Naturalmente, sou contra a guerra na Ucrânia. Como fui contra as guerras que a precederam, na Jugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria. Tive ocasião de exprimir publicamente a minha opinião nessas ocasiões.
Surpreende-me, contudo, o coro de virgens ofendidas que agora rasgam as vestes com a presente ofensiva militar quando não tiveram uma palavra a dizer aquando dos anteriores actos de agressão, que foram perpetrados pelos Estados Unidos e pela NATO contra aqueles países. Certamente que houve excepções, mas não se ouviu o ruído que ecoa neste momento nas televisões, nos jornais, nas redes sociais. Que me recorde, a única manifestação significativa a que assisti foi a realizada por ocasião da invasão anglo-americana do Iraque, e essa foi encabeçada por Mário Soares. E não esqueço a defesa acérrima que o jornalista José Manuel Fernandes, então no PÚBLICO, fez do ataque anglo-americano ao Iraque, proclamando que o caminho para Jerusalém, no sentido de um entendimento entre israelitas e palestinianos, passava por Baghdad. Ainda estamos à espera.
Mas regressemos à situação no terreno. Sabemos todos que o objectivo de Vladimir Putin é o derrube do actual governo ucraniano, que ele considera hostil a Moscovo, e que uma adesão da Ucrânia à NATO seria uma ameaça para a Rússia. Este pensamento é dominante no Kremlin desde o desmoronamento da União Soviética e foi por causa dele que foram então solicitadas garantias aos Estados Unidos de que os antigos países da zona de influência soviética (post-Yalta) ou as repúblicas da ex-URSS nunca seriam admitidas na NATO. Garantias solicitadas por Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin a Bill Clinton que foram prestadas mas não cumpridas, como escrevi há dois dias.
Na prossecução do seu objectivo, e tendo concentrado milhares de soldados na fronteira com a Ucrânia, Putin reconheceu a independência das repúblicas de Luhansk e de Donetsk, já autoproclamadas em 2014, acedendo ao pedido dos seus líderes para envio de tropas para defesa daquelas regiões. Não estou obviamente na cabeça de Vladimir Putin (possivelmente ninguém está) mas tenho previsto o desenrolar das operações levadas a cabo pela Federação Russa. Sendo o presidente russo considerado um hábil estratega, não admiti como possível um bombardeamento da Ucrânia, parecendo-me lógico que Moscovo limitasse as acções militares ao Donbass e procurasse por outros meios a substituição governamental que deseja e julga indispensável à segurança do seu país. Assim, assegurei há dias aos meus amigos ucranianos que não haveria bombardeamentos no território extra-Donbass. Confesso que me enganei. Ou alguma coisa terá obrigado Putin a rever os seus planos.
Escrevi anteontem, já depois do início dos bombardeamentos, que considerava um erro grave qualquer tipo de ocupação militar da Ucrânia, e que esperava que não se ultrapassasse o limite de alguns ataques cirúrgicos a alvos exclusivamente militares. Segundo as notícias a que vamos tendo acesso, afigura-se que existe a vontade de um controlo global do país.
A guerra na Ucrânia, como todas as guerras, é uma tragédia. Pela perda de vidas de militares (de ambos os lados), pela perda de vida de civis (que sempre ocorre, mesmo que se trate dos chamados danos colaterais), pelas destruições materiais, pelo êxodo das populações, enfim, por todas as consequências de um conflito bélico. Mas neste caso (como já sucedeu noutros) há a acrescentar os prejuízos de ordem moral decorrente de ucranianos e russos estarem desde há séculos ligados por laços familiares e de amizade, de convivência habitual, só esporadicamente perturbada nos últimos tempos por forças exógenas que terão eventualmente contribuído para se chegar à situação actual. E há igualmente os inevitáveis danos políticos para o regime russo (não me refiro ao povo russo), para não falar nas sanções económicas que, como sempre, afectarão especialmente os mais vulneráveis.
Dado que as vias diplomáticas nunca se extinguem, mesmo em tempos de guerra, impõe-se a procura rápida de uma solução que conduza a um cessar-fogo e ao estabelecimento de negociações com vista a restabelecer a paz. Sob pena de um agravamento da situação a níveis de consequências imprevisíveis, já que o governo de Kiev decretou a mobilização geral dos cidadãos. Não sei quais os actores políticos capazes de uma intervenção nesse sentido, mas é nestes momentos que surgem às vezes figuras de autoridade indiscutível e cuja palavra é escutada.
Convinha, também, que o Ocidente não lançasse achas para a fogueira, como lhe é peculiar, e de que é exemplo recentíssimo o convite à Suécia e à Finlândia, vizinha da Rússia, para participarem numa reunião da NATO, da qual não fazem parte. Sendo a NATO o pomo de discórdia que originou esta guerra, este convite só poderá ser interpretado por Moscovo como uma provocação.
Para concluir, porque já me alonguei, direi tão só que esta guerra, especialmente se for duradoura, provocará estragos económicos e sociais muito graves em toda a Europa (onde nos situamos) e que se o Ocidente ultrapassar o que o Kremlin considera as suas linhas vermelhas Putin não hesitará em carregar no botão nuclear. Então, as consequências seriam inimagináveis!
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