição dos protestos na praça Maidan, em que a multidão [comandada especialmente pelos Estados Unidos, penso eu] agrediu os próprios delegados da oposição que tinham chegado a um acordo com Ianukovitch. Verifica-se depois a fuga deste e a eleição de Oleksandr Turtchynov para presidente do Parlamento e logo a seguir para presidente da República interino. Em 23 de Fevereiro de 2014, o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev ordenou a retirada do embaixador russo em Kiev. Em 28 de Fevereiro, homens armados de fardas verdes sem qualquer identificação oficial começaram a ocupar a Crimeia. No dia 1 de Março, Merkel telefona a Putin, que nega a intervenção. «E assim, como muito em breve vim a perceber sem margem para dúvidas, ele mentiu-me descaradamente. Jamais tal havia acontecido nas nossas conversas até àquele dia, pelo menos daquela forma. Não cortei o contacto com ele, não era uma opção que estivesse realmente em cima da mesa, mas daí em diante a nossa relação mudou.» (p. 449)

Em 16 de Março de 2014 uma esmagadora maioria da população da Crimeia votou a favor da unificação com a Rússia, embora Angela Merkel duvide da fidedignidade do referendo. A ex-chanceler [num exercício de alguma hipocrisia] recorda o Memorando de Budapeste de 1994, no qual, em troca da entrega de armas nucleares soviéticas existentes no território, se garantia à Ucrânia a protecção da integridade do país. [Em primeiro lugar, as armas nucleares estacionadas na Ucrânia eram russas, em segundo lugar, o contexto geopolítico tinha-se modificado radicalmente]. Em 21 de Março, em Viena, na reunião do Conselho Europeu, os chefes de estado e de Governo da EU e o primeiro-ministro ucraniano Arseniy Yatsenyuk assinaram a componente política do acordo de associação entre a EU e a Ucrânia que não fora assinado em Vilnius. Nesse mesmo dia, o Conselho Permanente dos 57 países-membros da OSCE, a que pertencem a Rússia e a Ucrânia, aprovou o envio de uma missão especial de observação para a Ucrânia (SMM, Special Monitoring Mission. Em 24 e 25 de Março, em Haia, o Grupo dos agora Sete excluiu a participação da Rússia, anulou o encontro previsto para Sochi e veio a reunir-se, já como G7, em Bruxelas, em 4 e 5 de Junho de 2014.

Verificam-se, depois, os confrontos no Donbass, e em 11 de Maio de 2014 uma maioria de votantes das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk proclama a independência.

 
Para o 70º aniversário do desembarque dos Aliados na Normandia, em 6 de Junho de 2014, François Hollande convidou mais de 20 chefes de Estado e de Governo. Petro Poroshenko, novo presidente da Ucrânia, manifestara a Merkel a vontade de estar presente, até porque as tropas ucranianas tinham combatido na Segunda Guerra Mundial e seria uma oportunidade de se avistar com Putin, que estaria também presente. Assim, encontram-se todos no castelo de Benouville. Hollande conseguiu arranjar dez minutos antes do almoço, em sala à parte, para juntar com ele Angela Merkel, Vladimir Putin e Petro Poroshenko. A conversa resultou bem, embora sem acordos concretos. Nascia assim o “Formato Normandia”.

Em 20 de Junho de 2014, Poroshenko apresentou um plano de paz, em quinze pontos, em que previa a retirada dos mercenários russos e ucranianos, o desarmamento dos separatistas e critérios para a sua possível impunidade, a criação de uma zona-tampão na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, a descentralização do poder mediante a alteração da Constituição e a antecipação das eleições autárquicas e legislativas. Mas o líder da República de Donetsk rejeitou o cessar-fogo. Em 23 de Agosto, véspera do Dia da Independência da Ucrânia, Angela Merkel, depois de conversações com Poroshenko e Yatsenyuk, declara que “sem conversações e diplomacia não se chegaria a uma solução”, acrescentando que “não haverá uma solução militar” (p. 457). Mas Oleksandr Turtchynov, novamente presidente do Parlamento [certamente um partidário da guerra] comentou que “a diplomacia era muito boa e muito bonita mas só o exército ucraniano tem condições para pôr fim a esta guerra”. O plano de paz de Poroshenko estava sob grande pressão política mas, mesmo assim, foi assinado o “Protocolo de Minsk”, em 5 de Setembro de 2014,com as duas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, e no dia 19 de Setembro o “Memorando de Minsk”, que visava a implementação do protocolo. Contudo, o cessar-fogo nunca chegou a ser cumprido.

A 11 de Fevereiro de 2015, encontraram-se em Minsk, no Palácio da Independência, Angela Merkel e François Hollande com Vladimir Putin e Petro Poroshenko, uma nova reunião no “Formato Normandia”, tendo declinado, para poupar tempo, o jantar comemorativo que o presidente bielorrusso Alexander Lukashenko pretendia oferecer. A reunião durou 17 horas, tendo terminado por volta das 12 horas do dia 12. Era necessário chegar a acordo quanto à entrada em vigor do armistício. Putin declarou-se disponível para apresentar o pacote de medidas, que de futuro se viria a chamar Minsk II, juntamente com o Acordo de Minsk e o Memorando de Minsk de Setembro de 2014, de futuro Minsk I, como proposta de resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A 13 de Fevereiro, tal como estipulado, a Rússia apresentou a proposta de resolução com os vários Acordos de Minsk ao Conselho de Segurança, que foi aprovada por unanimidade a 17 de Fevereiro de 2015 como “Resolution 2202 (2015)”.

«A anexação da Ucrânia alterou dramaticamente o nível de ameaça não apenas na Ucrânia, como em toda a Europa. Ocorreu o que se tentou evitar no início da década de 1990: uma nova linha divisória atravessava o continente. Já não era possível excluir uma ameaça por parte da Rússia aos países-membros da NATO. A par de todas as tentativas de solucionar o conflito entre a Ucrânia e a Rússia pela via diplomática, a Aliança era obrigada a reagir à nova situação também pela via militar. Isto sucedeu na Cimeira da NATO a 4 e 5 de Setembro de 2014, em Newport, no País de Gales. Depois de a NATO se ter concentrado anos a fio em missões no exterior, como na ex-Jugoslávia, no Afeganistão e na Líbia, a obrigação de defesa mútua de acordo com o artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte dentro dos territórios da Aliança voltou, face à ameaça representada pela Rússia, a estar na ordem do dia. Finda a Guerra Fria, os planos de defesa tinham passado, em larga medida, para segundo plano. E eis que a situação se alterava. A cimeira acordou medidas com vista à agilização da reacção militar na Europa (Readiness Action Plan – Plano de Acção de Prontidão), em particular para os países situados no flanco oriental da NATO, como a Polónia, Estónia, Letónia e Lituânia. Além disso, foi montada uma task force de alto nível da NATO, a VJTF (Very High Readiness Joint Task Force), uma unidade militar de intervenção rápida. Os Estados-membros comprometeram-se a, no prazo de dez anos, aproximar-se do valor de referência de 2% do PIB aplicados em despesas relacionadas com a defesa.» (p. 468-9)

O tema dos gastos com a defesa foi, e continua a ser, um pomo de discórdia.
«Na Cimeira da NATO em Varsóvia, a 8 e 9 de Julho de 2016, deliberou-se o destacamento de agrupamentos tácticos (battlegroups) multinacionais na Polónia e nos Estados Bálticos. A Alemanha assumiu a liderança em 2017, na Lituânia. As tropas revezavam-se de seis em seis meses, dado que o Acordo NATO-Rússia proibia os destacamentos permanentes nos novos Estados-membros, e eu fazia questão de continuar a respeitar os acordos, apesar da tensão com a Rússia.» (p. 469)

Não sendo possível, devido à extensão do presente texto, continuar a desenvolver as mais importantes participações de Angela Merkel em política externa, passarei a indicar apenas os tópicos das acções mais relevantes.

São dedicadas largas páginas ao capítulo Imigração e, em especial, ao acordo efectuado com a Turquia para a retenção de imigrantes, nomeadamente sírios, nesse país. (pp. 489 e seguintes)

Também merecem relevo a Cimeira de Copenhaga sobre o Clima, em 2009, a Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, em 2015 (p. 545), a Cimeira do G20, em Hamburgo (p. 561), a questão do Nord Stream 1 e 2 (p. 576) e as missões da Bundeswehr no Afeganistão, na Líbia, nos Balcãs Ocidentais (pp. 587 e seguintes). Angela Merkel admite, implicitamente, o erro das intervenções armadas no Afeganistão, no Iraque, na Líbia.

Angela Merkel refere com ênfase a questão do serviço militar obrigatório (pp. 602 e seguintes). Era de opinião que se mantivesse, ainda que restringido no tempo, sendo já menos de 20% das pessoas nascidas num dado ano que prestavam serviço militar básico. Nas discussões para redução do orçamento da Defesa proposta por Schäuble, em 2010, o assunto foi vivamente debatido. Em 15 de Dezembro de 2010, o Conselho de Ministros decidiu suspender o serviço militar obrigatório, mas não aboli-lo. Foi introduzido o “serviço militar voluntário”, bem como o “serviço civil voluntário”, em substituição do “serviço civil”.

É vasto o espaço dedicado às relações da Alemanha, e da própria Merkel, com Israel. A ex-chanceler, na esteira de Adenauer, considera-as uma “razão de Estado”, tendo em conta o passado nazi do país e faz o elogio do Estado judaico. A propósito de uma viagem, escreve: «A 9 de Outubro de 2021, um sábado, aterrei ao início da noite em Telavive, no Aeroporto Ben-Gurion. Daí segui directamente para Jerusalém, onde passei a noite no lendário King David Hotel. Uma parte desse hotel, inaugurado em 1931, servira até à independência do Estado de Israel, em Maio de 1948, de sede administrativa do Mandato Britânico da Palestina.» (p. 611) Não lhe ocorreu referir que para a lenda desse hotel muito contribuiu o ataque à bomba, em 22 de Julho de 1946, efectuado pela organização armada sionista Irgun, chefiada por Menachem Begin, que foi mais tarde primeiro-ministro de Israel, e de que resultaram 91 mortos (28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e 5 não referenciados), além de 45 feridos graves.

Também Angela Merkel se refere aos episódios de tremuras em cerimónias oficiais, ocorridos pela primeira vez aquando da primeira vista de Estado à Alemanha de Volodimir Zelensky, em 2019.(p. 631) Estes incidentes, que todos observámos pelas televisões, foram posteriormente considerados como consequência de tensões acumuladas durante muito tempo.

O último capítulo do livro é dedicado à pandemia covid-19. A autora descreve a evolução da doença, as medidas adoptadas, as restrições às liberdades e mesmo as dificuldades de harmonizar os pontos de vista do governo federal e dos governos dos Estados-federados.

Na página 668, Angela Merkel interroga-se sobre se teria sido possível evitar a invasão da Ucrânia, caso não houvesse a pandemia. «Ninguém sabe se o ataque de Vladimir Putin á Ucrânia, iniciado a 24 de Fevereiro de 2022, podia ter sido evitado se a pandemia não se tivesse instalado e se, ao invés de encontros virtuais, tivessem sido possíveis encontros pessoais, tanto bilaterais como no chamado Formato Normandia – entre Alemanha, a França, a Ucrânia e a Rússia. Certo é, porém, que a covid foi um prego no caixão dos Acordos de Minsk, celebrados em Fevereiro de 2015. Desde 2016 e até terminar as minhas funções como chanceler federal, já só houve mais um encontro no Formato Normandia, a 9 de Dezembro de 2019, em Paris, poucas semanas antes do início da pandemia. Esse encontro em Paris foi também o único em que participou o recém-eleito presidente ucraniano Volodimir Zelensky, que assumiu o cargo seis meses antes. Ganhou as eleições, tendo-se imposto na campanha ao seu antecessor, Petro Poroshenko, em boa medida graças à sua popularidade como actor e comediante e à extraordinária capacidade de comunicação. Zelensky censurou fortemente Poroshenko, que negociou os Acordos de Minsk, não só por o conflito se manter activo no Donbass como a Crimeia permanecer ocupada pela Rússia desde 2014, e prometeu que se esforçaria por devolver a paz ao seu país.»
«No Governo ucraniano e no Parlamento havia uma forte resistência contra a parte dos Acordos de Minsk que previa um elevado grau de autonomia para os territórios separatistas após a realização de eleições locais. Ainda assim, os acordos resultaram numa certa pacificação da situação, sobretudo em comparação com a altura anterior à sua entrada em vigor. […] Foi por essa razão que Petro Poroshenko, o antecessor de Zelensky, manteve as conversações com a Rússia – no Formato Normandia, juntamente com a Alemanha e a França -, além de participar no Grupo de Contacto Trilateral da OSCE.» (p. 669)

«Aquando do nosso encontro em Paris no Formato Normandia, que ocorreu a 9 de Dezembro de 2019, era grande a pressão sobre Zelensky. No início de Outubro, mostrou-se disponível para uma maior autonomia nas regiões em conflito no Donbass, defendendo a chamada “Fórmula de Steinmeier”. Esta última foi o resultado de um encontro no Formato Normandia realizado em Outubro de 2015, em Paris, no qual Frank-Walter Steinmeier e os outros ministros dos Negócios Estrangeiros participaram. A fórmula descrevia de que modo e em que condições entraria em vigor uma lei que concedesse um estatuto especial de autonomia para as regiões de Donetsk e Lugansk, após a realização de eleições locais que obtivessem reconhecimento por parte da OSCE. Servia, desse modo, como um complemento do pacote de medidas previstas pelos Acordos de Minsk. Poroshenko, o antecessor de Zelensky na presidência ucraniana, concordou expressamente com a fórmula, mas, entretanto, juntou-se a uma multidão de quase cem mil manifestantes que, em Kiev, se opunham a Zelensky e gritavam “Não à capitulação! Não à amnistia!”, protestando, no fundo, contra os Acordos de Minsk. Ao contrário do que ficou estipulado nos acordos, os manifestantes, bem como alguns representantes do Governo e do Parlamento, não aceitavam qualquer autonomia para as regiões ocupadas pelos separatistas nem qualquer amnistia para os que aí eram responsáveis.» (pp. 670-1)

«Zelensky pretendia um controlo ucraniano antes das eleições locais, mas no pacote de medidas acordado em Minsk tal só estava previsto para o período posterior às eleições. Até lá, só mesmo os observadores da OSCE deviam ter acesso à fronteira. Putin insistia na formulação que constava nos Acordos de Minsk. Eu aconselhei Zelensky a não pôr em causa o estipulado, pois foi após cuidada reflexão que em 2015 incluímos o reconhecimento das eleições por parte da OSCE, em particular através do seu Gabinete para as Instituições Democráticas e os Direitos Humanos (ODIHR), no pacote de medidas incluído nos Acordos de Minsk. Estava convencida de que, se conseguíssemos falar o quanto antes com o ODIHR acerca das condições prévias para eleições locais livres e democráticas, haveria a possibilidade de esclarecer a questão do acesso à fronteira sem pôr em causa o que estava acordado. Pacta sunt servanda, “os acordos devem ser respeitados”, um princípio da política que tem dado provas do seu valor, mesmo quando cumpri-lo em nada nos facilita a vida. […] Zelensky manteve-se fiel ao seu ponto de vista. Para ele, havia porventura razões de política interna para não aceitar por completo o que tinha sido estipulado em Minsk, tanto mais que também o seu antecessor entretanto se demarcou desses acordos.» (p. 671)

Angela Merkel prossegue com a sua descrição de todas as diligências que efectuou, inclusive com Putin, apesar do tempo de pandemia, para alcançar uma solução satisfatória, mas teve a oposição do primeiro-ministro polaco Mateusz Morowiecki, da primeira-ministra estónia Kaja Kallas, e do presidente lituano Gitanas Nauséda. (p. 673)

«Também durante a minha última visita a Putin, em Moscovo, a 20 de Agosto de 2021, fui incapaz de alterar a situação. […] Despedimo-nos. Ao longo de duas décadas de encontros conjuntos, Putin havia-se transformado e, juntamente com ele, também a Rússia: de uma abertura inicial em relação ao Ocidente a situação evoluiu para um alheamento e depois para um completo endurecimento das relações. Em retrospectiva e apesar de toda as adversidades, considero ainda assim acertado que até ao fim do período em que ocupei o cargo de chanceler tenham sido valorizados os contactos com a Rússia, por exemplo através do Diálogo de São Petersburgo. Acho importante que a minha própria capacidade de diálogo com Putin não tenha sido abalada e que, através das relações comerciais – para lá dos benefícios económicos mútuos -, se tenham mantido activos os pontos de contacto. Na verdade, a Rússia é, a par dos EUA, uma das duas principais potências nucleares do mundo e, em termos geográficos, vizinha da União Europeia.» (pp. 673-4)

Pelo que se transcreveu, e pelo mais que Angela Merkel escreveu – e ela é uma pessoa insuspeita – pode concluir-se que a Alemanha pensava ser possível concluir-se um acordo com Vladimir Putin, satisfatório para a Rússia e também para a Ucrânia, atendendo às circunstâncias no terreno, mas que foi a obstinação de Volodymyr Zelensky que impossibilitou a sua realização. É que um acordo, ainda que com cedência de território (e essa solução nem sequer estava em cima da mesa antes da invasão) seria sempre preferível a uma guerra. Talvez o regime instalado em Kiev não previsse a duração e os danos humanos e materiais provocados pela guerra que entretanto sucedeu, mas compete ao poder político avaliar todas as consequências de decisões temerárias.

Atendendo a que este comentário ao livro Liberdade, de Angela Merkel, ocupou já um espaço demasiado extenso para a dimensão de um post, não me alongarei em outras considerações. Direi apenas que a Cultura está praticamente ausente dos 16 anos de Angela Merkel na Chancelaria Federal, uma omissão significativa.

É TUDO!

sábado, 14 de dezembro de 2024

D. SEBASTIÃO, ANTES E DEPOIS DE ALCÁCER-QUIBIR (SALES LOUREIRO)

Em 1978, quarto centenário da batalha de Alcácer-Quibir, Francisco de Sales Loureiro publicou D. Sebastião - Antes e Depois de Alcácer-Quibir, referindo, em Advertência, que indicara previamente este título à editora, sendo surpreendido pela publicação, precisamente antes desta edição, de um livro de António Belard da Fonseca com idêntica designação. Contudo, resolvera manter o título, uma vez que, na sua opinião, ele convinha perfeitamente à urdidura da obra.

O livro começa por abordar o ambiente de crise e tensões que se viviam no século XVI, onde se defrontavam dois impérios: o Turco, a Oriente, e o de Carlos Quinto, a Ocidente, face ao império português. que se estendia à Índia. Salienta que as riquezas provenientes da nossa expansão não provocaram uma melhoria na situação económica do país pois foram gastas em bens supérfluos, em luxos, sem benefício para o povo. 

O confronto entre os dois "partidos" chefiados por D. Catarina de Áustria e pelo Cardeal-Infante D. Henrique contribuiu para um mal-estar da sociedade portuguesa. D. Catarina favorecia, como é óbvio, os interesses da Casa de Áustria e de seu irmão Carlos Quinto. O facto de promover o casamento dos seus dois filhos que chegaram à idade núbil, D. Maria Manuela e D. João Manuel, com os dois filhos do Imperador, Filipe II e D. Joana, causou profundo descontentamento no povo, e mesmo na nobreza, que receava a perda da independência em proveito de Espanha, como aliás viria a acontecer por morte de D. Sebastião e de D. Henrique. 

Além da política castelhanófila de D. Catarina, o autor enfatiza os seus gastos sumptuários, os seus luxos e mesmo a sua influência no domínio religioso, rodeando-se de padres espanhóis como frei Luís de Granada, que foi seu confessor e de Frei Luís de Montoya, que escolheu para confessor de D. Sebastião. Mas foi a influência da Companhia de Jesus, através dos irmãos padres Luís e Martim Gonçalves da Câmara, que teve uma preponderante importância na educação e reinado de D. Sebastião.

Ainda antes de abordar o reinado do monarca, e recorrendo a diversas fontes, o autor traça um quadro da situação económica e financeira do país na época imediatamente anterior ao início do reinado de D. Sebastião.

A Segunda Parte do livro trata de "O Monarca e as suas Circunstâncias". Seguindo de perto Queiroz Velloso, Alfonso Danvila (ambos objecto de posts anteriores) e Lúcio de Azevedo, entre outros, Sales Loureiro retrata na essência o que sobre D. Sebastião já conhecemos dessas obras. Ainda que várias das suas apreciações nos pareçam um pouco desajustadas das interpretações desses autores.

Tendo D. João III instalado a Companhia de Jesus em Portugal, surgiram desde o início duas opiniões acerca da permanência dos jesuítas no país: os que entendiam que eles se deviam ocupar especialmente do Ultramar, para a dilatação da Fé, e que não eram muito necessários no Continente (opinião do cardeal-infante D. Henrique) e os que pensavam que seria melhor que eles ficassem no Reino (opinião de seu irmão o infante D. Luís). Apesar dessa opinião, o cardeal favoreceu largamente a Companhia, enquanto arcebispo e inquisidor-geral, e mais tarde ele mesmo como rei, na senda de seu irmão D. João III. Também D. Sebastião foi pródigo em relação aos jesuítas. É claro que as avultadas benesses à Companhia provocaram o ressentimento das antigas ordens religiosas, com larga tradição de serviços prestados.

A propósito da "doença" de D. Sebastião, que os principais biógrafos consideram tratar-se de espermatorreia, Sales Loureiro refere (p. 92) a hipótese de uma precoce experiência sexual, que lhe poderia ter proporcionado uma doença blenorrágica, aquando da sua primeira jornada ao Alentejo. É a primeira vez que lemos esta referência. O autor contesta que D. Sebastião fosse misógino (p. 94) o que está em contradição com as mais abalizadas opiniões a respeito do comportamento do monarca. Afirma igualmente (p. 95) que D. Sebastião não era "autocrático, despótico, atribiliário", ideia muito discutível face a tudo o que dele conhecemos. Além disso, a palavra correcta é "atrabiliário" e não "atribiliário", erro do autor ou lapso de revisão do texto. 

Sales Loureiro encontra também justificação para as conquistas no Norte de África, não só para dilatação do Império e expansão da Cristandade mas devido ao facto de o Mouro ser o inimigo perpétuo (p. 116) e ameaçar poderosamente a Península Ibérica. Já vimos, em respeitáveis obras que mencionámos em posts anteriores, que esta visão não corresponde à verdade. O Turco estava bastante debilitado depois da derrota de Lepanto para prestar especial auxílio a Marrocos, e o xerife manifestara disposição para ceder a D. Sebastião as praças que ele desejasse (Larache por exemplo) a fim de se evitar a guerra.

Como o autor comete muitas imprecisões, dispensei-me de ler a Terceira Parte (A Jornada ao Alentejo e Algarve e a Primeira Jornada de África), aliás já descritas em comentários a outros livros.

Na Quarta Parte ("Onde quase tudo se acaba") começa o autor por dizer: «Ao contrário do que Queiroz Velloso supõe, contestando Rebelo da Silva e Pereira Baião, foi de facto na primeira jornada de D. Sebastião ao Alentejo e ao Algarve, que D. Álvaro de Castro realizou a primeira ofensiva contra os Gonçalves da Câmara, que acusa de terem arruinado o reino, "com as leis sobre câmbios e moedas".» (p. 165) E explica as razões. 

Sales Loureiro relata depois o encontro de D. Sebastião em Guadalupe com Filipe II, os preparativos para a expedição a África e a batalha de Alcácer-Quibir, assuntos que já foram objecto de outros posts. O autor sustenta que a jornada de D. Sebastião a Marrocos era essencial não só para protecção das fortalezas (agora poucas) que lá tínhamos mas também para a defesa das nossas costas e para travar o expansionismo turco até ao Atlântico. Como é provado por outras análises esta argumentação é infundada. Talvez ela estivesse na cabeça de D. Sebastião ou o rei português invocou-a apenas para satisfazer o seu desejo de combater pessoalmente o Mouro, o que nos custou muito caro, e mesmo a independência nacional.

Escreve também o autor que Filipe II «estragara dois matrimónios - o de França e o da Alemanha» a D. Sebastião (p. 180). Isto é absolutamente inexacto. Tivemos ocasião de observar, a propósito de referências a livros anteriores, que foi o próprio D. Sebastião quem provocou a não concretização desses matrimónios. O rei afastou sempre, liminarmente, qualquer ideia de casamento e só aceitou pedir a mão da filha mais velha de seu tio com a intenção de que este lhe concedesse o apoio para a expedição a África. Tivesse tudo corrido bem e certamente arranjaria um pretexto para se retractar mais tarde.

Também Sales Loureiro considera que ao desincentivar D. Sebastião da ida a África Filipe II o fez com o propósito oculto de que o sobrinho, contrariando-o, se metesse África dentro, criando-lhe as condições de entrar em Portugal. Esta hipótese é aliciante, tendo em atenção o carácter do monarca espanhol, mas os testemunhos da época vão no sentido oposto. Filipe e o Duque de Alba procuraram convencer, sem sucesso, D. Sebastião da temeridade da empresa. Sem prejuízo de que Filipe II terá tido sempre em mente a união das duas coroas, mas através de casamentos.

Sobre a batalha de Alcácer-Quibir, descreve-a Sales Loureiro sensivelmente nos mesmos termos que o fez Queiroz Velloso.

A Quinta Parte intitula-se "Depois de Alcácer, o Sebastianismo". O primeiro capítulo trata de "A Fenomenologia e Formas do Sebastianismo". O autor transcreve da Introdução a O Império Colonial Português, de C.R. Boxer: «Por que razão esta nação pequena, bastante pobre e culturalmente atrasada, situada na costa sudoeste da Europa, foi tão dramaticamente bem sucedida nesse grande século de empreendimentos que começou por volta de 1440? E por que razão se tornou este êxito uma pálida sombra de si mesmo no curto espaço de cinquenta anos?» (p. 222) E considera que os ingredientes principais da força propulsora da Expansão, tanto de portugueses como de espanhóis, foram a  cobiça e a devoção, acrescentando, segundo Boxer, a propósito de Portugal, que «o seu nome está indelevelmente escrito na História mundial: um feito extraordinário para um país tão pequeno e pobre.» (p. 223)

O autor faz referência às Trovas do Bandarra, compostas 14 anos antes da vinda ao mundo do Desejado, as quais contêm reminiscências bíblicas, que autorizavam as interpretações dos Cristãos-Novos, implacavelmente perseguidos, desde fins do século XV, - interpretações essas que previam a chegada próxima do Messias. (p. 232) Gonçalo Anes serviu-se também das Coplas de Frei Pedro de Frias, que dão expressão literária às profecias de Santo Isidoro.

«Assim nasce, convertido em poesia, o movimento de exaltação patriótica, denominado Sebastianismo, que, em forma de crença messiânica, já andava latente no subconsciente popular, irradiando em lendas, que fizeram o Rei escondido e disfarçado na armada de D. Diogo de Sousa, ou errando solitário pela planura sem fim dos campos de Alcácer. Ou mesmo preso a uma Ilha de Bruma, da qual regressará assistido do rei Artur de Inglaterra e das nove ocultas tribos de Israel.» (p. 233)

«Não admira, pois, que elementos nacionais ou estranhos, seduzidos pelo papel que poderiam representar ou pelo aproveitamento material que essa representação lhes pudesse, porventura conferir, pretendessem encarnar a figura do Desejado. Assim surge nas múltiplas mistificações de um rei de Penamacor - o Sebastianismo sob a forma cortesã; de um rei da Ericeira - o Sebastianismo activo de Mateus Álvares, desenvolvido em expressão violenta de combate; de um pasteleiro de Madrigal - o Sebastianismo romanesco de inspiração de Fr. Miguel dos Santos; de um Marco Túlio - a aglutinação do Sebastianismo lusíada no estrangeiro.» (pp. 234-5)

«Dentro ainda dessa corrente, uma vez identificado o Sebastianismo com o partido nacional da independência, nas proximidades da Restauração e na falta do Desejado, importava, então e apenas, operar a transferência do Encoberto para uma personagem que, pela sua legitimidade, pudesse representar, no concreto, o que essa figura lendária e misteriosa simbolizava no abstracto. Assim, o messianismo sebastianista marcou encontro com D. João, o Duque de Bragança, legítimo sucessor de D. Catarina, - duquesa de Bragança - pretendente mais válida na crise da sucessão.» (p. 236)

«Mas já D. Francisco Manuel de Melo, por outro lado, nas suas Epanáforas, assinala que os Jesuítas fomentavam a crença messiânica, tornando-se a Companhia, como afirma J. Lúcio de Azevedo, "foco activo de sebastianismo".» (p. 239)

«Não restam dúvidas de que o Sebastianismo se reacende extraordinariamente nos reinados de D. Pedro II e de D. João V, favorecido pelo descontentamento popular. Caracterizando este período, Diogo Barbosa Machado, nas suas Memórias, e o Padre Pereira Baião, no seu Portugal Cuidadoso e Lastimado, patenteiam a extraordinária irradiação do Sebastianismo e o respeito que o movimento lhes merece, aparecendo simultaneamente a opinião de Lord Tirawley, que divide os Portugueses do tempo em duas metades: uma de Cristãos-Novos à espera do Messias e, a restante, a aguardar D. Sebastião!» (p. 240)

O segundo capítulo intitula-se "O Anti-Sebastianismo e o Neo-Sebastianismo". Os jesuítas, muito ligados a D. Sebastião, alimentaram longamente a esperança do seu regresso e trabalharam pelo fim da dominação castelhana. Vejam-se os escritos sebastianistas do Padre António Vieira. As invasões francesas são uma ocasião para o regresso do Sebastianismo, que é combatido pelo Padre José Agostinho de Macedo. «Atingida a Restauração, verificou-se que o Reino restabelecido já não era o mesmo e que, embora livre, Portugal continuava decadente. Daí, a necessidade do Desejado, tanto mais que o Encoberto, ainda não era chegado (p. 245).  Manuel Bento de Sousa formula juízos altamente críticos sobre o Rei, que considerava degenerado, e realça perplexo em O Doutor Minerva: "É significativo isto, e prova que nas consciências da multidão não foi elle um culpado". Também António Sérgio estranha a irradiação que o Sebastianismo teve no povo português. «Anatemizando esse movimento, que galvanizou múltiplas gerações ao longo dos séculos, António Sérgio distingue do Sebastianismo o bandarrismo de 1640, e realça a semelhança "social-mental" entre o Português e o Judeu, como fundamento de reprodução entre nós do messianismo israelita.» (p. 246) «Ao espírito profundamente racionalista de Sérgio não poderia de modo algum satisfazê-lo a interpretação de um Oliveira Martins, que via no Sebastianismo "uma manifestação do génio natural íntimo da raça" e em que "o elemento primitivamente dominante nas populações é, em Portugal, o Celta". De igual forma não lhe dava maior satisfação a perspectiva de um Teófilo Braga: "O Sebastianismo era o carácter étnico do povo português, ramo da raça ligúrica, sempre animado da eterna esperança, e que irmana D. Sebastião com o rei Artur".» (p. 246)

«Também já antes Sampaio Bruno criticara a teoria histórica de Oliveira Martins, "que pretendeu, paradoxalmente, erigir o sebastianismo à altura da idiosyncrasia moral da gente portuguesa, quando, depois da épocha naturalmente compatível com a possibilidade da humana existência do rei D.  Sebastião, dentro dos limites normais da media da vitalidade, o sebastianismo foi sempre aberrante maluquice, peculiar de escassa data de alienados pacíficos, como taes julgados pelos seus contemporaneos e por seus conterraneos como taes tidos."» (p. 247)

Para Carlos Malheiro Dias o Rei foi «"uma reincarnação do Portugal do século XV; o seu misticismo, a sua bravura, a sua pureza reincarnadas." E contestando a crítica de Sérgio afirma: "De um lado está o sr. António Sérgio com o Racionalismo - e do outro a Pátria com D. Sebastião." Mais acrescenta: "O Sebastianismo é a própria nação repudiando as conclusões do Racionalismo."» (p. 248)

O autor evoca a presença de um neo-Sebastianismo na obra de Oliveira Martins (Camões, Nun'Álvares, Os Filhos de D. João I, História de Portugal, Portugal Contemporâneo, Civilização Ibérica) e afirma que a melhor Poesia contemporânea exprime um neo-Sebastianismo. Refere também a Mensagem, de Fernando Pessoa e alude à obra de António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, Guerra Junqueiro, Jaime Cortesão, António Sardinha, José Régio, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Almeida Garrett, Tomás Ribeiro Colaço, Metzner Leone.

E menciona também os pensadores e ensaístas como Fidelino de Figueiredo, António José Saraiva, João de Castro Osório, Silva Gaio, Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, José Marinho, Álvaro ribeiro e Agostinho da Silva.

No Brasil, salienta Euclides da Cunha, Lins do Rego e Odorico Tavares; em Espanha, Miguel de Unamuno e Tomás Garcia Figueras, em França, Raymond Cantel e Jean Subirats; na Inglaterra, Mary Elisabeth Brooks. 

«A partir de Oliveira Martins, o caudal sebástico toma forma de fonte de inspiração da Literatura nacional contemporânea, com carácter de permanência tal como nos garante passar a viver, sob forma literária e, até, culturológica, o que até aí estava subjacente na História.» (p. 258)


sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

D. SEBASTIÃO E O MIRAMOLIM

O escritor Aquilino Ribeiro publicou em 1936 o romance Aventura Maravilhosa de D. Sebastião Rei de Portugal depois da Batalha com o Miramolim, que foi reeditado pela Bertrand em 1975, na edição das suas Obras Completas.

Trata-se de um texto em língua vernácula, comum às obras do autor, que tem normalmente de ler-se com um dicionário ao lado, já que Aquilino utiliza amiúde palavras que há muito saíram, ou até nunca estiveram no vocabulário habitual.

Diga-se que o termo Miramolim é decorrente da expressão árabe Amir al-Muminim, que significa comandante (príncipe) dos crentes, título ainda hoje usado pelo rei de Marrocos.

Da prosa opulenta do grande Aquilino não poderemos reproduzir senão pálida imagem, salvo as breves transcrições de algumas passagens.

Começa o livro por nos relatar, com abundância de pormenores, a batalha de Alcácer-Quibir, com base nos documentos históricos conhecidos, até ao momento em que D. Sebastião, perdida a batalha, foge pra Arzila, onde se refugia, até embarcar para o Algarve, ficando então secretamente instalado num convento no cabo de S. Vicente. Aqui, começa a ficção romanesca.

Na sua fuga e na estada oculta na cela monástica D. Sebastião é acompanhado por Frei Salvador da Torre, que se lhe torna uma espécie de "pai" e protector. Numa viagem no Mediterrâneo, acompanhado do frade, o barco em que viajam é acometido pelos corsários, sendo ambos feitos cativos e enviados para Argel, onde decorre parte da acção subsequente. São arrematados por Morato Arrais, general das galés e italiano renegado, que está ao serviço da Sublime Porta, e cuja filha fora casada com o Abdel-Malik, o Maluco das Crónicas, cujo exército vencera os portugueses em Alcácer-Quibir. A rapariga, Bianca de seu nome, e que permanece cristã, interessa-se pelos cativos, especialmente por D. Sebastião, mas este, com a sua habitual misoginia, não corresponde às manifestações da jovem. Morato Arrais desconfia que o prisioneiro mais novo tem aspecto de ser pessoa importante, e susceptível de avultado resgate, mas nem o Rei nem o frade abrem a boca a tal respeito. Bianca, que  também pressente algo de extraordinário, ajuda-os a fugir.

Numa nova viagem, e após um naufrágio, vão parar ao Monte Athos, onde os monges ortodoxos os recolhem. Estas viagens constituem para D. Sebastião um itinerário de expiação dos seus pecados de ambição e vaidade por ter provocado com a malfadada expedição a África a morte de milhares de portugueses e o prejuízo da nação. Nos delírios que o acometem enquanto dorme, o Rei acaba por revelar um segredo, o de ter estado sentimentalmente interessado em algumas damas, o que para ele, absolutamente casto, se afigura ter sido um pecado. [Os nomes das donzelas citados por Aquilino são referidos por alguns historiadores, mas não consta que tivesse havido o mínimo interesse do Rei por elas, mas, realmente, delas pelo rei. D. Sebastião, por razões que nos ultrapassam, tinha mesmo repugnância pelas mulheres]. Entretanto o convento do Monte Athos é assaltado por uma expedição chefiada por um enviado do Morato Arrais, que tivera conhecimento de que um dos cativos evadidos com a ajuda de sua sobrinha era o antigo rei de Portugal. Os corsários são derrotados pelos monges, que têm estatuto especial conferido pelo califa de Constantinopla, mas um judeu amigo de Arrais regressa ao convento e informa de que não pretendia realizar um assalto mas tão só obter a restituição dos fugitivos. O higómeno do mosteiro fica então a saber a verdadeira identidade dos seus hóspedes e facilita-lhes a fuga para Salónica antes que o judeu volte a exigir a sua entrega.

O último capítulo é o melhor do livro. A acção decorre no Escurial. Filipe II, numa cela, acompanhado de médicos e criados, encontra-se às portas da morte. «Aspirou o fedor que aspirava a cloaca rota do seu corpo; experimentou o contacto do esterquilínio, suor de tísico, fezes, humores, piolhos e vermes em miríade, e caiu em si, na vera noção de quem era: Filipe II, rei de Castela e Aragão; rei de Portugal, de Nápoles e da Sicília, soberano dos Países Baixos; duque de Milão; senhor do Franco Condado; imperador do Novo Mundo...» (p. 242). 

Está a apodrecer lentamente. Cristóvão de Moura aparece à porta com uma pasta debaixo do braço. O rei manda-o entrar. O valido entrega-lhe os papéis para despacho, que Filipe, com a mão cadavérica, assina a muito custo. Antes de se retirar, diz-lhe que um homem de meia idade, português, ronda há dias o Escurial e pretende ser recebido. O rei não tem visitas mas insiste em receber a estranha personagem. 

Entretanto, passa em revista a sua vida, o sogro (D. João III «um perfeito imbecil coroado, um papa-açorda que apenas se achava bem sentado na cadeira a ouvir as loas dos bobos. Devoto, sim, mas com as rezas atufadas com feijão e orelha de cerdo.» p. 248), o sobrinho (D. Sebastião «O meu neto não pensara noutra coisa senão em meter lança em África. Abençoada loucura que lhe valera a ele, já senhor de tantas terras, a herança do reino vizinho, como parente varão mais chegado. Vinha escrito de longa data. » pp. 248-9), as Américas, os Países Baixos, a Sicília, o Norte de África, Lisboa, de que gostaria de ter feito a capital dos seus reinos. 

Cristóvão de Moura, de mansinho, introduz o estrangeiro. O rei pergunta-lhe: "Que pretendeis?". Este observa que o monarca já não o reconhece, pois vinte anos já são passados sobre Nossa Senhora de Guadalupe. 

«Filipe teve a impressão de que um fantasma se erguia ante ele, mas recusou-se a crer. E em voz sumida, molhada desta feita de rancor, tanto mais que o esforço que fora obrigado a fazer lhe açulara as infernais pontadas, pronunciou: - Dizei depressa ao que vindes; estão-me proibidas as visitas... Mas o intruso pespegara-se diante, fisionomia aberta como se mostrasse cédula pessoal, e hesitava dizer o que supunha estampado à flor dos olhos. E Filipe impacientou-se: - Hombre!... - Sou o sobrinho de Vossa Majestade... D. Sebastião. Posto tivesse aquele nome em mente, uma revelação daquelas aturdiu-o.» (p. 255)

Então, D. Sebastião conta ao rei a sua história: Alcácer-Quibir, Arzila, Cabo de São Vicente, Argel, o Monte Athos, o Danúbio, a Flandres, Constantinopla, a Pérsia, a Abissínia, a Terra Santa. 

E Filipe pergunta: "Que propósitos trazem Vossa Majestade?" E Sebastião responde: "Que Vossa Majestade me restitua o reino." 

«Com muito gosto - respondeu em voz serena, aquela voz lenta e medida que traduzia o império que exercia sobre si, depois de breve pausa, uma destas pausas de princípio do mundo, cheia de germinações monstruosas. - Estou nos umbrais da vida eterna e a coroa de rei cai-me da cabeça. Ah, se não fosse ousadia incomportável com a minha pequenez, sabeis com que coroa eu me queria ver coroado? A coroa de espinhos que picou a sagrada fronte de Nosso Senhor Jesus Cristo até as meninges. Vós vindes pela outra...!? - Deus o quer - murmurou D. Sebastião.» (p. 259)

Filipe manifesta então a D. Sebastião o seu arrependimento por ter pleiteado a sucessão de Portugal. Conta todas as decepções que teve. Fala do filho da Pelicana [o Prior do Crato], que fugiu depois da batalha de Alcântara e passou a vida a fugir. Que lhe quis vender os direitos ao trono. Que prestou cerviz a todos os fretes que França e Inglaterra quiseram. Que presenteou com brilhantes e gemas os mignons de Henrique IV quando o foram esperar a Mantes. [Aqui, Aquilino comete um lapso: o rei de França conhecido por estar rodeado de mignons foi Henrique III]. Filipe continua a sua narração, falando de Portugal e pesando como ourives as palavras: "- A nação está depauperada. Abateram-se sobre ela os três flagelos, peste, fome e guerra, e todas as suas fontes de energia e actividade secaram. Daí lavo as minhas mãos. Não cobrei mais um ceitil de impostos, não buli numa lei, não me sobrepus a nenhum uso estabelecido. Portugal está Portugal e Vossa Majestade há-de ter a impressão de que veio de lá ontem. Quando muito, encontrará a casa lusitana mais velha, mais triste... e arruinada. Mas tem muitos anos diante para a reerguer. E se volta mais assente, quebrado de ardores, se meteu a mão na consciência e apartou o grão do joio, bueno! Dou-lhe um conselho: deixe lá a mourisma para sempre! Foi a mourisma a causa da sua perda. Quantas vezes lhe disse: a África é um vespeiro! A expedição estava de antemão votada ao mais estrondoso insucesso. Tanto Vossa Majestade como os seus lugares-tenentes engenharam-se em montar uma empresa de derrota. Nisso não lhes faltou génio. Até Francisco Aldana errou quando lhe inculcou como melhor táctica a que consistia em opor tropas firmes, infantaria de arcabuz e cosselete, apoiada em mangas de cavalos à estardiota, à aluvião berbere de corcéis, fugazes e volteiros como o vento. Quem tinha razão eram os adaís de Tânger quando vos diziam: "Senhor, para os cavalicoques árabes não há como os nossos ginetes de Espanha; têm menos pé, mas sobeja-lhes a fúria e o ímpeto. Dez contra cem e não há que temer." Vossa Majestade era moço, deu ouvidos à novidade. Já lá vai, mas sempre lhe digo que para vencer um exército organizado em tais moldes bastavam a areia e o sol de África.» (pp. 263-4)

Filipe tem novo acesso de tosse e faz sinal para se retirarem os médicos, o confessor e os lacaios. D. Sebastião, perplexo, sai também.

A Cristóvão de Moura, que estava à sua beira, e referindo-se a D. Sebastião, Filipe diz: "Sua Majestade é meu hóspede. Não tem que dar mais um passo fora do Escurial..."

«E fitou o valido de olhos nos olhos, como só muito de raro em raro fazia, com fixidez tão imperativa que, acima da sua humanidade, se sentia erguer uma razão mais alta - aquela razão de Estado a que foram imolados o príncipe de Orange, Escovedo, o senhor de Montigny, o infante D. Carlos, dizem que a rainha Isabel de Valois e o Papa Gregório XIII, forte e cega por sua origem divina, situada para lá do bem e do mal. Recebeu Cristóvão de Moura, sem pestanejar, o mandato sinistro, limitando-se a responder: - Serão executadas as ordens de Vossa Majestade. E Filipe II, rei de Castela e de Portugal, das Duas Sicílias, soberano dos Países Baixos, de Tunes e de Orão, imperador daquém e dalém-mar, que já mandara fazer o caixão em que havia de ser enterrado, cerrou as pálpebras e, pela primeira vez há muitos dias, adormeceu placidamente.» (pp. 265-6)

* * * * *

Para chegar ao último capitulo vale a pena ler o livro inteiro!


sábado, 30 de novembro de 2024

OS FALSOS D. SEBASTIÃO

O conselheiro de embaixada Miguel D'Antas, então em serviço em França, publicou em Paris, em 1866, Les Faux D. Sébastien: études sur l'Histoire du Portugal, que viria a ser editado em português, sem data, (presumivelmente em 1985, data em que o adquiri), com o título Os Falsos D. Sebastião, com introdução e notas de Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Antes de entrarmos no livro propriamente dito, importa referir a Introdução, que se debruça sobre: I - a "Mitogenia", com a trilogia Condicionalismo Sebástico/ Raiz e Formas do Sebastianismo/Anatomia de um Mito, e II - a "História", considerando a Questão Sebástica e o Valor Historiográfico da Obra.

Na primeira subdivisão da Primeira Parte, Sales Loureiro faz uma rápida incursão no reinado de D. Sebastião. 

Na segunda, debruça-se sobre os cultores literários do Sebastianismo (tema que desenvolveremos oportunamente, a propósito de livros específicos), falando do Padre António Vieira, de Oliveira Martins, de Lúcio de Azevedo, de Afonso Lopes Vieira, de Almeida Garrett ou de Guerra Junqueira, Jaime Cortesão, António Sardinha, Teixeira de Pascoaes, Mário Beirão, Fernando Pessoa, Miguel Torga, Augusto Ferreira Gomes, Tomás Ribeiro Colaço, Metzner Leone, Aquilino Ribeiro, Carlos Malheiro Dias, Machado Pires, Queiroz Velloso, António Quadros, José Régio, Natália Correia, e tantos mais.

Já o Padre António Vieira, conduzido pelo messianismo-sebastianista, escrevera na História do Futuro que aos Impérios Assírio-Babilónico, Persa, Grego e Romano sucederia naturalmente o Quinto Império (cristão e universal) português.

E o anti-Sebastianismo não é senão a outra face do Sebastianismo, como anotou Miguel de Unamuno, marcando o contraste que nos diferencia dos espanhóis:

«Los españoles, en el fondo, creemos menos en los milagros, ni aun en los de la ciência. Y no es por escépticos; es porque aun tenemos alguna más fé en nosotros mismos. No esperamos en la vuelta de ningún Sebastián. El futuro Mesías ha de salir de un laboratório, me decia una vez Guerra Junqueiro. No es esto sebastianismo cientificista?» (Por Tierras de Portugal y España, 1930)

Na terceira, trata da existência de uma mitografia nacional. Fala das Trovas, do milagre de Ourique, do Quinto Império e da ressurgência do mito em períodos de crise. 

Na Segunda Parte, a "História", escreve primeiro sobre a Questão Sebástica e depois sobre o Valor Historiográfico da Obra.

Na Questão Sebástica, recorda a perda de possessões portuguesas no Norte de África, um certo abatimento nacional depois do período dos Descobrimentos, da esperança no nascimento de D. Sebastião e do clima que se criou depois da derrota de Alcácer-Quibir. O Desejado aparece-nos na História com a característica de um proto-Sebastianismo. O seu desaparecimento fez nascer no fundo místico do Povo a ideia do Encoberto - mito que tomou forma mais precisa quando em 1580 Portugal perdeu a independência.

Quanto ao Valor Historiográfico da Obra, Sales Loureiro refere que o trabalho de Miguel D'Antas obedeceu às melhores regras da mais avançada historiografia (pelo menos, naquela data). A obra está dividida em cinco Livros.

No Primeiro Livro é tratado o Reinado de D. Sebastião, a Expedição a África e a Morte do Rei;

O Segundo Livro debruça-se sobre a Dominação Espanhola em Portugal e os Primeiros Impostores;

Refere-se o Terceiro Livro a Gabriel de Espinosa, o Pasteleiro do Madrigal;

O Quarto Livro é sobre Marco Túlio (Veneza e Florença);

No Quinto Livro prossegue o estudo sobre Marco Túlio (Nápoles e San-Lucas de Barrameda) [Ignoro a razão porque o autor usou a grafia San-Lucas de Barrameda já que o local é designado por Sanlúcar de Barrameda].

Passamos a referir os sumários dos capítulos:

LIVRO PRIMEIRO

Capítulo I: Nascimento de D. Sebastião - Regência de Catarina de Áustria. Influência dos cortesãos sobre o carácter do jovem Rei. O Cardeal D. Henrique. Sua Regência. Qualidades e defeitos de D. Sebastião. Os seus sonhos de regeneração social, as suas ideias belicosas e os seus projectos de conquista em África. O carácter arbitrário do seu governo. Primeira expedição em África. Desembarque em Tânger. Regresso a Lisboa. Reflexão sobre um plano de invasão em África. Este projecto torna-se um ideia fixa. Estado de Portugal sob o seu reinado. Leis sumptuárias. Causas principais da decadência do país.

Capítulo II: D. Sebastião toma a resolução de fazer uma grande expedição a África. Motivo desta determinação. Estado político de Marrocos nesta época. O Xerife Mulei Mulei-Ben-Abdalá faz apelo a D. Sebastião. O rei rejeita obstinadamente todas as objecções ao seu projecto  de expedição. Dirige-se ao rei católico para obter a sua ajuda. Filipe II promete-lhe, mas com restrições. Entrevista dos dois reis em Guadalupe. Promessas sob certas condições do rei de Espanha. Ele aceita-as. Apreciação da conduta de Filipe II neste assunto.

Capítulo III: Preparativos da expedição. Pormenores da sua composição. Meios empregues para criar recursos. Entusiasmo do Xerife Mulei-Ahmed. Partida da expedição.

Capítulo IV: Chegada da frota a Tânger e Arzila. Permanência do exército em Arzila. Conselho de guerra. Decidem avançar sobre Alcácer-Quibir. Dificuldades e perigos da marcha. Chegada a Alcácer-Quibir. Razões que terão comprometido o rei a retardar o combate.

Capítulo V: Situação dos dois exércitos. A sua força numérica. Pormenores estratégicos. A luta desenrola-se Batalha de Alcácer-Quibir. Erros de D. Sebastião. Coragem inútil. Derrota do exército cristão. Morte de Mulei-Ahmed-ben-Abdalá e de Abd-el-Melek. Apreciação das perdas de cristãos e marroquinos. Versões sobre o fim do rei D. Sebastião.  

Capítulo VI: Mulei-Ahmed Mohamed é aclamado imperador de Marrocos. Pormenores que lhe são atribuídos sobre a morte de D. Sebastião, pelos prisioneiros portugueses. O cadáver do rei é levado diante do xerife e reconhecido por vários fidalgos portugueses. Apreciação do seu testemunho. O corpo do rei é enterrado em Alcácer-Quibir. Belchior d'Amaral envia ao Cardeal D. Henrique um relatório dos acontecimentos. Efeito produzido em Portugal pela notícia da derrota de Alcácer-Quibir. Começam os boatos contraditórios sobre a morte do rei. As classes populares não acreditam. Origens e causas dessa incredulidade.

LIVRO SEGUNDO

Capítulo I:  Descontentamento dos portugueses depois da anexação a Espanha. Convocação das Cortes em Tomar. Restrições alegadas pela amnistia. Papel do Embaixador de França junto de Filipe II. Aconselha Henrique III a vir em auxílio do Prior do Crato. Catarina de Bragança. Nobreza do seu carácter. Convocação das Cortes em Lisboa. Filipe II regressa a Espanha. O Cardeal-Arquiduque Alberto, Governador de Portugal. Disposição moral do povo português. A ideia que D. Sebastião podia ter sobrevivido à derrota de Alcácer-Quibir ocasionada em consequência do descontentamento da nação

[Transcrevo da página 80: «Na primeira fila de portugueses descontentes figurava o próprio Duque de Bragança. Este grande Senhor, não tinha sabido ou ousado fazer prevalecer os direitos incontestáveis que tinha à coroa de Portugal, figurava entre os aderentes de Espanha. Mas esta adesão, por importante que fosse, só teve como recompensa o cargo de condestável que o duque tinha solicitado antes, em vão, a D. Henrique e o colar do Tosão de Ouro, bem aquém das promessas que Filipe II lhe tinha feito, para obter a sua desistência da pretensão ao trono. Tratava-se, com efeito, de lhe ceder o Brasil com o título de Rei, de lhe conceder o grau perpétuo de grão mestre da Ordem de Cristo e de casar o príncipe D. Diogo com uma das suas filhas. Parecia simples que o cargo de condestável e o colar do Tosão de Ouro fossem considerados sem proporção adequada em relação ao que tinha concedido e ao que lhe haviam prometido. Se a duquesa, sua mulher, tivesse a elevação de carácter e a energia para vencer, graças às quais D. Luiza de Gusmão pôde em 1640, colocar uma coroa na cabeça do marido, certamente que o começo da dinastia de Bragança teria começado sessenta anos mais cedo.»]

Capítulo II: O impostor conhecido pelo nome de rei de Penamacor. O seu nascimento, peregrinações e estado. Entra num convento e sai para se tornar eremita. A sua influência sobre algumas pessoas devotas. Começa-se a dizer que pode ser o rei. Este boato propaga-se sobretudo nas zonas rurais. O eremita desempenha o papel do rei D. Sebastião. Funda o seu quartel general em Penamacor. Cúmplices. Meios empregues na fraude. Detenção do falso rei. É conduzido a Lisboa. O seu processo. É condenado às galés. Evade-se em França.

Capítulo III: Mateus Álvares, o impostor conhecido como rei da Ericeira. A intriga apresenta-se mais ou menos com a mesma forma que a precedente. Algumas pessoas notáveis ligam-se a ele. Em breve numerosos adeptos proclamam-no rei D. Sebastião. Enviam um corregedor para prender os culpados. Depredações e crueldades cometidas pelos grupos do impostor. Pedro Afonso. Papel deste auxiliar. Organização da casa real do falso rei. A filha de Pedro Afonso coroada rainha. Missiva ao cardeal-arquiduque Alberto. Ericeira, quartel.general dos sebastianistas. Luta armada. O impostor e um grande número dos seus partidários são presos. Trazem-no para Lisboa. O seu processo e confissão. Plano que tinha feito. Sua condenação e execução. Suplícios na Ericeira. Rigores da repressão.

 LIVRO TERCEIRO

Capítulo I: Captura de um novo impostor, devido ao acaso. Gabriel de Espinosa, pasteleiro do Madrigal. A intriga de que ele é o centro, conduzida por um frade. Papel de Frei Miguel dos Santos. Sua detenção. Uma filha de D. João de Áustria implicada nesta intriga. Primeiros interrogatórios de Gabriel de Espinosa. Frei Miguel e D. Ana de Áustria. Personalidade desta princesa. Condições em que entrou no convento. Suas cartas a Espinosa. Conflito de jurisdição. O impostor é transferido para Medina del Campo.

Capítulo II: D. Juan de Llano, juiz apostólico interroga Dona Ana. A princesa escreve ao rei Filipe II, seu tio, e a Gabriel de Espinosa. Ela recusa-se a entrar em detalhes com o juiz. Encarrega-o de levar duas cartas para o rei e Espinosa. Depoimento do médico português Mendes Pacheco. Papel de Dona Ana de Áustria nesta intriga. Evidência da sua boa-fé. Influência funesta exercida sobre ela por Frei Miguel dos Santos. Narração tradicional de uma das suas primeiras conversas com Espinosa.

Capítulo III: Informações sobre Espinosa fornecidas por um cozinheiro do Conde de Nieba. Interrogatório de Roderos, um dos servidores de Dona Ana. Interrogatório de Frei Miguel. Encarrega a princesa com o fim de o desculpar a ele próprio. Promessa de casamento feita pelo pretenso rei a Dona Ana. Novos interrogatórios de Dona Ana e Espinosa. O impostor deixa escapar algumas confissões. Suas contradições. Reserva nas respostas, no que diz respeito à filha de D. João de Áustria. Carta anónima endereçada ao alcaide D. Rodrigo de Santillana.

Capítulo IV: Práticas de tortura em Espinosa e Frei Miguel. Espinosa é explícito nas confissões, excepto no que toca à identidade da sua pessoa. As confissões do padre comprometem várias pessoas estranhas ao grupo. Pretende estar combinado com o Prior do Crato. Opinião do Conde de Portalegre sobre o assunto. A amante de Espinosa é interrogada. Suas confissões. Boatos espalhados entre o povo a respeito do impostor. Prisão de dois indivíduos em Olmedo, suspeitos de serem cúmplices no assunto do Madrigal. Relações de um deles com António Peres. Pormenores.

Capítulo V: Conduta do juiz apostólico no convento de Madrigal. Ameaças de excomunhão. Carta de d. Ana ao rei. Queixas das religiosas. Carta do vigário do convento a D. Cristóvão de Moura. Significado do acto de acusação contra D. Ana. A princesa apresenta a sua defesa numa carta que escreve ao Rei. Detenção de um português portador de cartas de um pretenso filho de D. João de Áustria. Textos destas cartas. Falta de documentação para descobrir a identidade do autor.

Capítulo VI: Condenação de Dona Ana e de duas religiosas, suas confidentes. Ela pede clemência a seu tio. As suas cartas ao rei e à rainha. Filipe II mostra-se inflexível. Dona Ana é transferida para um mosteiro em Ávila. Condenação à morte de Espinosa. Sua atitude assim que tomou conhecimento da sentença. Sua execução. Considerações sobre o papel e identidade deste impostor. Continuação da instrução contra Frei Miguel. Retratação das suas precedentes confissões. Confrontação com dois portugueses presos em seguimento de declarações anteriores. Desgraduação e execução de Frei Miguel. Apreciações históricas.

LIVRO QUARTO

Capítulo I: Morte de D. António, Prior do Crato. Os emigrados portugueses em França. Pensam reunir-se ao governo espanhol. D. João de Castro. Os seus escritos a propósito da existência do rei D. Sebastião. Navio enviado para a Costa da Mina à procura do rei. Senhor de Chattes, governador de Dieppe. Suas relações com os emigrados portugueses. A paz concluída entre França e Espanha desencoraja a emigração portuguesa. Escrevem de Veneza que tinha aí chegado um indivíduo que se dizia ser o rei D. Sebastião. Os portugueses em Veneza. D. João de Castro faz eco da estranha notícia.

Capítulo II: Detalhes sobre a aparição existência do pretenso rei D. Sebastião em Veneza. O embaixador de Espanha lamenta os seus enredos. O pretenso rei é levado para a prisão, por ordem da Senhoria. As suas aventuras contadas por D. João de Castro. Dão a entender que estava em Paris. História a este propósito. Não fala português. Como se procura explicar esta circunstância.

Capítulo III: A Senhoria manda instruir o processo do aventureiro. Frei Crisóstomo, um dos confidentes. Despachos do Embaixador de França. Frei Estêvão chega a Veneza. Não lhe permitem ver o prisioneiro. Põe-se em ligação com o senhor Marco Quirini que o aconselha a dirigir-se a Portugal para procurar indícios que permitam conhecer a identidade do prisioneiro. Frei Estêvão volta a Veneza, acompanhado do cónego Rodrigues da Costa e relata a sinalética de D. Sebastião. Procuram em vão que a Senhoria se decida a examinar o pretenso rei. D. João de Castro chega a Veneza. 

Capítulo IV: A Senhoria de Veneza diz aos protectores do prisioneiro para arranjarem cartas de recomendação. O cónego Rodrigues da Costa e Frei Crisóstomo partem para Roma. Carta de um capuchinho português a Filipe III. Desentendimento entre D. João de Castro e Frei Estêvão. Cartas endereçadas por eles ao Padre José Teixeira. O emigrado português Diogo Botelho. Cartas de Henrique IV ao seu embaixador em Veneza, sobre o assunto do pretenso rei D. Sebastião. Rodrigo Marques e Diogo Manoel chegam a Veneza. Sebastião Figueira, portador das cartas dos Estados Gerais da Holanda, também aí chega. Carta endereçada pelo prisioneiro a Frei Estêvão e Frei Crisóstomo.

Capítulo V: Opiniões nos conselhos da Senhoria sobre o que se fazia do prisioneiro. O embaixador de Espanha insiste para que se tome uma resolução. Despachos do embaixador a Filipe III. Uma carta e versos do pretenso rei. Nuno da Costa, um dos seus partidários. Chegada a Veneza de D. Cristóvão , filho de D. António e de outros Portugueses. D. Cristóvão obtém uma audiência do doge. O prisioneiro recebe ordem de deixar os Estados da República. Sua entrevista com os Portugueses que se encontram em Veneza. Verificação insuficiente da sinalética e identidade do pretenso rei. Cartas que esclarecem este ponto. Detalhes sobre a entrevista com os Portugueses. Frei Estêvão e Frei Crisóstomo conduzem o pretenso rei ao convento onde estavam alojados. Decidem que ele irá na dianteira, na direcção de Florença e embarcará em Livorno para ir até França. Deixa Veneza acompanhado de Frei Crisóstomo. Descontentamento de d. João de Castro. Os Portugueses põem-se a caminho de Florença.

Capítulo VI: O pretenso rei e Frei Crisóstomo passaram por Pádua e chegam a Florença. São presos. Carta do embaixador de Espanha dando conta desta detenção. Medidas que tinha tomado para este efeito. Desapontamento dos Portugueses á sua chegada a Florença. Frei Crisóstomo é libertado. Intercedem junto do Grão-Duque em favor do prisioneiro. Insucesso das diligências. Separam-se. D. João de Castro volta a Paris. Os seus escritos e os do Padre Teixeira. Nuno da Costa abandona a causa do falso rei. Carta do embaixador de Espanha a este respeito. O Grão-Duque da Toscana envia o impostor para as autoridades espanholas de Orbitello. Conduzem-no a Nápoles, onde fica preso numa fortaleza. os venezianos parecem não aprovar o procedimento do Grão-Duque. Proposta atribuída a Henrique IV.

LIVRO QUINTO

Capítulo I: O vice-rei de Nápoles interroga o prisioneiro que sustenta ser o rei D. Sebastião. Confrontações. O impostor é forçado a confessar que é calabrês e que o seu verdadeiro nome é Marco Túlio Catazione. Meios que utilizou para mudar de identidade. Suposto envio de um mensageiro a Espanha e a Portugal. Cartas endereçadas por Marco Túlio sob o nome de D. Sebastião. Os partidários do impostor procuram demonstrar que o homem que tinha sido detido primeiro em Veneza e depois em Nápoles é o rei D. Sebastião e que Marco Túlio é o nome do mensageiro que foi enviado a Espanha e a Portugal. D. João de Castro relata à sua maneira o que se passou em Nápoles. Contradições na sua narrativa. Os partidários do impostor procuram encontrar meios para ele se evadir. Marco Túlio é julgado e condenado às galés perpetuamente. É posto a bordo. A frota de Nápoles parte para Espanha.

Capítulo II: Frei Estêvão continua a interessar-se pelo rei. Junta-se a Frei Boaventura de Santo António. Quem era este novo auxiliar. As suas diligências e dissabores. Frei Estêvão vem a Lisboa. Suas intrigas em Portugal. Vem a Sevilha e vai ver Marco Túlio a bordo da galera, que se encontrava no Porto de Santa Maria. Trata o impostor de rei. A sua correspondência com ele. Espécie de manifesto político formulado por este frade. Pensa num projecto de evasão. Carta curiosa a propósito de um chapéu pedido por Marco Túlio. Frei Estêvão pede ao falso rei para dar indicações precisas tendentes a acreditá-lo. Carta do cónego Tavares que se queixa de não receber as indicações pedidas. Frei Estêvão queixa-se a D. João de Castro. Compromete o pretenso rei a conceder diversos favores, quando da sua reabilitação.

Capítulo III: Frei Boaventura foge de um convento onde estava encarcerado e vem a Lisboa. Ocupa-se aí de assuntos do pretenso rei. Parte para Espanha e vai ver Marco Túlio a bordo da galera. Encarrega-se de levar para Portugal as cartas endereçadas pelo impostor a diversas personagens. Um frade capuchinho genovês que tinha ido ver Marco Túlio, encarrega-se de entregar uma carta deste à duquesa de Medina Sidónia. O capuchinho é preso. Visitam a galera e apoderam-se da correspondência de Marco Túlio. Este é encarcerado na prisão de San-Lucas de Barrameda [Como observei anteriormente o nome correcto é Sanlúcar]. Detenção de Frei Estêvão e outros cúmplices. Frei Boaventura chega a Portugal. É preso em Viana. Satisfação de Filipe III ao saber da prisão dos dois prelados. Cartas do rei a D. Cristóvão de Moura e ao duque de Medina Sidónia. Frei Boaventura chega como prisioneiro a San-Lucas. Começa o processo. O juiz laico e o juiz apostólico. Interrogatório de Marco Túlio. Sustenta que é o rei D. Sebastião e protesta contra as decisões do processo de Nápoles. Memorandum apresentado pelo impostor.

Capítulo IV: O processo dos dois prelados. Confissões de Frei Estêvão que protesta da sua boa-fé. Confrontação de Marco Túlio com um retrato de D. Sebastião. Hesitações de Frei Estêvão. Detalhes sobre os meios empregues por ele para favorecer a causa do impostor. Escreve um memorial a que chama a sua declaração testamentária. Confissões de Frei Boaventura e de outros cúmplices. Cristóvão de Moura não consegue apoderar-se dos principais partidários do impostor de Portugal. Cartas do vice-rei a Filipe III e ao Secretário de Estado D. Pedro Franquesa. Marco Túlio é torturado. Faz revelações que confirmam as confissões feitas precedentemente em Nápoles. Considerações sobre o carácter de Marco Túlio e obre a maneira como desempenhou o seu papel. 

Capítulo V: Carta de Cristóvão de Moura sobre a detenção dos indivíduos que em Portugal favoreciam o falso rei. O conselho da inquisição recomenda à benevolência de Filipe III o Português Nuno da Costa, antigo adepto de Marco Túlio, que se encontrava ainda exilado e implorava o perdão do rei católico. Razões pelas quais o conselho da inquisição apoia esta petição. Duas novas detenções. Manuel da Silva e Sousa e o sapateiro Pedro Dias Xardo. Manuel da Silva é reconhecido inocente e libertado. Entusiasmo excêntrico de Pedro Dias por Marco Túlio. Frei Estêvão é torturado. Confirma as suas precedentes declarações. Cerimónia da desgraduação dos dois frades. O juiz apostólico tenta obter ainda de Frei Estêvão algumas confissões. Faz declarações de natureza a comprometer Cristóvão de Moura. Apreciação do alcance destas declarações. Frei Boaventura. Carácter das suas revelações.

Capítulo VI: As sentenças pronunciadas contra Marco Túlio e seus cúmplices são confirmadas por Filipe III com algumas modificações. O impostor, Frei Estêvão, Frei Boaventura, um tintureiro português e três forçados são condenados à morte. As sentenças são dadas a conhecer a Marco Túlio e aos dois frades. Detalhes desta notificação. Censuras dirigidas por Frei Estêvão a Marco Túlio. Execução do impostor, do tintureiro e dos dois forçados. As outras condenações. Circunstâncias em que se produziu esta intriga. Considerações. Narrativas dos emigrados portugueses. Em que época teve lugar a execução dos dois frades. A sorte dos outros indivíduos que foram cúmplices de Marco Túlio. D. João de Castro, Padre Teixeira, Frei Crisóstomo, o cónego António Tavares. Conclusão.

Optei por transcrever com exactidão os sumários mencionados pelo autor antes de cada capítulo de preferência a tecer considerações sobre o texto pois eles são suficientemente significativos.

Apraz registar o pormenor com que Miguel D'Antas analisa os processos movidos contra os impostores. 

Esta obra é o resultado de apuradas pesquisas nos arquivos existentes, com especial destaque para o Arquivo Geral de Simancas.