segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

SALÓ

Revi esta tarde em minha casa, na companhia de um amigo, "Saló ou os 120 Dias de Sodoma", de Pier Paolo Pasolini, (1975), apresentado ao público já depois do realizador ter sido assassinado em Óstia, curiosamente uma das dioceses suburbicárias de Roma, de que é tradicionalmente bispo o cardeal-decano do Sacro Colégio.

Este filme é de alguma forma o testamento cinematográfico de Pasolini, cuja obra seria simbolicamente encerrada com o seu homicídio (em circunstâncias ainda hoje não esclarecidas), uma vez que ao longo dos seus filmes tivera a oportunidade de amplamente discorrer sobre os vícios e as virtudes dos homens.

Baseado no romance "Os 120 dias de Sodoma", do Marquês de Sade, e situada a acção na efémera República de Saló (no norte de Itália), o derradeiro feudo de Mussolini, depois da sua destituição de chefe do Governo italiano, no fim da Segunda Guerra Mundial, o filme convoca para a tela a perversão absoluta do ser humano. Por maiores que sejam as violências já apresentadas no cinema e por mais cruéis que sejam os actos descritos em filmes, nada se fizera antes comparável a "Saló", e nada se faria depois.
 

Como na obra do Marquês de Sade, o filme está dividido em quatro partes, que, a exemplo da "Divina Comédia", de Dante, têm o nome de círculos: o "Antinferno" (Vestíbulo do Inferno); o "Girone delle manie" (Círculo das paixões); o "Girone della merda" (Círculo da merda) e o "Girone del sangue" (Círculo do sangue).

Ao longo do filme há referências à "Genealogia da Moral", de Nietzsche, aos "Cantos", de Ezra Pound, a "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust e a diversos textos de Roland Barthes, Maurice Blanchot e Pierre Klossowski.

Resumindo: quatro homens de poder, decididamente libertinos, reúnem numa casa 18 belos adolescentes de ambos os sexos, que são submetidos a cenas de depravação, práticas sexuais aberrantes, humilhação, tortura e finalmente morte. Dispenso-me dos pormenores que não cabem neste texto e que só poderiam fornecer uma pálida imagem do que se vê no filme.

"Saló ou os 120 dias de Sodoma" é um filme que expressa uma situação limite da sociedade contemporânea. Mais do que um filme sobre sexo, crueldade, alucinação, sadismo é um filme eminentemente político, como, de resto, todos os filmes de Pasolini. Porque se atingiu um extremo, a película foi interditada em Itália, depois autorizada, novamente proibida para voltar a ser permitida bastante mais tarde. E foi na altura interditada também em numerosos países. Em Portugal foi apresentada nos cinemas em finais dos anos 70 do século passado. Vi-a então mais do que uma vez e constatei que havia sempre numerosos espectadores que se retiravam da sala antes do fim da exibição.

"Saló" é um filme que nos obriga a uma profunda reflexão sobre os mecanismos do poder e que constitui um marco indelével na história do cinema.


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