segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

A FORTALEZA DE SÃO JOÃO BAPTISTA DE AJUDÁ

Quando frequentava a instrução primária, ainda figurava entre as possessões coloniais portuguesas em África a Fortaleza de São João Baptista de Ajudá, na dependência de São Tomé e Príncipe.

O Reino do Daomé, onde se encontrava aquela fortificação, foi convertido em colónia francesa em 1892, tendo-se então mantido a presença militar portuguesa que remontava ao século XVII.  Essa presença subsistiu, até que, em 1911, o Governo de Portugal mandou retirar a guarnição militar, substituindo-a por funcionários coloniais.

Em 1960, o Daomé proclamou a independência, passando a designar-se República do Benim e, no ano seguinte, as suas tropas invadiram Uidá (o nome indígena de Ajudá), intimando os portugueses a abandonarem aquela praça fortificada, determinação que o Governo de Salazar acatou, ordenando, contudo aos últimos ocupantes que incendiassem o local antes de se retirarem. A anexação pelo Benim foi reconhecida oficialmente por Portugal em 1985.

O Governo do Daomé decidiu o encerramento simbólico do Forte em 1965, decretando que nele se instalaria o Museu de História de Uidá, sendo os trabalhos de recuperação e restauro levados a cabo em 1987 com a participação da Fundação Calouste Gulbenkian.

Vem isto a propósito do livro de Bruce Chatwin (1940-1989), The Viceroy of Ouidah (1980), editado em português com o título O Vice-Rei de Ajudá, em 1990.

Foi Bruce Chatwin uma figura curiosa. Após os seus primeiros estudos, empregou-se como porteiro na Leiloeira Sotheby's, onde a sua acuidade visual e talvez outros méritos, o fizeram ascender rapidamente à direcção daquela prestigiada empresa. Alguns problemas de visão obrigaram-no a um período de repouso, após o qual iniciou um largo período de viagens, por sítios menos conhecidos como o Sudão, a China, a Patagónia e diversos países africanos. É então que se lança na escrita, tornando-se um bem sucedido escritor de viagens.

A sua morte prematura foi consequência de infecção por HIV, situação que ele sempre escondeu, justificando a sua doença como efeito da mordidela de um morcego chinês (já nesta altura os morcegos chineses eram suspeitos!). Mas eram conhecidas as suas aventuras homossexuais e atribui-se o contágio ao seu relacionamento com Sam Wagstaff, o amante do celebre fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe, ou aos contactos íntimos com os negros do Daomé. Foi um dos primeiros britânicos famosos a  morrer de Sida.

Curiosamente, Bruce Chatwin, que possuía um alargado leque de conhecimentos, nunca misturava os amigos, que dividia em três círculos: os amigos da sua esfera homossexual, os amigos dos meios artísticos e literários e os amigos da sua vida social alheios às relações anteriores. É claro que alguns partilhavam as três características, mas, no geral, estes compartimentos eram relativamente estanques.

Neste seu livro, por entre variadas peripécias, é descrita a história do brasileiro Francisco Manoel da Silva, que se tornou vice-rei de Ajudá e introduziu importantes reformas no Daomé. Chatwin descreve a ida para o Daomé do primeiro antepassado e depois a descendência, as querelas familiares, as relações com o Poder e a suposta crueldade da população indígena, possuidora de costumes violentos e sanguinários. Pelo meio, Chatwin confunde o nome das personagens, mas isso não é importante para a imagem que nos pretende transmitir de uma sociedade dedicada ao tráfico de escravos, de que Ajudá era o entreposto mais famoso e o garante de um comércio que permitia ao soberano arrecadar volumosas receitas. Também é interessante a obsessão de Chatwin com caveiras. As estórias paralelas e cruzadas com que o autor nos brinda não ajudam à compreensão do texto, que se torna confuso, mas essa não seria uma das suas preocupações.

Pelo meio, alude-se discretamente a relações mais ou menos íntimas entre adultos, designadamente um padre, e rapazinhos daomeanos, referência a que Chatwin não poderia furtar-se. Também é curiosa a enfatização de um exército de mulheres ferozes, as terríveis amazonas.

Assim decorre, entre a descrição minuciosa da paisagem natural do Daomé, as suas crenças animistas,  uma proverbial crueldade, episódios de feitiçaria, sacrifícios humanos, epidemias, e muitas outras coisas, este romance de Bruce Chatwin. De salientar a evocação da numerosa prole de D. Francisco, que terá deixado sessenta e três filhos e um incontável número de filhas, entre o mulato e o negro, espalhados hoje pelos quatro cantos do mundo.

Sem comentários: