quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

O FANTASMA

Revi hoje o filme O Fantasma, de João Pedro Rodrigues (2000), que vi pela primeira vez, creio, num dos cinemas do Saldanha Residence, que possivelmente já não existe. 

Trata-se de uma película curiosa e inovadora, que tem como argumento as obsessões sexuais de um jovem cantoneiro (julgo que se chama assim) da recolha do lixo nos camiões da Câmara Municipal de Lisboa, e que acaba por se apaixonar por um rapaz morador numa rua do trajecto habitual da rotina nocturna. É claro que o filme trata também da solidão, da angústia, do fetichismo, das relações de poder, e seria diminui-lo se o reduzíssemos a umas meras aventuras de sexo.

Sendo um filme de argumento abertamente homossexual, o primeiro que me lembre a ser feito em Portugal, e porque o realizador não pretendia actores profissionais, foi finalmente escolhido para o papel de protagonista (Sérgio), o jovem Ricardo Meneses que, quando João Pedro Rodrigues o descobriu num bar gay de Lisboa, tinha apenas 17 anos. Assim, e por causa dos "costumes" actualmente vigentes, a rodagem foi adiada por alguns meses até o Ricardo ter completado os 18 anos. O filme não contém cenas propriamente "chocantes", sendo a única que pode incomodar alguns espectadores mais sensíveis e menos acostumados aos costumes (outros, neste caso) um take num urinol público (coisa que hoje já não existe), em que um homem se ajoelha e realiza fellatio ao jovem Ricardo, aliás, à personagem Sérgio.

Ricardo Meneses

Refira-se que O Fantasma foi apresentado em diversos festivais internacionais e recebeu várias nomeações em Veneza, Salónica, Nova Iorque, Karlovy Vary, Gant, Bergen, Rejkjavik, Joanesburgo, etc.

A propósito de O Fantasma, e das fantasias que certas profissões suscitam nos próprios profissionais e nos outros, recordo um episódio que me foi contado por um velho amigo (velho em ambos os sentidos, porque era razoavelmente mais velho do que eu e porque éramos amigos há longo tempo), ocorrido vários anos antes da realização do filme (talvez nos anos 80/90), mas que tem com este uma relação directa. Não tenho o hábito de relatar histórias pessoais, mas não resisto a narrar este episódio que JBV (que foi o empresário de Amália Rodrigues), então me contou, com o seu aguçado sentido de humor.

Numa noite de Verão, JS (filho de um conhecido maestro português, há muito falecido e do qual possuo orgulhosamente a batuta de regência), também meu amigo (esse talvez da minha idade, mas que não vejo há décadas) - seguia no seu automóvel por uma rua estreita de Lisboa, quando se lhe deparou à frente, a certa altura, um camião de recolha do lixo que não podia, obviamente ultrapassar. Neste sucessivo pára/arranca, acabou por meter conversa com um dos rapazes que procedia ao despejo dos contentores para o interior do camião. Parece que o rapaz era bem parecido e JS marcou um encontro com ele para o fim da operação de recolha, lá para as três da madrugada, em sítio que ignoro, certamente no término do percurso. Levou-o depois a casa e o entendimento foi tão perfeito que logo combinou novo encontro para um dia em que o jovem cantoneiro estivesse de folga. Assim aconteceu, tendo-se este então apresentado lavado e bem vestido, não envergando já a farda fosforescente de serviço. A relação voltou a correr bem mas JS achou que se havia perdido algo do fascínio do primeiro encontro, ou pela ausência da farda ou mesmo porque os odores do lixo doméstico haviam desaparecido do corpo do jovem, agora limpo e perfumado.

Contando JS o ocorrido a JBV, com quem tinha uma relação de confiança, este retorquiu-lhe sarcástico: «Lavaste, estragaste!», tal como Eça numa carta para Camilo.

Não imagina a Câmara Municipal de Lisboa, e possivelmente todas as outras, os encontros proporcionados pela recolha do lixo!


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