segunda-feira, 7 de março de 2022

EL-REI DOM SEBASTIÃO

Passando há dias pela FNAC-Chiado, que em tempos frequentei quase diariamente mas que agora visito com longos intervalos, reparei no livro O Regresso de D. Sebastião, do historiador Abdul Rahman Azzam, cuja publicação, em fins do ano anterior, me passara despercebida.

Trata-se da tradução de The Return of Sebastian (2021), e presumo que o seu autor seja neto de um diplomata egípcio, homónimo, que foi o primeiro secretário geral da Liga Árabe (1945-1952).

Trata-se de um novo livro sobre um dos mais famosos "falsos" D. Sebastião (houve vários) que durante alguns anos pretendeu ser o monarca desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir.

O livro, muito bem escrito e também correctamente traduzido (João Cardoso), debruça-se sobre a figura do calabrês Marco Túlio Catizone, que apareceu em Veneza em 1598 (vinte anos depois da infausta batalha), fazendo-se passar pelo rei de Portugal. Optou o autor por apresentar, em capítulos alternados, a vida de D. Sebastião e a aventura do calabrês, desde que este surgiu na Sereníssima República até à sua execução em  Sanlúcar de Barrameda, por ordem de Filipe III (II de Portugal).

É extraordinário o percurso de Catizone, que após uma curta permanência em Roma e depois de dois anos de prisão nas celas de Veneza, passou por Florença (avistando-se com o Grão-Duque Fernando de Medici) e por Nápoles (onde se encontrou algumas vezes com o Vice-Rei, Fernando Ruiz de Castro, Conde de Lemos), até ser definitivamente detido em Espanha e por fim enforcado, em 23 de Setembro de 1603.

Das investigações levadas a cabo ao longo de cinco anos, dos numerosos interrogatórios, da identificação dos cúmplices, concluiu-se que o pretenso D. Sebastião fora instrumentalizado por um grupo de indivíduos sinceramente anti-castelhanos que pretendia manter acesa a chama de um regresso do rei, que muita gente não acreditara que tivesse perecido em Alcácer-Quibir. Vários indivíduos se movimentaram por toda a Europa, procurando apoios para essa causa, nomeadamente nos países que eram hostis a Espanha, distinguindo-se o frade dominicano Estêvão de Sampaio. Essa campanha incentivou-se com a morte de Filipe II, em 1598, data em que Catizone começa a proclamar em Veneza ser o verdadeiro D. Sebastião.

Desde então, o "Sebastianismo" tornou-se uma crença em Portugal e sobre o Rei Oculto se têm publicado numerosos livros, especialmente nas últimas décadas. Mesmo Fernando Pessoa não escapou a essa tentação, exaltando a grandeza do monarca e a sua loucura, sem a qual o homem mais não é do que «cadáver adiado que procria».

O livro, muito bem articulado, é rico em pormenores, demonstrando o autor profundo conhecimento da matéria e também da história de Portugal, da sua literatura, e da história universal. Houve uma cuidadosa consulta dos arquivos, em especial do Archivo General de Simancas e de obras coevas dos factos mencionados. 

Sendo uma obra histórica, ela incorpora certamente elementos ficcionados pelo autor na interpretação dos acontecimentos e na descrição do comportamento das personagens. Nem poderia ser de outra forma. Tudo me pareceu rigoroso, comprovando a vasta cultura geral de Azzam, tendo detectado, que me lembre, apenas um erro, cometido na página 128 e reincidido na página 152: a infanta D. Isabel, filha de D. Manuel I, não foi mulher de Filipe II, mas mãe; ela foi a mulher de Carlos Quinto. A princesa portuguesa que foi mulher de Filipe II (enquanto este era ainda príncipe) foi a infanta D. Maria Manuela, filha de D. João III. Também me pareceu confusa a descendência de Cosme II de Medici, grão-duque da Toscana, mas não averiguei. Há ainda uma referência a uma irmã adoptiva (?) de D. Sebastião, D. Filipa, de quem nunca ouvi falar.

O rei D. Sebastião foi sepultado quatro vezes. A primeira vez, em Alcácer-Quibir, em 7 de Agosto de 1578; a segunda vez, em Ceuta, quando o corpo foi trasladado; a terceira vez, no Mosteiro dos Jerónimos, em cerimónia magnífica, por ordem de Filipe II (e para convencer a população de que o rei estava realmente morto); a quarta vez, em 1682, no reinado de D. Afonso VI, sendo regente seu irmão, o futuro D. Pedro II, também nos Jerónimos, onde foi construído um enorme túmulo com a seguinte inscrição: «Conditvr hoc tvmvlo si vera est fama Sebastus qvem tvlit in Libicis mors properata plagis nec dicas falli Regen qvi vivere credit pro lege extinto mors qvasi vita fvit».

Curiosamente, o livro abre com o episódio da destruição da estátua de D. Sebastião, que existia à entrada da Estação do Rossio, e que foi derrubada em 2016 por um idiota português de 24 anos (cujo nome não foi divulgado pelas autoridades) que subiu ao nicho para tirar uma selfie com o rei. A estátua ficou desfeita, mas felizmente havia um exemplar idêntico que recentemente foi colocado no local, em substituição da peça destruída. Por coincidência, D. Sebastião morreu com 24 anos. Não consta que o idiota tenha morrido!

 

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