quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

L'HOMOSEXUALITÉ AU SÉNÉGAL

POUR MES AMIS SÉNÉGALAIS, qui peuvent traduire automatiquement, malgré quelques imprécisions.

No texto que publiquei, em post anterior, sobre o livro La plus secrète mémoire des hommes, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr, que obteve este ano o Prémio Goncourt, referi que o seu livro anterior, De purs hommes, tratando da questão da homossexualidade no Senegal, motivara um certo mal-estar no país. Muitas personalidades e instituições que o haviam felicitado pelo Prémio ao darem-se conta do tema do seu livro anterior, que não tinham lido, retiraram as mensagens de felicitações. Isto revela o estado de espírito actualmente reinante, numa terra que, embora muçulmana, nunca fora severamente religiosa em questões de sexualidade.

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Resume-se assim a história de Des purs hommes:

Ndéné Gueye, jovem professor de literatura francesa numa universidade senegalesa (tendo estudado em França), é surpreendido pela divulgação de um vídeo mostrando o desenterramento do cadáver de um homem, um góor-jigéen (homem-mulher, homossexual em wolof), que não poderia estar sepultado num cemitério muçulmano, o que significava uma verdadeira profanação.

O caso é amplamente comentado no país, ao mesmo tempo que Gueye é interpelado pelos seus alunos que o acusam de ter dado uma lição sobre Verlaine (que eles sabem ter mantido uma relação com Rimbaud), poeta que fazia parte de uma lista entretanto emitida pelo ministério senegalês, aconselhando fortemente os professores a evitar "l'étude d'écrivains dont l'homosexualité était averée ou même soupçonée" (p. 43). Sustentavam também os alunos que o ensino desses escritores fazia parte da grande propaganda europeia para introduzir a homossexualidade no Senegal [como se ela lá não existisse!].

Resolve, pois, Gueye, que se considera heterossexual, investigar sobre a homossexualidade presente e passada no Senegal e, em especial, sobre o caso do homem desenterrado no cemitério, no que é ajudado por uma senagalesa-americana (bissexual), Angela, que mantém uma relação com outra senegalesa (Rama) que também é amante de Gueye.

Consegue assim descobrir a miserável  casa do morto, onde só habita a mãe deste, de quem ouve uma impressionante história. 

Conta a mãe: o filho era um rapaz novo, um filho exemplar que a mãe educara com muitos sacrifícios e que acabaria a universidade esse ano. O pai morrera quando ele tinha três anos. Para ajudar ao sustento da casa dava lições particulares enquanto estudava. Subitamente ficou doente, ao mesmo tempo que circulavam rumores a seu respeito. A mãe ignorava se ele era homossexual ou não. A doença agravou-se rapidamente e não tinham dinheiro para o enviar para o hospital. Começaram a falar de sida ou de outra doença sexualmente transmissível. E morreu. Recusaram enterrá-lo. A própria mãe lavou-o ritualmente mas o cadáver, com o calor, começava a decompor-se. A mãe dormiu dois dias ao lado do morto e depois vendeu tudo o que possuía com algum (pouco) valor para pagar a dois homens que o fossem enterrar de noite num sítio discreto do cemitério. Mas houve quem descobrisse o expediente e uma multidão encarregou-se de tirar o cadáver da cova e de o colocar ao pé da casa. Foi então que a mãe, com extraordinária coragem, conseguiu abrir uma cova e sepultou de novo o filho no pátio da casa, que se tornou maldita. O rapaz chamava-se Amadou e, segundo uma fotografia que a mãe mostrou a Gueye, era muito bonito. 

A mãe agradeceu a visita de Gueye, estranhando o interesse deste pelo filho, e de uma segunda visita ofereceu-lhe um prato de laax, a comida preferida pelo rapaz. Depois disse-lhe: «Je ne sais pas pourquoi tu t'es tellement attaché à mon fils. Ou à moi. Tu cherches quelque chose. Je ne sais pas non plus si la réponse est ici. Ici, il n'y a rien. Mais j'espère que tu trouveras ce que tu cherches. J'espère sincèrement».

Mohamed Mbougar Sarr

Entretanto, Gueye foi suspenso pela universidade, já que os alunos se tinham queixado ao director da faculdade que ele ensinara (o proibido) Verlaine. Alarmado com este puritanismo religioso, Gueye encontrou-se com um colega mais velho (casado e presumivelmente heterossexual) que o estimava e interrogou-o sobre a homossexualidade no Senegal, assunto que nunca o preocupara, tendo aliás passado vários anos afastado do país, a estudar em França. O velho colega disse-lhe: «J'ai connu une époque où les homosexuels étaient différents. C'est le mot. Les homosexuels ont toujours existé au Sénégal, ceux qui disent le contraire sont soit trop jeunes, soit de mauvaise foi, peu observants de leur culture. Les homosexuels ont toujours existé parmi nous, mais ils se comportaient d'une autre manière. Rien dans leur habilement ou leur attitude n'indiquait qu'ils étaient góor-jigéen. Pourtant, tout le monde le savait et l'acceptait. À l'époque, ils ne gênaient personne parce qu'ils étaient discrets, polis, respectables. Ils avaient dans la société un rôle particulier, qu'ils remplissaient sans chercher à en rajouter, sans chercher à faire inutilement remarquer qu'ils étaient singuliers. Tout le monde le savait. Ils vivaient en général seuls, et comptaient sur l'appui de leur protectrice et sur ce qu'on leur donnait, lors des cérimonies, pour vivre. Cette discretion et l'importance de leur rôle dans le jeu social faisaient que, même si l'homosexualité était interdite dans l'islam, on ne tuait pas les homosexuels, on ne les emprisonnait pas systématiquement. Il y avait des lois, bien sûr. Des lois anti-homosexuelles, comme aujourd'hui, mais leur application était plus complexe. Ceux qui évoquent un âge d'or, où les homosexuels auraient été traqués plus durement, chassés de la société, ne savent pas de quoi ils parlent. Ce passé dont ils ont la nostalgie, je l'ai vécu. C'était le contraire de ce qu'ils veulent croire et faire croire.» (pp. 145-6)

E o velho professor prosseguiu a explicação, dizendo que hoje os homossexuais são impudicos, provocadores, casam-se... tornaram-se grosseiros. É um punhado de gente que dá uma falsa imagem do país em detrimento da maioria heterossexual, que se sente agredida moralmente, religiosamente, visualmente. Agora, no Senegal, para evitar serem mortos, os homossexuais têm de casar-se com pessoas do sexo oposto, ter filhos, trabalhar em áreas onde pouca gente poderá suspeitar deles. Há muito mais homossexuais neste país do que se pensa. «On est passés d'homosexuels socialement utiles et discrets à des pédales - pardonnez-moi l'usage du terme - qui ne sont intéressées que par leur image. Les pédés ont remplacé les góor-jigéen.» (p. 147)

E continuou: «Si les homosexuels d'aujourd'hui sont si indécents, c'est parce qu'ils sont influencés par le monde des Blancs. Là-bas, les homosexuels s'aiment et s'embrassent à la vue de tous. Ils peuvent se marier légalement. La réalité homosexuelle ets reconnue et montrée, dans des manifestations, dans des films. Et les homosexuels, ici, croient qu'ils peuvent se permettre la même chose, qu'ils peuvent réclamer des droits similaires, adopter la même attitude en public. C'est du suicide. Les Blancs donnent de l'homosexualité une image qui fait fatasmer ceux d'ici, qui veulent imiter cette image. Sauf qu'elle ne peut pas être la même ici. Du moins, pas encore. Dans leurs pays, les Occidentaux sauvent les homosexuels; ici, on les condamne. Ils ne se rendent pas compte que les pressions qu'ils exercent sur nos gouvernements pour la dépénalisation de l'homosexualité produisent l'effet inverse: une montée de l'homophobie. Ils ne comprennent pas...» (p. 149)

 E ainda: «Je sais que vous allez me parler de république, de démocratie, d'égalité... Je sais... Mais je crains que l'égalité ne soit une chimère en démocratie. Elle l'est même en Occident, où les pires inégalités subsistent, selon l'origine, la classe sociale, la richesse, la religion. La marche vers l'égalité ne peut s'effectuer à la même vitesse partout.» (p. 149)

Acontece que as visitas de Gueye a casa do desenterrado e um encontro que, por curiosidade, manteve num bar com um célebre (e tolerado) góor-jigéen (que afinal não era homossexual), célebre animador de festas em Dakar, levantaram uma onda de rumores que chegaram a casa do seu pai que ficou em choque. O pai exigiu-lhe uma retratação do que se ouvia, o que Gueye, em consciência, não podia fazer, tendo-lhe aquele imposto a saída de casa.

Resolve Gueye ausentar-se de Dakar para sossegar os ânimos e vai passar uns dias com Rama (a sua amante) a uma aldeia de pescadores. Na praia assiste à faina destes, tira fotografias, mas acaba por ficar fascinado por um jovem muito negro que o fixa ostensivamente. Não chegam a trocar palavras e Gueye começa a debater-se com o problema da sua identidade. Rama tenta auxiliá-lo mas debalde. Sabem, no regresso, que o velho (ainda assim não tão velho) professor seu colega que o recebera em casa fora encontrado em atitudes menos próprias com outro homem, dentro da universidade, tendo sido linchados. O professor sobreviveu sem um olho e em estado muito grave e o outro homem morreu. 

Gueye fica possuído por uma fúria negra contra os seus compatriotas assassinos. «J'éprouve soudain le désir de les tuer tous, sans prendre le temps d'y regarder au cas par cas, sans nuance, sans chercher à voir qui est bon, qui est méchant, qui est humain à demi. Je n'en ai même pas l'envie: ils sont tous coupables. Il ne peut y avoir d'innocents parmi eux. Ils sont la société, la société dans un mouvement brutal, puissant et irrépressible comme celui d'un boa qui étouffe une proie. Si j'en avais eu la possibilité, je sortirai arme au poing et je mitraillerais la foule à l'aveuglette, comme un terroriste, enivré de ma haine, de mon dégoût et de ma détermination.» (p. 187)

E Gueye: «Je vais sortir, leur causer la plus insoutenable souffrance et leur offrir le plus inestimable cadeau en un seul geste: me métamorphoser en pédé, un pédé qu'ils pourront tous à la fois craindre dans une répulsion viscérale et désirer dans une obscure pulsion de meurtre. Qu'ils me couvrent de crachats, qu'ils me déchiquettent avec leurs dents, qu'ils me brisent le os et me traînent nu par les rues, qu'ils m'injurient et injurient ma défunte mère, qu'ils me jugent indigne de vivre, qu'ils me cassent les dents pour que je suce mieux [deste pormenor gosto] comme ils disent, qu'ils me lynchent et m'abandonnent en plein air, viscères au ciel comme une charogne!» (p. 188)

«En suis-je un? Oui... Non... Peu importe: la rumeur dit, décidé, décrété que oui. J'en serai donc un. Je dois en être un. S'ils ont besoin, ceux-là dehors, que j'en suis un pour mieux vivre, je vais l'être, jouer à fond mon rôle et ainsi chacun sera content. Eux de vivre, moi de mourir. Peut-être seulement, après ma mort, se rendront-ils compte du cadeau que je leur fait... Ils chanteront mes louanges. Ils baiseront mes pieds froids et embrasseront mon cercueil comme celui des saints. Certains de mes bourreaux, leur colère retombée, diront du bien de moi, sans risques, puisq'un bon pédé est un pédé mort.» (p. 190)

E Gueye nas suas elucubrações anteriores: «Ce n'est pas parce qu'ils ont une famille, des sentiments, des peines, des professions, bref, une vie normale avec son lot de petites joies et de petites misères, que les homosexuels sont des hommes comme les autres. C'est parce qu'ils sont aussi seuls, aussi fragiles, aussi dérisoires que tout les hommes devant la fatalité de la violence humaine qu'ils sont des hommes comme les autres. Ce sont de purs hommes [o sublinhado é meu e remete para o título do livro] parce que à n'importe quel moment la bêtise humaine peut les tuer, les soumettre à la violence en s'abritant sous un des nombreux masques dévoyés qu'elle utilise pour s'exprimer: culture, religion, pouvoir, richesse, gloire...» (p. 125) 

Este o resumo da história deste livro, entre outros episódios que não cabe citar neste espaço e que não são essenciais para a compreensão do propósito do autor. 

Não admira que o livro tenha sido motivo de de desagrado, mesmo de rejeição, no Senegal. A religião muçulmana ao longo dos séculos, e salvo momentos particulares, sempre admitiu, na prática (que não na teoria) comportamentos homossexuais. Mas nos últimos tempos, e devido à emergência de um fanatismo religioso (a religião católica já o possuiu) tornou-se intransigente, em numerosos países, quanto às práticas ditas contra natura. Acresce o facto, como o autor reflecte, dos exageros praticados no mundo ocidental quanto à normalização da homossexualidade, com efeitos profundamente negativos em culturas tradicionais como as muçulmanas e africanas em geral. Os excessos dos movimentos LGBTIQ+, a proliferação das identidades sexuais, os casamentos de pessoas do mesmo sexo, tudo se processando a uma velocidade alucinante, sem tempo de assimilação, induz, especialmente em África, a considerar que se trata de um novo processo de colonização pelos Brancos que por tal deve ser rejeitado. Um pouco de contenção não teria feito algum mal.

Resumindo: De purs hommes é um livro muito bem escrito, didáctico, revelador do ambiente moral do Senegal, e de uma parte da África sub-Sahariana. Mais breve e nada complicado na descrição dos factos, ao invés do seu seguinte livro que foi galardoado com o Prémio Goncourt. Este livro é também um acto de coragem de Mohamed Mbougar Sarr, cuja orientação sexual efectivamente desconheço. Mas está de parabéns o autor.

Nota: uma única vez, no livro, a palavra homossexual é substituída pela palavra gay. Ainda bem.

 

domingo, 26 de dezembro de 2021

MEMÓRIAS SENEGALESAS

O escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr (n. 1990) obteve este ano o Prémio Goncourt pelo seu romance La plus secrète mémoire des hommes, o seu quinto livro desde 2014.

Resumo: Em 2018, Diégane Latyr Faye, jovem escritor senegalês (um alter ego do autor?), recebe em Paris, das mãos de uma famosa escritora senegalesa, Marème Siga D., um exemplar de um livro desaparecido, Le Labyrinthe de l'inhumain, de T.C. Elimane, um senegalês a que chamaram o "Rimbaud negro", e de que tomara conhecimento, nos seus tempos de liceu no Senegal, através de um Précis des littératures nègres. O livro publicara grande escândalo quando publicado (1938) e tornara-se impossível de encontrar, tal como o próprio autor.

«Un grand livre ne parle jamais que de rien, et pourtant, tout y est.» (p. 50)

Mohamed Mbougar Sarr

Diga-se, desde já, que este livro está recheado, um pouco à maneira de Agustina Bessa-Luís, de aforismos em que o autor desenvolve as suas considerações sobre a literatura, o homem e o mundo, sobre a relação dos africanos com os ocidentais (os brancos, como Sarr sublinha), sobre a relação dos países africanos com as antigas potências coloniais. Há inúmeras referências a autores clássicos e modernos, e muitas citações, o que mostra que Mohamed Sarr tem leituras, embora eu suspeite que um escritor de 30 anos não possa ter aprofundado completamente todas as obras que menciona. Não pelo facto de ser senegalês, obviamente (ele até veio concluir o liceu a França), mas porque a abrangência de obras desde os gregos até aos actuais é tarefa muita vasta.

É difícil descrever a intriga do livro, porque trata de várias estórias encastoadas umas nas outras como as matrioskas russas. Há a história do escritor senegalês, o duplo do autor (?) que vai estudar para Paris enquanto jovem e a história (anterior) de um outro escritor senegalês, também ido para Paris na juventude, o tal "Rimbaud negro", personagem misteriosa e mágica, autor do livro La plus secrète mémoire des hommes, obra perseguida pelo primeiro. E depois há as estórias senegalesas dos antepassados deste T.C. Elimane, as estórias de outros membros da família, a estória de estudantes africanos em Paris (o gheto), estendendo-se a latitude geográfica do livro até ao Haiti, à Argentina, aos Países Baixos, etc., numa profusão de personagens e de complexas relações familiares que torna difícil a inteligibilidade da obra. Até porque existe uma sistemática oscilação cronológica na narração (um incessante vai-vem de acontecimentos) e também porque, a certa altura não sabemos quem fala o quê, uma vez que não são indicados os interlocutores e que a simples menção de falas sem aspas não é suficiente, com tão variada mudança de situações, para identificar as personagens.

A construção da intriga é inegavelmente interessante, e o autor inegavelmente dotado, mas resultaria mais eficaz (um termo que não se deve aplicar à literatura, mas que é aqui conveniente) um romance mais breve e centrado nos aspectos essenciais, dispensando muitas estórias acessórias e pormenores supérfluos e evitando repetições desnecessárias. As 450 páginas do livro poderiam ter sido apenas 300 (por exemplo), e isso não invalidaria a obtenção do Prémio Goncourt, a que várias vezes se faz alusão na obra, como que se tratasse de uma piscadela de olho ao Júri que acabaria por lho conceder. Também sei que, nesta altura, convinha à Academia Goncourt conceder o prémio a um escritor negro, obviamente francófono, de preferência senegalês, juntando assim à cor do laureado uma cultura prevalentemente muçulmana.

Um dos aspectos cativantes do livro é que existe nele uma aura de romance policial, por vezes difusa e uma componente fantástica, com contornos mágicos, favorecida pelas antigas tradições do Senegal. Também as alusões sexuais são frequentes, desde os relacionamentos dos estudantes africanos em Paris, entre eles e com europeus, hetero e veladamente homo, até a relações improváveis do protagonista, devidamente actualizado com as novas ferramentas do presente como a Uber, o Instagram, o Facebook, os mails, etc.

Ignoro quais os outros concorrentes ao Goncourt deste ano, mas admito que o livro premiado tenha sido o melhor candidato, se atendermos à qualidade de alguns livros a que o prémio foi outorgado em anos anteriores.

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NOTA: Refiro, por curiosidade e porque é um sinal do mundo actual, que Mohamed Mbougar Sarr foi amplamente felicitado no Senegal quando recebeu o Prémio Goncourt. Nessa altura, as personalidades e instituições que se regozijaram pela atribuição do prémio a um compatriota verificaram que o seu anterior livro (a que farei oportunamente referência), De purs hommes, tratava de um caso de homossexualidade no Senegal. Por esse motivo, retiraram as felicitações ao autor. Isto diz muito dos tempos que vivemos.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A INVENÇÃO DA ÁFRICA


Foi publicada recentemente a tradução francesa de The Invention of Africa, do filósofo congolês Valentin Yves-Mudimbe, obra editada em inglês nos longínquos 1988.

Não me apercebi então da publicação desse livro, que foi geralmente ignorado na Europa. Surgindo há pouco tempo L'Invention de l'Afrique, decidi-me ler agora a obra, que constitui, de alguma maneira, em relação ao continente africano, a mesma abordagem a que procedeu Edward Saïd, com Orientalism, em relação ao  mundo árabe.

Ambas as obras procedem à desconstrução da narrativa elaborada no mundo ocidental sobre esses dois universos, ainda que a perspectiva dos seus autores não possa ser integralmente aceite, sem qualquer discussão, não só por ocidentais como por árabes e africanos. Recordemo-nos da contestação de que foi objecto Orientalism, mesmo entre os árabes.

Confesso que não conhecia Valentin Mudimbe e fiquei espantado com a erudição de que faz prova este notável intelectual, nascido no antigo Congo Belga, destinado à carreira eclesiástica e que, após a sua partida para os Estados Unidos aquando do regime de Mobutu Sese Seko, se tornou professor de várias universidades americanas.

Familiarizado com as humanidades clássicas e modernas, e também notável romancista, Mudimbe explora neste livro três territórios epistemológicos: a filologia grega e latina, as bibliotecas religiosas e a etnografia colonial. E também as literaturas em busca de uma África "vernacular" e de uma modernidade neo-faraónica inaugurada pelo antigo Egipto. Ao longo do livro, Mudimbe desmonta também alguns discursos sobre o continente, mesmo provenientes de notáveis autores africanos, caso do próprio Léopold Senghor. E as críticas ao colonialismo surgem nesta obra numa perspectiva bem racional, longe de qualquer radicalismo cultivado já no tempo da sua publicação e que atingem agora, com a adopção do politicamente correcto, verdadeiros foros de insanidade.

A extensão do livro (500 páginas) e a diversidade das abordagens não permite aqui discorrer sobre as teses de Mudimbe. Ele recorre bastante a Aimé Césaire, a Michel Foucault, a Jean Baudrillard, a Roland Barthes, a Dumézil, a Claude Lévi-Strauss, a Paul Veyne, a Max Weber, a Jack Goody, a Sartre, a Frantz Fanon, a Senghor, a Teilhard de Chardin, a Braudel, a Cheikh Anta Diop, a Jomo Kenyatta, a Lévy-Bruhl, a Kwame Nkrumah, a Samir Amin, a Patrice Lumumba, a Kenneth Kaunda, a Sekou Touré, para citar apenas alguns dos mais conhecidos, além de numerosos pensadores africanos cujos nomes nos são menos familiares. Há no entanto uma figura muito presente na obra de Mudimbe: Edward Wilmot Blyden (1832-1912), natural das Antilhas dinamarquesas e que se instalou na África Ocidental em 1851 e se tornou rapidamente um dos mais minuciosos especialistas das questões africanas. Residindo em permanência na Libéria e na Serra Leoa, assistiu às primeiras horas da partilha de África, estudou a chegada dos colonos europeus à costa ocidental e observou o estabelecimento progressivo do regime colonial. São muito importantes os seus estudos sobre o Cristianismo e o Islão em África e sobre a "condição do Negro". Naturalmente que as opiniões de Blyden não se harmonizam inteiramente com as de Mudimbe, mas este faz disso mesmo eco no seu livro. Em 1967, Hollis Ralph Lynch publicou um indispensável trabalho sobre aquele investigador: Edward Wilmot Blyden: Pan-Negro Patriot 1832-1912.

Também Mudimbe recorre muitas vezes ao conceito de Weltanschauung, assumido numa perspectiva africana. E as suas investigações recuam no passado e mergulham nos clássicos gregos e latinos. E estendem-se também à filosofia islâmica, a falsafa. Igualmente dissecada a relação entre colonialismo e cristianismo, analisadas as várias perspectivas dos autores africanos sobre a descolonização, evocadas as religiões africanas, etc.

Em Apêndice, são tratadas as fontes etíopes de conhecimento remontando aos primeiros séculos do Império Romano.

Assim, L'Invention de l'Afrique é uma obra riquíssima e complexa que exige do leitor alguns conhecimentos prévios sobre a matéria. Com a intenção de reunir o maior número de contributos para a sua obra, o texto de Mudimbe surge por vezes um pouco confuso no que respeita à arrumação dos temas, o que exige uma particular atenção na leitura.

Recomenda-se a todos os interessados no continente africano, no homem negro (e também nos africanos árabes), nas colonizações e descolonizações, na África pré-colonial, uma visita a este livro.


domingo, 14 de novembro de 2021

PENSAR A MORTE É ENFRENTAR A PRIMEIRA DAS CERTEZAS


«Notre société, tournée vers les sciences "exactes", veut oublier ce moment inéluctable; elle cherche à oublier les rites, les croyances anciennes mais, au jour de notre passage dans l'autre monde, nous voici encore plus dépourvus, désamparés, plongés dans la crainte alors que des civilisations anciennes acceptaient et se réjouissaient même d'accéder à cet autre monde. Alors ne convient-il pas  de parler de la mort afin de surmonter notre angoisse?» (p. 36)

Entre as muitas obras publicadas sobre a Morte, Le sens caché des rites mortuaires - Mourir est-il mourir? (1993), de Jean-Pierre Bayard (1920-2008) é uma das mais notáveis e completas, sendo o seu autor um dos grandes especialistas do esoterismo contemporâneo. 

«La crainte de la mort a sans doute toujours existé; les vestiges les plus anciens montrent une réaction humaine fort compréhensible; la foi en une survie n'a pu modifier cette attitude défensive mais, dans notre civilisation de consommmation, la mort est encore plus mal perçue.» (p. 47)

Recorda o autor a última frase de Mémoires d'Hadrien, de Marguerite Yourcenar: «Tâchons d'entrer dans la mort les yeux ouverts...»

A Primeira Parte do livro trata da Fabulosa Aventura Humana, da morte em si mesma, do medo desta  e da mortalidade.

A Segunda Parte é dedicada ao Culto dos Antepassados. Debruça-se sobre a universalidade dos ritos mortuários, dos ritos no pensamento ancestral, dos costumes das sociedades tradicionalistas e da morte iniciática.

Relativamente aos ritos funerários, o autor detém-se especialmente no Oriente (karma, Bardo Thödol [o Livro dos Mortos do budismo tibetano], a alma e o nirvana, o ciclo dos renascimentos [Sri Aurobindo], incineração, viagem da alma na China Antiga), no Egipto [com particular referência ao embalsamamento], no Mazdeísmo, na Bacia Mediterrânica, nas Canárias, na África Negra [ausência do receio da morte, perda do nome, rituais da morte, purificação, pigmeus e ritos iniciáticos, reinserção no clã], no Maghreb, na Oceania, nos Índios da América, no México e na América Antiga, no vaudou, em Madagáscar.

Nos costumes das sociedades tradicionalistas, o autor aborda os ritos abraâmicos, israelitas, cristãos, islâmicos, celtas e ciganos. 

Ainda na Segunda Parte é reservado particular espaço à morte iniciática, aos ritos maçónicos (câmara de reflexão, graus de Mestre ao 33º do Rito Escocês Antigo e Aceite e cerimónias fúnebres).

A Terceira Parte trata do Culto do Corpo: o acompanhamento da morte, o combate à morte, as mortes violentas e os monumentos funerários. Se a morte não existe, segundo as teorias primitivas, então ela é devida a malefícios que vêm pôr fim à nossa existência: epidemias, pena de morte, guerras e duelos, sacrifícios, suicídio. Nos monumentos funerários distinguem-se as cavernas, as construções megalíticas, os túmulos etruscos e citas, as pirâmides, os túmulos, mausoléus e catacumbas cristãs, etc. 

A Quarta Parte ocupa-se do Culto da Alma: o mundo de além-túmulo, o inferno, as vidas anteriores, os sonhos e as premonições; a imortalidade e a ressurreição, as relíquias, os fantasmas, os vampiros, o tribunal supremo e a festa dos mortos; ainda, a reencarnação e a sua abordagem nas diversas religiões. 

No fim, o testamento vital, endereços úteis, uma extensa bibliografia e um índice pormenorizado.

Livro cuidadosamente ilustrado, ainda que escrito há mais de duas décadas, mantém a sua actualidade é será de grande utilidade para os interessados na matéria.


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

SOBRE "LE GRAND REMPLACEMENT", DE RENAUD CAMUS


Como anunciara, quando li Tricks, debrucei-me agora sobre a polémica obra de Renaud Camus, Le Grand Remplacement, que conhecia de nome mas que só mais recentemente suscitou a minha curiosidade, embora não ignorasse o tema. 

De há muito que Renaud Camus (RC) está preocupado com o facto da população francesa nativa vir a ser substituída parcial ou mesmo totalmente pelos imigrantes das mais diversas origens que convergem para França, nomeadamente os africanos e os árabes. 

A obra que acabei de ler é a 5ª edição (2019) de um volume muito mais extenso (500 páginas) do que o original. Nela, RC engloba o primeiro livro dedicado ao tema, "Le Changement du peuple" (2013), artigos, entrevistas, conferências, discursos e outros textos, desde 2010 até 2017.

Inegavelmente, RC é um autor de pena elegante, de prosa fluente, e os factos são, no geral, confirmadamente objectivos, ainda que algumas conclusões possam ser por vezes forçadas e o remédio para os males invocados ineficaz, porque tardio, a menos que os governos europeus, no caso vertente o Governo francês, pudessem adoptar medidas que extravasam largamente os padrões actualmente aceites e que, mesmo assim, talvez se revelassem infrutíferas.

Sendo um conjunto de 28 publicações, na presente edição de Le Grand Remplacement, tratando invariavelmente do tema que preocupa o autor, a substituição parcial ou mesmo total da população francesa indígena pela população migrante, torna-se inevitável a repetição da argumentação e até a repetição de vários episódios, como o facto  do escritor Richard Millet ter manifestado há já alguns anos a sua estupefacção, perante as câmaras da televisão, de ter verificado um dia, às seis horas da tarde, na estação de Châtelet (a mais movimentada estação de metro de Paris) que era o único (ou quase) indivíduo branco naquele local àquela hora. Sendo o livro a compilação de textos de diversas datas, essa repetição seria sempre fatal, mas ocorre também dizer que se torna fastidiosa.

Desde há muito tempo que a obsessão de RC é a possibilidade de os franceses autóctones virem, num futuro próximo, a ser substituídos por migrantes de alheias etnias, religiões, tradições, costumes, etc. E é um facto que a população actual de França conta hoje com cerca de 15% de cidadãos franceses oriundos das migrações ou seus descendentes. Isto sem falar dos imigrantes já estabelecidos no solo francês mas que ainda não obtiveram a respectiva nacionalidade.

Os factos e os acontecimentos descritos por RC são, em geral, confirmados pelos dados oficiais, ainda que algumas das conclusões possam ser eventualmente adaptadas às conclusões a que o autor pretende chegar. E existem também, há que dizê-lo, outros factos e acontecimentos que, contrariando a tese de RC, o autor não menciona. 

As grandes migrações árabo-africanas para França começaram em finais do século XIX, e foram sempre bem aceites pelos governos franceses, até porque se tratava de pessoal trabalhador, pouco reivindicativo e que aceitava desempenhar as tarefas cada vez mais desinteressantes para os franceses de souche. Na grande maioria foram remetidos para as periferias das cidades, englobados em cités, confinados a uma vida mais do que modesta. O problema do convívio surge por altura dos anos oitenta do século passado, quando essas populações tranquilas começam a manifestar as suas exigências, devido até ao seu peso demográfico e às deficientes condições de integração. Principiam a surgir entre a juventude os pequenos delitos, o tráfico de droga, a insuficiência de escolaridade, etc. E o convívio começo a tornar-se difícil. Tudo isto é agravado pelo fundamentalismo islâmico. A campanha wahhabita desencadeada em especial pela Arábia Saudita, e levada a cabo por imames locais, o interminável conflito israelo/palestiniano (com o qual RC pouco se importa) e, a coroar este caldo de cultura, a invasão anglo-americana do Iraque, as "primaveras árabes", o bombardeamento da Líbia e o assassinato de Qaddafi, a guerra na Síria, a turbulência no Afeganistão, determinaram um aumento exponencial de imigrantes e a radicalização dos comportamentos de algumas faixas de franceses muçulmanos, com expressão nos diversos atentados ocorridos em solo gaulês. Nunca esquecer, e eu tive ocasião de verificar in loco, que o regime de Qaddafi constituía um tampão a sul do Mediterrâneo que impedia o afluxo para França (e Itália) de, nomeadamente, milhares de africanos sub-saharianos, que eram travados em Tripoli ou Benghazi, e utilizados nos trabalhos menores que os líbios desdenhavam fazer.

Só muito tarde os governos europeus se aperceberam, ou quiseram aperceber-se, desta substituição populacional que tanto preocupa RC e tantos milhares de pessoas.

Ao proceder ao diagnóstico da situação, aventa o autor algumas medidas para travar o "agravamento" da situação ou até revertê-la. Não creio que sejam eficazes ou exequíveis.

Numa perspectiva mais geral, e como Toynbee ensina, as migrações maciças e o declínio das civilizações insere-se no plano geral da História. Quem estiver interessado poderá ler A Study of History, um estudo imenso de que existe uma versão inglesa condensada, por acaso até traduzida em português (1964) pelo prof. Vieira de Almeida. Numa perspectiva mais dos nossos dias, podemos recorrer a Umberto Eco, quando afirma, em 1997: «Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem, "colorado". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma. Este confronto (ou choque) de culturas poderá ter saídas sangrentas, e estou convencido de que em certa medida as terá, que serão inevitáveis e durarão muito tempo. Porém, os racistas deveriam ser (na teoria) uma raça em vias de extinção. Não existiu um patrício romano que não suportava que se tornassem também cives romani os gauleses, ou os sarmatas, ou os judeus como São Paulo, e que pudesse subir ao trono imperial um africano, como veio por fim a acontecer? Este patrício esquecemo-lo, foi derrotado pela história. A civilização romana foi uma civilização de mestiços. Os racistas dirão que é por isso que se dissolveu, mas foram precisos quinhentos anos - e acho que é um espaço de tempo que nos permite também a nós fazer projectos para o futuro.»

O problema das populações exógenas na Europa reveste-se de particular acuidade em França. Suponho que é difícil reverter os erros do passados.  Não podem os governos franceses livrar-se agora dos indivíduos árabo-africanos, até porque a expulsão dos mesmos, não sendo eticamente aceitável, também não seria exequível, pois sendo eles de pleno direito (excepto os ilegais) cidadãos franceses, não haveria países para devolvê-los. E também ninguém advoga o fuzilamento em massa!!! E quanto às actuais imigrações ilegais em curso, elas poderão ser dificultados mas não decisivamente travadas, como refere Umberto Eco, a menos que se bombardeiem os barcos que fazem a travessia do Mediterrâneo, o que não se afigura compatível com o actual status civilizacional. Claro que também existem imigrações terrestres, contra as quais a Polónia e a Hungria vêm erguendo muros, ou a Turquia retendo migrantes por conta do dinheiro da União Europeia, mas não serão medidas decisivas.

Que fazer?

Não possuindo remédio milagroso para obstar a todas as futuras calamidades profetizadas por RC, e contornando Soumission, de Michel Houellebecq, que prevê um futuro presidente da República Francesa de origem tunisina, não são muitas as opções a considerar. Sendo os negros e os "escuros" seres humanos a quem é devido o "ontológico" respeito, devem ser -lhes garantidos os mesmos direitos económicos e sociais de que desfruta a população autóctone, exigindo-se-lhes em troca o respeito pelas tradições e costumes da República, se necessário com a utilização dos meios indispensáveis. E deve atender-se, também, ao melhoramento da sua inserção social o que, apesar do muito que está escrito em seu favor ou desfavor, é ainda deficiente, decorrente até da enlouquecida globalização económica sofrida pelo mundo nos últimos anos. Há, porém, uma medida de mais fácil aplicação e que se afigura de alguma razoabilidade, atendendo até ao índice do crescimento demográfico das populações emergentes: a concessão de direitos políticos deve processar-se com muita parcimónia, para evitar um dos principais receios de Michel Houellebecq e de Renaud Camus: que os franceses venham a ser governados, a breve trecho, por indivíduos cujas etnias, religiões, costumes, nada tenham a ver com a França, e a sua Grandeza, para evocar o general De Gaulle.

É claro que este tema convoca vastos desenvolvimentos, não é apenas a França, e mesmo a Europa, que está em causa, mas o planeta por inteiro, já que, embora menos visíveis ou menos mediatizadas, se verificam hoje outras transferências de populações, como, por exemplo, no continente americano. Mas este texto constituiu tão só uma modesta proposta de reflexão sobre o livro de Renaud Camus.

Aguardemos...


segunda-feira, 1 de novembro de 2021

SOBRE "LE CAMP DES SAINTS", DE JEAN RASPAIL

Publicado em 1973, o livro Le Camp des Saints, de Jean Raspail (1925-2020), passou sem especial controvérsia, ou realce, pelo meio editorial e com o particular silêncio da crítica de esquerda. Foi a partir da sua edição americana em 1975, com o título The Camp of the Saints, que a obra adquiriu particular notoriedade, vindo a ser reeditada em França em 1978 e obtendo então um sucesso de vendas, o que levou à realização de nova edição em 1985. A amplitude real dos eventos ficcionados atingiu tal dimensão que conduziu à presente edição de 2011, que agora comento, à qual o autor acrescentou um prefácio, "Big Other", título parafraseando a obra de George Orwell, e onde explica a carreira acidentada do livro, obra verdadeiramente premonitória, cujo argumento é amplamente confirmado pelos factos que se verificaram posteriormente, em especial desde o início da passada década. 

Como refere o autor nesse prefácio, este livro seria hoje impublicável, ou objecto de uma censura que o amputaria e desfiguraria completamente. Aliás, Jean Raspail inclui em apêndice todas as passagens do livro que cairiam eventualmente sob a alçada das celeradas leis Pleven (1972), Gayssot (1990), Lellouche (2001) e Perben (2003) que introduziram em França severas penalidades e interdições relativamente a afirmações consideradas (ou supostamente consideradas) racistas e anti-semitas. Não tendo, porém, efeitos retroactivos, Le Camp des Saints, publicado em 1973, escapou, e continua a escapar, à censura francesa, sendo publicado no respeito integral do texto original.

A propósito do título do livro, o autor cita o Apocalipse:  «À la fin des mille ans, Satan sera delivré de sa prison. Il en sortira pour séduire les nations qui sont aux quatre coins de la terre, Gog et Magog, et les rassembler pour le combat, elles qui égalent en nombre le sable de la mer. Elles partirent en expédition sur la surface de la mer, elles investirent le camp des saints et la ville bien-aimée. Mais Dieu fit tomber un feu du ciel qui les dévora. Et le diable qui les séduisait fut jeté dans l'étang de feu et de soufre, où étaient déjà la bête et le faux prophète, et où leur tourment, de jour et de nuit, durera aux siècles des siècles.»

Dada a sua extensão, qualquer comentário pormenorizado sobre o assunto do livro seria sempre demasiado longo e imperfeito. Para um adequado conhecimento do enredo deve ler-se a obra ou, pelo menos, a sinopse que consta da Wikipédia. 

Eis um resumo de um possível resumo do texto. Cem barcos, alguns deles quase podres, partem de Calcutá, do delta do Ganges, com um milhão de bengalis, na maioria famélicos e doentes, e dirigem-se à Côte d'Azur, o paraíso idealizado dos "damnés de la terre", após infrutíferas tentativas de vários países em desviar a rota da "armada" ou até em aniquilá-la. A hesitação, primeiro na Europa (ignorando-se o destino final) e depois em França é de pânico absoluto. Os defensores dos direitos do homem, os anti-racistas, as organizações não governamentais, as Nações Unidas e apêndices, os espíritos bem-pensantes, a esquerda chique, proclamam a imperiosidade do acolhimento mas perante a iminência de um desembarque geral a população do sul de França abandona casas e haveres e dirige-se para o norte do país. O presidente da República apela à tranquilidade e garante que a fronteira será defendida manu militari, sem convicção, já que não ignora que as tropas se recusarão a disparar contra uma multidão faminta, composta especialmente por velhos, mulheres e crianças, embora não só. Simultaneamente, ocorrem em toda a França greves e tumultos dos imigrantes já instalados, árabes ou negros, que se solidarizam com os recém-chegados, ao contrário de outros imigrantes, igualmente árabes e negros mas pertencendo já às elites franceses e que pretendem conservar os privilégios adquiridos. Tirando um punhado de bravos, as tropas cederão à invasão migrante e os novos habitantes ficarão instalados nas casas e cidades abandonadas pelos seus proprietários. Uma nova era começa.

Trata-se, evidentemente, e com uma larga antevisão (1973), do problema das migrações maciças para a Europa ocorridas nos últimos anos, sobretudo a partir da invasão anglo-americana do Iraque e da guerra na Síria. E do receio dos franceses, já com um número considerável de migrantes árabes e africanos no seu território (vindos de Marrocos, da Tunísia, da Argélia, especialmente depois da descolonização, e de algumas antigas colónias africanas que entretanto alcançaram a independência) se verem substituídos na sua terra natal por cidadãos oriundos de excêntricas paragens. O mérito de Jean Raspail é o de ter previsto a amplitude do fenómeno com cinquenta anos de avanço. O problema não se colocava ainda com especial acuidade na altura em Raspail escreveu o seu livro, já que os migrantes então existentes foram essenciais para fazer funcionar a economia francesa carecida de mão-de-obra mais barata e disponível para a execução de tarefas que os nativos se recusavam a desempenhar.

Esta obra é o que se costuma designar em França por "roman à clef": as personagens fundamentais, os jornais, as instituições, são designadas por nomes supostos, alguns tão diferentes do original que só um especialista conseguirá determinar a verdadeira identidade. Exercício difícil não só para um estrangeiro, ainda que bem informado sobre a pretérita vida política e cultural francesa do último meio século, mas igualmente para o francês de hoje, mesmo que possua uma cultura média. 

Trata-se de um romance inegavelmente bem escrito, e muito claro, até pelo menos três quartos do seu texto. A partir daí, e quando o autor começa a debruçar-se sobre as perturbações registadas na própria França, nos seus meios operários, estudantis, militares, políticos, etc., Jean Raspail deixa-se envolver na teia dos acontecimentos que ele mesmo convoca e o livro torna-se algo ininteligível e até, digamos, um tanto maçador. O pormenor das possíveis repercussões no tecido social do país, decorridas da pretensa invasão bengali, é mais do domínio de uma análise sociológica do que de um romance de antecipação histórica. Expostas as linhas gerais, o detalhe ficcional é supérfluo.

Pode, contudo, considerar-se Le Camp des Saints o primeiro grito de alarme literário sobre o problema das imigrações em território francês, que Renaud Camus explicitaria mais recentemente no seu livro Le Grand Remplacement (2011 e edições seguintes).

A tese fundamental de Raspail é a de que o mundo ocidental, através de todos os seus movimentos e organizações internacionais criou um clima propício à deslocação maciça de populações do terceiro mundo, só entrando em pânico quando essas populações lhe batem à porta. É também uma violenta denúncia da hipocrisia da sociedade contemporânea e dos seus principais representastes (no livro nem o Papa, um papa fictício,  e a Igreja Católica escapam) e da tibieza daqueles cuja missão é precisamente a preservação dos valores e do modo de vida da civilização ocidental.

A argumentação de Jean Raspail é pertinente (obviamente do seu ponto de vista) mas ignora alguns dados históricos de irrefutável veracidade. Sempre, ao longo dos tempos, se verificaram volumosas transferências de populações, motivadas pelas mais variadas causas: fome, guerra, anseio de melhor nível de vida, curiosidade de outras paragens, ou até forçadas pelos governos dos seus próprios países. A História está cheia de exemplos e contra essas movimentações a pena de Raspail é inútil. Arnold Toynbee, em A Study of History, explica isso.

Além do mais, e apesar dos acontecimentos a que vimos assistindo nos últimos anos (muitos dos quais, i. e., o terrorismo, são exógenos a essas movimentações e decorrem da instrumentalização política de terceiros), é possível uma assimilação razoável dos recém-chegados no seio dos indígenas de tradições milenares, desde que criadas as condições indispensáveis para uma integração progressiva e humana. Uma coisa que a França (nem a maioria dos países) não soube fazer desde há mais de um século. Nem é preciso pertencer às inúmeras associações anti-racistas, anti-xenófobas, anti-qualquer coisa, que vivem (elas e os seus membros) à custa dos subsídios dos governos, para compreender que nada impede a sã convivência de brancos, negros, árabes, ou quaisquer outras raças (ou etnias) ou mesmo de credos diferentes ou sem credo algum, desde que seja possível estabelecer um "pacto" tácito de relacionamento, "pormenor" até hoje sistematicamente ignorado.

A análise do livro de Raspail levar-nos-ia muito longe, não cabendo naturalmente no espaço de um post. Mas não posso deixar de referir uma passagem de uma conferência do célebre Umberto Eco em Valência, no Convénio organizado sobre as Perspectivas do Terceiro Milénio, em 23 de Janeiro de 1997, e incluída no seu livro Cinque scritti morali (1997), de que existe uma tradução portuguesa, da qual reproduzo: «Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem, "colorado". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma. Este confronto (ou choque) de culturas poderá ter saídas sangrentas, e estou convencido de que em certa medida as terá, que serão inevitáveis e durarão muito tempo. Porém, os racistas deveriam ser (na teoria) uma raça em vias de extinção. Não existiu um patrício romano que não suportava que se tornassem também cives romani os gauleses, ou os sarmatas, ou os judeus como São Paulo, e que pudesse subir ao trono imperial um africano, como veio por fim a acontecer? Este patrício esquecemo-lo, foi derrotado pela história. A civilização romana foi uma civilização de mestiços. Os racistas dirão que é por isso que se dissolveu, mas foram precisos quinhentos anos - e acho que é um espaço de tempo que nos permite também a nós fazer projectos para o futuro.»

Voltaremos ao tema, quando comentarmos Le Grand Remplacement, de Renaud Camus. 


 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

TRICKS

No último capítulo do livro Soi-même comme un roi, de Élisabeth Roudinesco, que acabei de ler há dias, é feita uma referência especial ao problema da substituição da população europeia por populações migrantes, o "grand remplacement", teorizado formalmente pela primeira vez por Renaud Camus (n. 1946), mas que dera já origem a uma obra como La France Juive (1886), de Édouard Drumont, grossa de 1200 páginas em dois volumes, então especialmente virada para a influência judaica. Também, em 1973, Jean Raspail publicou Le camp des saints, que na altura passou quase despercebido mas que trinta anos mais tarde viria a obter um sucesso monumental junto de todos os identitários nacionalistas e seria traduzido em numerosas línguas.  Livro sucessivamente reeditado, na reedição de 2011 Raspail redigiu um prefácio intitulado "Big Other", em homenagem (equívoca) ao romance de George Orwell. Finalmente, em 2011, Renaud Camus publica Le Grand remplacement, onde desenvolve a sua tese da substituição dos franceses de souche por muçulmanos árabes e negros, que passaram a ocupar, no seu imaginário, os anteriormente vituperados judeus. Esta obsessão com a preservação dos franceses de cepa, ameaçados pelos imigrantes, seria ainda o tema do famoso romance Soumission (2015), de Michel Houellbecq, a que fizemos oportunamente referência neste blogue. Sobre os livros de Drumont, Raspail e Renaud Camus iremos debruçar-nos em próximos posts.

Como escrevi acima, a referência de Roudinesco a Renaud Camus suscitou-me o desejo de ler Tricks, o primeiro livro deste escritor a obter considerável sucesso, o qual repousava há anos na minha biblioteca, e cujo tema nada tem a ver com as preocupações identitárias. Publicou Renaud Camus Tricks em 1979, e o livro foi objecto de diversas edições e reedições (também em línguas estrangeiras). A minha edição (a 3ª), considerada a definitiva, contou com um prefácio de Roland Barthes, de quem o autor foi amigo. "Tricks", que se poderá traduzir aqui genericamente por "engates", descreve 46 relações homossexuais do autor com parceiros diversos, em apartamentos, em discotecas especializadas, em saunas, em sanitários públicos, na praia, em variados locais, inclusive nos jardins de Notre-Dame.

No prefácio, cumplicidade oblige, Roland Barthes tenta atribuir um especial valor literário à descrição destes "tricks", conferindo-lhes quase um estatuto de experiência mística mais do que simples actividade sexual, mas é evidente que nem a boa vontade do Mestre consegue iludir o facto de que se trata de vulgares engates. Conta o livro os encontros de Renaud Camus nos primeiros meses de 1978,  com rapazes e homens com quem manteve as mais diversas relações sexuais, descritos com abundância de pormenores, incluindo o físico dos parceiros, curiosamente todos (excepto um) com bigode (era a moda na época, imitando o vocalista Freddie Mercury, dos Queen) e razoavelmente peludos. Diga-se em abono da verdade que Renaud Camus, que publicou posteriormente uma vasta e variadíssima obra, ainda navegava nas águas da sua militância homossexual e estava longe da actividade política com que está a coroar a sua carreira de escritor.  Tendo convivido com os mais distintos intelectuais do seu tempo, como Barthes, Aragon, Matzneff, Marguerite Duras ou Robbe-Grillet, Renaud Camus, considerado um homem de esquerda, foi membro do Partido Socialista francês e convicto apoiante da candidatura presidencial de François Mitterrand em 1981. Confesso admirador do escritor francês Tony Duvert (caído em desgraça por se dedicar a jovens demasiado jovens), assinou algumas das suas obras usando ora o prenome Tony ora o apelido Duvert em homenagem ao falecido plumitivo, ostracizado pela ditadura dos costumes que vigora hoje no Ocidente.

Também é verdade que a descrição que Camus faz dos seus engates, apesar da minúcia, nunca é pornográfica, contém pelo meio pormenores interessantes e talvez seja mais autêntica e literariamente mais conseguida da que é feita por Arthur Dreyfus no seu recente livro Journal sexuel d'un garçon d'aujourd'hui (2021), que não comprei nem li, e que relata, em 1300 páginas, as suas centenas de engates homossexuais estabelecidos através da internet. Presumo que, neste caso,  se trata de uma actividade bastante impessoal, mas segundo a doxa que nos é imposta os contactos humanos devem ser progressivamente substituídos por contactos digitais, mesmo no que ao sexo diz respeito. Não me espantaria se, num futuro próximo, a consumação carnal dos engates sexuais via computador ou telemóvel viesse a realizar-se também online, como, aliás, já se regista, alternativamente, em algumas situações particulares.

Também Camus provocou uma certa polémica em França ao manifestar-se contra a exagerada proporção de judeus em certas emissões televisivas [o que até era verdade, mas não se pode dizer], no caso concreto a propósito de uma emissão de France Culture. Vários intelectuais acusaram-no de anti-semitismo mas Camus recebeu também a solidariedade de muitos dos seus pares, que defenderam o seu direito à liberdade de expressão.

Causa alguma admiração esta viragem ideológica e política de Renaud Camus. Tendo sido um fervoroso defensor dos direitos dos homossexuais, e continuando a ser ele mesmo um homossexual assumido, a sua hostilidade em relação aos árabes e aos negros, geralmente considerados excelentes parceiros sexuais (segundo afirmam os conhecedores), revela-se surpreendente. Poderia atribuir-se essa antipatia a algumas experiências mal sucedidas, mas isso não basta para atacar aquelas comunidades, ainda que se possa admitir que o número de representantes de certas etnias em solo francês esteja a provocar um desequilíbrio na manutenção das tradições e costumes ancestrais dos gauleses. Mas é também uma verdade que, desde há mais de um século, os governos da República Francesa não souberam lidar com as sucessivas camadas de população migrante, descurando a sua integração no solo nacional.

Voltaremos brevemente a Renaud Camus.

Nota 1: Um dos jovens com quem Camus manteve comércio carnal era português, de nome Zé, natural de Coimbra mas vivendo desde pequeno no Brasil.

Nota 2: Considerando que o livro tem cerca de 500 páginas, confesso que a partir sensivelmente de metade passei a lê-lo obliquamente e com alguma rapidez. Não há paciência (nem tempo) para tomar conhecimento destas aventuras quase diárias de Camus que, embora variando na forma de actuação, no tipo dos protagonistas, na variedade dos locais, na abundância dos pormenores e até nalguns aspectos reconhecidamente interessantes, pela sua repetição se tornam fastidiosas.

Nota 3 - Importa ainda salientar que ao longo do livro perpassam bastantes referências culturais, o que se traduz, naturalmente, num valor acrescentado.

 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

QUEER MAROC

Não sou propriamente um entusiasta da teoria queer, nem me identifico geralmente com as ideias hoje em voga das distinções entre género e sexo, da construção das identidades e da parafernália LGBTQIA+. Estas "modas", oriundas dos Estados Unidos (tinham de ser) e que passaram depois à Europa, tiveram em Judith Butler (n. 1956) um dos seus principais, e controversos, arautos, embora posteriormente esta tenha reconsiderado algumas das suas teses. Sobre a matéria, e para um conveniente esclarecimento, deve ler-se o recente livro da psicanalista e socióloga Élisabeth Roudinesco, Soi-même comme un roi-Essai sur les dérives identitaires (2021), que acerca de sexo, raça e colonialismo nos informa como evoluíram todos os conceitos ditos identitários, as suas virtudes e os seus infortúnios.

A minha referência ao presente livro, Queer Maroc, de Jean Ziganiaris (2013), que adquiri aquando da sua publicação, deve-se ao facto de um dos sub-capítulos ser especialmente dedicado ao célebre, e praticamente desconhecido, romance do escritor marroquino Mohamed Leftah, Le dernier combat du Captain Ni'mat (2011), que recebeu o Prémio de La Mamounia, e que é um dos mais notáveis testemunhos da homossexualidade no Egipto dos nossos dias. Sobre esta obra, de uma autenticidade e actualidade esmagadoras, escrevi aqui em 2014: http://domedioorienteeafins.blogspot.com/2014/07/o-encanto-singular-dos-nubios.html. 

Foi exactamente por esse motivo que regressei agora a Queer Maroc, que não li completamente. Deve dizer-se, contudo, que este livro está particularmente bem escrito, e presta grande serviço aos interessados, especialmente quando esclarece os leitores menos atentos quanto a uma atitude estabelecida na sociedade marroquina, e no mundo árabe em geral: existe no islão uma dicotomia sexo/religião, que muitas vezes, mesmo muitas vezes, leva a separar na prática a actividade sexual dos preceitos corânicos, já que, como diz a Bíblia, "o espírito está pronto mas a carne é fraca".

Ziganiaris revisita os escritores marroquinos que escreveram sobre a temática da homossexualidade, nomeadamente Rajae Benchemsi, Tahar ben Jelloun, Driss Chraïbi, Abdelkébir Khatibi, Mohamed Leftah, Rachid O, Abdelhak Serhane, Abdellah Taïa.

Não é meu propósito discorrer aqui, e agora, sobre este livro, mas não devo eximir-me à enunciação dos seus capítulos:

1ère partie - "Et l'espace littéraire marocain créa la femme"

I - Les figures de la mère: esclave du traditionalisme ou réinventrice de la tradition?                      

II - La place de la femme dans l'histoire du Maroc: Harems, princesses et prostitution coloniale  

III - Femmes, fantasmes, sexualité: regards sur les figures de l'amant

2ème partie - "On ne nait pas homme, on le devient"

I - Émancipation familiale,  émancipation sexuelle

II - L'amant: entre libéralisation de la sexualité et reproduction de la domination masculine

3ème partie - Par-delà l'assignation de genre: corps transidentitaires et présence du queer dans la littérature marocaine

I - Trouble dans le genre 

II - La beauté des corps transidentitaires 

 

Os interessados nestas matérias encontrarão neste livro, e não só relativamente ao Marrocos, uma explanação detalhada sobre a criação e a evolução do conceito queer e da sua divulgação particularmente no mundo ocidental.

Por seu lado, o livro de Élisabeth Roudinesnco é uma incursão de penetrante lucidez nestes domínios, abordando as questões com um irrecusável bom senso, sem ideias pré-concebidas, não hesitando criticar o que é manifestamente errado (ou oportunista) mas admitindo os avanços registados em muitas das matérias abordadas.


     

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

A MORTE DE D. JOÃO II

Folheei hoje O Obito de D. João II (sic), de Ricardo Jorge, obra publicada em 1922. A morte do monarca em Alvor (1495) tem suscitado muitas interrogações, e várias têm sido as suspeitas de que a mesma fosse devida a envenenamento.

Começa o autor, famoso médico, investigador e professor, por fazer desfilar perante nós uma série de envenenamentos de figuras históricas, supostamente autênticos, recorrendo contudo ao dito de espírito de Alfred  de Vigny: "duas coisas se contestam o mais das vezes aos reis, a nascença e a morte, negando-se-lhes que uma seja legítima e a outra natural".

[Entretanto, descobri um erro. Ricardo Jorge escreve que em 1643 Luís XII teria morrido envenenado, mas quem morreu em 1643 foi Luís XIII.]

A morte do príncipe D. Afonso (1475-1491), na ribeira de Santarém, privara D. João II do seu filho e herdeiro, levando-o a diligenciar passar a herança régia para o bastardo D. Jorge de Lancastre (1481-1550), duque de Coimbra, filho de Ana de Mendoça. A esta tentativa se opôs denodadamente a rainha D. Leonor, que até recebera o bastardo na Corte e o educara juntamente com o filho. Mas a sucessão do trono pelo bastardo, não.

Muita gente quis mais tarde imputar a D. Leonor (a benemérita rainha) a responsabilidade da morte do marido. Até Camilo, atribuindo-a concretamente ao mestre judeu João do Porto, médico da rainha. Nestas histórias de soberanos estranhamente mortos aparecem sempre figuras de médicos, cuja intervenção Ricardo Jorge veementemente contesta, quanto à maioria dos casos, embora não deixe de lembrar os inúmeros assassinatos que foram imputados à vontade de Filipe II. Mas no caso em apreço não se verificou, de facto, um conjugicídio.  

Importa não esquecer neste momento que, prosseguindo uma política de centralização real, D. João II conseguiu que fosse ordenada a decapitação do duque de Bragança e ele mesmo apunhalou no Paço seu primo e cunhado, o duque de Viseu, irmão da rainha. Além de outros crimes que perpetrou.

Todavia, na hora extrema, D. João II arrependeu-se dos seus actos e pediu perdão por escrito à rainha, à sogra e ao cardeal de Alpedrinha (um dos mais altos dignitários católicos do tempo). E confirmou a sucessão na pessoa de seu outro primo direito e cunhado (também irmão da rainha), D. Manuel, duque de Beja, o futuro D. Manuel I.

Os textos de Rui de Pina e de Garcia de Resende constituem as únicas peças do processo relativo à morte de D. João II. Desde muito tempo antes do seu passamento que o rei sofria de males, atribuídos ao facto de ter bebido água peçonhenta na herdade da Fonte Coberta, próxima de Évora. 

«Assim enfermiço, no mez de julho de 95 nas Alcaçovas a doença do rei toma um "grande crescimento para mal, que se gastava e sumia e enfraquecia muito..." Dahi a tres mezes, a 25 de outubro "sahio-lhe a alma da carne", suum diem obiit.» (p. 61)

O envenenamento pela água das fontes obsessionou as gentes medievais até ao paroxismo da violência sanguinária. «No seculo XV na Aquitania os miseros gafos foram acusados de andar a empeçonhar as aguas, por instigação de judeus; duns e doutros se fez chacina pela forca e pelo queimadeiro.» (p. 62)

Como nota Ricardo Jorge, a ingestão de água peçonhenta em 1491 não justificaria as crises sucessivas em 1492, 1493 e 1495. Se envenenamento houvera, de que veneno se valeriam para o atentado? O grande tóxico ao tempo, e mesmo depois, era o arsénico, existente nos produtos para matar ratos. Distante a Antiguidade, em que predominavam os venenos vegetais, reinavam então os venenos minerais, à frente dos quais o rosalgar, conhecido raticida.

«Arsenicum vagum nomen est, diz magistralmente o Amato [Lusitano], porque tres arsenicos se apuram no drogário temporaneo: - o vermelho (arsen. rubeum), a sandaraca dos gregos, o bisulfureto de arsenico dos quimicos; - o amarelo (auripigmentum), oiropimento, o trisulfureto de arsenico; - o branco (arsen. album aut sublimatum), o acido arsenioso. A separação entre o acido arsenioso e os sulfuretos datava do Avicena. O termo de rosalgar (risalgalum) aplica-se mais propriamente à primeira especie, mas também é usado para a terceira, e até como apelativo comum de todos tres. Na linguagem popular portuguesa, rosalgar é o vocabulo corrente. O mais baixo e trivial nas boticas era o vermelho, o primeiro rosalgar; o oiro pimento vinha em melhor estima; apreciava-se, como a qualidade mais fina, o branco, raro e caro, provindo do oriente.» (p. 68)

«Naqueles tempos de venenismo e sortilegios, os arcanos dos envenenadores desentranhavam-se nos mais diabolicos efeitos. Matava-se a praso, deixando ao paciente meses ou anos de vida; era o venenum attemperatum, o lento, especie de contracto de passagem para o outro mundo em dia prefixado. Havia o modo fulminante, em que a droga ingerida, ou apenas respirada ou tocada, abatia de chofre a vitima. Tudo servia de vehiculo, tudo se podia impregnar de veneno mortal - as botas, os estribos, as joias, os lenços, as luvas, o sobrescrito duma carta, a chama de uma tocha, etc.» (p. 70)

«O arsenico não podia deixar de trazer-se ad rem, ao pensar-se na morte de D. João II por envenenamento. A incorrução do corpo do monarca veiu dar força á indiciação do rosalgar. Foi a primeira ideia do Camilo e o objecto da consulta feita ao dr. Carlos Lopes, que, em face dos praxistas, mostrou a invalidade do facto para a justificação da tese proposta. O dr. Silva Freitas forrageou tambem o testemunho dos mestres consagrados, extraindo identicas inferencias. A inteireza dos cadaveres é coisa relativamente frequente e devida ás causas mais banaes; por outro lado os corpos de homens ou de animais mortos pelo arsenico, se por vezes resistem á putrefacção, noutras deixam-se apodrentar e consumir como se nada fôra.» (pp. 71-2)

«É para reparar que nenhum se preocupasse com a veracidade da propinação pela agua da Fonte Coberta. O rosalgar deitado na agua sobrenada; ao beber, vê-se e sente-se. [...] Já o patriarca toxicologo, o rabino Maimonides, dizia que da agua bem pura nada ha que temer, a fraude não pode com ela.» (p. 72)

«E assim se engendra com paciencia e geito uma especie de puzzle nosografico, sem valor demonstrativo real. Nem vale a pena esmerilhá-lo. Antº de Lencastre desfaz alguns destes forçados ajustes clinicos, e entre eles a possibilidade do incomodo sofrido na Fonte Coberta ser imputavel ao arsenico. D. João refez-se depressa, e o rosalgar, quando intoxica, não dá licença a uma reposição tão pronta do pé para a mão; a ausencia de paralisias perifericas afasta tambem o arsenismo.» (pp. 73-4)

Segundo Ricardo Jorge, a nefrite crónica foi a causa real da morte de D. João II, considerando  que este diagnóstico não deixa dúvidas nem dá margem a objecções. E cita António de Lencastre: «"D. João II morreu de uremia, motivada por nefrite cronica, que não podia ser originada pelo envenenamento mesmo cronico de arsenico". Vai no andamento da doença, assiste ás suas crises evolutivas, finca o dedo nos inchaços fugazes, que "no verão de 94 assentam em mortal idropesia" como diz o cronista. A scena do desenlace em Alvor assume a nitidez dum "boletim medico", calcado sobre o depoimento do cronista. "É um quadro admiravel de uremia mista. A forma gastro-intestinal com vomitos, diarreia e soluços, alternando com a comatosa, não faltando as convulsões..." [...] O rei desesperava-se contra os acessos de modorra, dizendo nos intervalos - "Acordem-me, que não quero morrer como besta". E como esta sonação viera da supressão do fluxo, restabeleceram-no para aliviar os sentidos do enfermo. Unica coisa que fizeram com juizo. Tudo o mais foi uma serie pegada de asneiras - ida para banhos, caçada aos porcos e outras, todas autorizadas pela idiotia dos medicos cubicularios. Se algum medico ajudou a dar cabo de el-rei, foram este mata-sanos. Salvou-se das responsabilidades de tanto disparate o mestre Leão que se recusou a subscrever o ditame dos colegas e a acompanhar o regio amo até á estancia nefasta do Algarve.» (pp. 77-8-9)

Num texto gongórico mas breve, e certeiro, assim nos descrevia, há um século, o eminente higienista Ricardo Jorge, a causa da morte do Príncipe Perfeito, a partir de um capítulo do livro A Rainha D. Leonor, do Conde de Sabugosa, baseado no testemunho do dr. D. António de Lencastre.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

UM ACIDENTE

 Vi hoje pela primeira vez (depois de ter arrancado a raiz de um dente) o filme Accident (1967), de Joseph Losey, com argumento de Harold Pinter a partir do romance de Nicholas Mosley (que não li). 

O filme tem como protagonista Dirk Bogarde, sempre notável, e que tão bem conhecemos de outros filmes como O Criado (também de Losey) ou Morte em Veneza (de Visconti).

O famoso actor interpreta a figura de Stephen, professor un peu raté em Oxford, e transporta-nos para a atmosfera da velha universidade, onde as mais cruas realidades se ocultam sob a capa de grande integridade e puritanismo, onde os valores sempre exaltados da família disfarçam com dificuldade as tentações do sexo.

As relações entre as personagens são no mínimo ambíguas, como convém ao realizador e ao argumentista. Aflora mesmo uma subtil atracção homo-erótica de Stephen pelo seu aluno preferido William (desempenhado por Michael York, então ainda muito sedutor nos seus louros 25 anos), mas as relações (ou delas sugestões) visíveis são claramente hetero.

Os restantes actores compõem um magnífico elenco que confere à película a verossimilhança exigida pelo cinema de qualidade.

O acidente de automóvel, que põe termo à vida do rapaz, é uma conclusão metafórica da impossibilidade da prossecução do relacionamento que se havia estabelecido entre as principais personagens.


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

A RAINHA D. AMÉLIA

Só agora tive oportunidade de ler Rainha D. Amélia - Uma Biografia, de José Alberto Ribeiro (JAR), publicado em 2013/2019. Trata-se de um importante estudo sobre a última rainha de Portugal, figura a quem o autor tem dedicado muito do seu trabalho de investigação. Para o efeito, JAR teve oportunidade de consultar os diários privados de D. Amélia, todos redigidos em francês, que esta manteve ao longo de 65 anos da sua vida, desde que chegou a Portugal até próximo do seu falecimento em França. Os restos mortais da rainha foram trasladados para Portugal durante o Estado Novo.

Era desejo de D. Amélia que estes diários, bem como outros papéis privados fossem queimados após a sua morte, o que não aconteceu, como aliás sucede, felizmente, na maioria dos casos. Estou agora a lembrar-me de Kafka. O principal herdeiro foi seu sobrinho Henrique, conde de Paris, que recebeu o maior lote dos diários. Outro lote, mais pequeno, ficou em posse de Louis Jouve, último mordomo de D. Amélia. Os diários que são propriedade da Casa Real de Orléans estão depositados nos Arquivos Nacionais de França, em Paris. Os documentos que ficaram em posse do mordomo, diários e outros papéis, são hoje propriedade do coleccionador francês Rémi Fénérol. Regista o autor ter tido a prerrogativa de ter sido, em ambos os casos, a primeira pessoa a ter consultado estes arquivos na sua totalidade.

Relativamente aos documentos da colecção Fénérol, desejou o proprietário que algumas informações ficassem secretas até sua ulterior decisão, vontade que o autor respeitou mas que, obviamente, ao referir certos assuntos, estes nos suscitam a maior curiosidade. É o caso de revelações de D. Amélia sobre a morte do Delfim de França (Luís XVII) ou, ainda mais importante, sobre a morte do arquiduque Rodolfo de Habsburg. Sobre este último caso, refere o autor constar dos papéis de D. Amélia as dúvidas manifestadas pela imperatriz Elisabeth de Áustria (Sissi), quando visitou D. Amélia no Palácio da Pena, sobre as circunstância da morte de seu filho Rodolfo no Pavilhão de Caça de Mayerling. [Consagra a história oficial que Rodolfo, filho de Sissi e do imperador Francisco José se terá suicidado depois de ter morto com um tiro de pistola a sua presumível amante. a baronesa Maria Vetsera. Num primeiro momento, foi dito que se tratou de um acidente com a limpeza da arma, tendo Francisco José intercedido para o efeito junto do Papa, pois um suicidado não poderia ter enterro religioso o que seria um impensável escândalo para a Casa Imperial Austríaca. Depois divulgou-se a versão oficial do suicídio. Mas há a tese de que Rodolfo foi assassinado por ordem do próprio Governo austríaco (eventualmente com conhecimento do próprio pai, o imperador) quer pelo facto de ter ideias que não se coadunavam com a política da época, quer pelo facto da baronesa Maria Vetsera ser um transexual. O realizador húngaro Miklós Jancsó tem um curioso filme sobre o assunto, Vizi privati, pubbliche virtù (1976), onde aborda estas perspectivas "heterodoxas".]

Existem alguns livros publicados sobre a rainha D. Amélia, como o de Laurence Catinot-Crost, Amélie de Portugal, Princesse de France (2000) ou de Stéphane Bern, Eu, Amélia, Última Rainha de Portugal (1999), e uma vasta bibliografia onde é tratada, directa ou indirectamente,  a figura da rainha D. Amélia. Em 1914, Lucien Corpechot publicou, com a supervisão da monarca, Souvenirs sur la Reine Amélie de Portugal, com tradução portuguesa em 2007: Memórias Inéditas da Rainha D. Amélia. [Possuo, há muitos anos, a edição, ricamente ilustrada, Rainha D. Amélia, de Ayres de Sá (1928)].

Na transcrição de documentos a que procede, JAR menciona frequentemente ANP, sigla que não consta das Fontes Manuscritas mencionadas no Índice, onde figuram, por exemplo, ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo), APDVV (Arquivo do Paço Ducal de Vila Viçosa), AFDM (Arquivo da Fundação D. Manuel II), etc. Presumo que o autor se queira referir aos Archives Nationales de France (em Paris), que designa pela sigla ANF (que, pelo facto de se encontrarem em Paris, passou a designar por ANP nas Notas.

José Alberto Ribeiro procura fornecer-nos o retrato de D. Amélia e da sua época através do testemunho da própria, consagrado nos seus Diários. A transcrição segue uma ordem tendencialmente cronológica, e os escritos da rainha são intercalados por considerações do autor visando contextualizar os acontecimentos referidos. Apesar das aspas e dos parágrafos torna-se às vezes difícil distinguir o que é de D. Amélia e de JAR, tal a profusão de citações, e de compreender os parentescos (inúmeros) da soberana. Sabemos que as casas reais europeias estavam ligadas através de uma inextricável teia de casamentos, e que todos os reis e príncipes eram primos uns dos outros. Talvez tivesse sido conveniente a inclusão, em apêndice, de uma nota explicativa da família mais próxima de D. Amélia (do lado francês, já que o português é minimamente conhecido), pois as duas árvores genealógicas apresentadas no fim do volume (Casa de Orléans e Casa de Bragança) são manifestamente insuficientes. A da Casa de Orléans, além de letra minúscula é ilegível a meio, dada a costura do livro (seria preferível um desdobrável) e não dá uma ideia dos parentes mais próximos de D. Amélia e das sucessivas alterações da chefia da Casa de Orléans (no seu ramo oriundo dos Bourbons), não apresentando também a representação da Casa de Bourbon (que existe), nem da Casa Imperial de França (Bonaparte).

A descrição dos acontecimentos verificados durante o reinado de D. Amélia e no seu exílio é feita por JAR numa perspectiva de neutralidade, como é conveniente em investigação histórica, embora nem sempre aconteça. Não fiz propriamente uma leitura crítica do livro, e por isso não sou garante da autenticidade de todas as afirmações, mas saltaram-me aos olhos algumas incorrecções que seria conveniente corrigir em edições futuras.

Por exemplo, a propósito de tomadas de posição "avançadas para a época" da infanta Eulália de Espanha, está escrito (p. 215) que o rei Afonso XIII era seu tio. Mas não é verdade, era de facto seu sobrinho; na página 224 está escrito que o casamento de D. Manuel II (1913) no Palácio de Sigmaringen foi celebrado pelo cardeal-patriarca de Lisboa, monsenhor Neto. Também não é verdade. O cardeal D. José Sebastião Neto resignara de patriarca de Lisboa em 1907, retirando-se para um convento, tendo sido substituído nessa data por D. António Mendes Belo; na página 265 está escrito que o golpe militar de 25 de Maio de 1926 foi liderado pelo general Costa Gomes. Também não é verdade. O golpe militar foi em 28 de Maio e não em 25 e o general era Gomes da Costa e não Costa Gomes. Este último esteve muito mais tarde envolvido em diversas conspirações mas em 1926 ainda era uma criança.

A esposa de D. Manuel II, a princesa Augusta Vitória de Hohenzollern-Sigmaringen, é mencionada algumas vezes como rainha, o que também é incorrecto. Ao tempo do seu casamento, D. Manuel II era já ex-rei, pelo que a esposa nunca foi rainha de Portugal. Aliás, na realeza europeia, as mulheres que casaram com alguns ex-reis não passaram a usar o título de rainhas.

Existem algumas outras imprecisões, mas não é  minha intenção estar a assinalá-las aqui; tal como vários erros ortográficos na menção de nomes estrangeiros.

Mas tem muito mérito esta obra de JAR ao dar-nos a conhecer, através dos diários de D. Amélia, a sua visão do Portugal e do mundo e dos acontecimentos seus contemporâneos. A rainha foi uma das últimas representantes de uma aristocracia dos finais do século XIX e não compreendeu (certamente não poderia compreender) os "ventos de mudança" que de todos os lados sopravam. São compreensíveis as suas indignações com a forma que revestia a vida política no nosso país, nos reinados de seu sogro, de seu marido, de seu filho e no exílio. Mas o mal já vinha de trás; os portugueses não conseguiram entender-se, constitucionalmente, desde a Revolução de 1820. Lembremo-nos dos pronunciamentos do tempo de D. Maria II. O reinado de D. Pedro V foi curto, mas a instabilidade agravou-se com D. Luís e sobretudo com D. Carlos. Os monarcas não encontraram remédio para uma "conciliação" nacional. Quando D. Carlos deu plenos poderes a João Franco já era tarde e também o rei, pela forma como conduziu a sua vida, não se terá apercebido da gravidade da situação, que o levou à imprudência de atravessar o Terreiro do Paço (1908) em carro descoberto num momento em que a tensão estava ao rubro. Tinha sido publicado há pouco tempo o livro de António de Albuquerque, O Marquês da Bacalhoa, que, usando nomes supostos, atacava violentamente D. Carlos, D. Amélia (denunciando uma relação lésbica desta com a condessa de Figueiró), etc. Aliás, o próprio Afonso Costa, chefe do Partido Republicano, proclamara nas Cortes que por menos crimes que os de D. Carlos rolara no cadafalso a cabeça de Luís XVI.

O Regicídio, que foi (sabe-se hoje, pelo menos) um acto politicamente inútil, já que D. Carlos se encontrava gravemente doente, catapultou para o trono o infante D. Manuel, com 18 anos e sem qualquer experiência política, até porque era mais dedicado aos seus luxos pessoais, e j'en passe... Não conseguiu, nem conseguiria, impedir a proclamação da República, em 1910. Mesmo no exílio, e os diários de D. Amélia são disso testemunho, D. Manuel II interessou-se sempre mais pela sua vida privada do que pelos acontecimentos verificados em Portugal.

Tentou D. Manuel II, uma vez que do seu casamento com Augusto Vitória de Hohenzollern não havia nem era esperada descendência, assegurar a sucessão do trono, especialmente após a morte do herdeiro presuntivo, seu tio, o infante D. Afonso. Não havendo descendentes do ramo constitucional preenchendo os requisitos essenciais, gizou-se uma aproximação com o ramo legitimista da Casa de Bragança, chefiada por D. Miguel (II) a favor de seu filho D. Duarte Nuno. Os chamados pactos de Dover (1912) e de Paris (1922) não foram conclusivos, mas os monárquicos portugueses acabariam por aceitar D. Duarte como uque de Bragança e chefe da Casa Real Portuguesa.

Registe-se que D. Amélia visitou Portugal em 1945, a convite de Salazar, estadista que muito apreciava, pois fora capaz de pôr alguma ordem no país, depois dos buliçosos anos da Monarquia Constitucional e da I República.

Muitas e muito interessantes coisas se poderiam ainda escrever sobre este livro e sobre a época a que se refere e por isso se aconselha a sua leitura. Estudando a vida das figuras que, pelas suas funções, desempenharam papéis importantes em Portugal, aprendemos sempre mais sobre a nossa História.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

A DESTRUIÇÃO DO MUNDO CLÁSSICO PELOS CRISTÃOS

Passando há dias por uma loja da FNAC (vai longe o tempo em que frequentava diariamente alfarrabistas e livrarias, que praticamente já não existem), deparou-se-me este livro: A Chegada das Trevas - Como os Cristãos Destruíram o Mundo Clássico, de Catherine Nixey, cuja publicação, em 2018, me passou despercebida. Trata-se da tradução portuguesa de The Darkening Age: The Christian Destruction of the Classical World, editado em 2017 e de que, na altura, também não me dei conta, pois há anos que deixei de ser assinante da "New York Review of Books".

A autora não fornece propriamente novidades a quem tenha acompanhado o desmoronamento do universo cultural da Grécia Antiga e de Roma e a sua substituição progressiva pelos valores de uma nova religião oriunda do Médio Oriente (lugar fértil em promessas de salvação) mas que, contrariamente ao Judaísmo, donde provém, se empenhou num proselitismo que se estenderia ao Mundo Mediterrânico, à Europa, ao planeta inteiro.

Catherine Nixey, historiadora e jornalista, tem o mérito de organizar uma narrativa descomplexada, algumas vezes repetitiva, mas que demonstra, apoiada nos factos, a forma como os Cristãos, perseguidos durante os primeiros tempos do Império Romano (embora não tanto como a hagiologia pretende), passaram a perseguidores impiedosos dos "pagãos", não só dos indivíduos, mas dos locais de culto, dos símbolos, dos escritos, da forma de vida, de toda uma cultura multissecular que (em parte transformada, em parte assimilada pelos novos próceres) é ainda hoje a base substancialmente imperfeita da Civilização Ocidental.
 
À medida que o Cristianismo se foi implantando no mundo, a historiografia foi-se alterando. e a visão que hoje é fornecida do Cristianismo foi sendo branqueada em detrimento dos seus "ferozes" perseguidores da Época Clássica. É verdade que se deve também ao Cristianismo a transmissão de alguns dos valores do Mundo Antigo, uns por serem inapagáveis, outros porque a nova religião deles se apropriou, transformando-os às suas conveniências, outros ainda porque se registaram, em certos períodos, sobressaltos éticos que demonstraram que a herança Greco-Romana era indispensável para a própria difusão da "Boa Nova".

Durante séculos, a maioria dos historiadores hesitou em realçar os aspectos negativos que acompanharam a "epopeia" cristã. O próprio Edward Gibbon (1737-1794), que ousou salientar, na sua célebre The History of the Decline and Fall of the Roman Empire (obra colocada no Index pela Igreja  Católica), a forma como a recém-criada e crescente Hierarquia Cristã se foi apossando das convicções e dos bens do Império, haveria de declarar mais tarde ter-se arrependido de algumas considerações efectuadas nos seus escritos, tal a animosidade contra si suscitada por muitos dos seus contemporâneos e o elevado número de inimigos que concitou.
 
De facto, em Roma, como aliás na Grécia, as populações tinham os seus deuses, ainda que, especialmente nas classes mais cultas, não se acreditasse muito neles. E as diversas religiões "exóticas" eram perfeitamente toleradas (e o Império possuía muitas, oriundas das mais longínquas paragens). As perseguições romanas contra os cristãos (e não foram permanentes nem tão violentas como nos tem sido apregoado), decorreram especialmente quando os cristãos começaram a recusar a mínima aceitação dos antigos deuses, a vandalizar as suas imagens e templos, a destruir os escritos que consideravam atentórios da nova fé e, principalmente, quando começaram a a instalar-se nos postos-chaves da Administração Imperial e, numa intolerância contrária à dos "pagãos", a obrigar estes a converter-se à religião inicialmente "revelada" por Moisés, na Judeia,  e pregada depois por Paulo (chamado o Apóstolo das Gentes) em nome de Jesus Cristo, um homem que nunca se proclamou criador de qualquer religião mas tão só um judeu dissidente dos ensinamentos das numerosas seitas judaicas então existentes
naquela região que, ainda hoje, continua a ser um local de controvérsia entre os povos. 

Não seria possível descrever aqui o percurso que Catherina Nixey nos propõe no seu livro, pelo que anotarei apenas alguns aspectos que me pareceram mais interessantes.
 
O primeiro ataque violento contra o Cristianismo terá sido talvez de Celso (filósofo grego do século II), e, em consequência, a sua obra praticamente desapareceu. Mas ironicamente, muitas das suas palavras sobreviveram. Isto porque um apologista cristão, Orígenes de Alexandria (185?-253?) escreveu uma volumosa obra, Contra Celsum, em que para melhor contestar a argumentação de Celso a refuta pormenorizadamente, dando-nos assim a conhecer o que teria escrito o filósofo grego. Não pretendendo entrar na longa discussão sobre esta matéria, dir-se-á tão só que Celso considerava que os ensinamentos expostos no Antigo Testamento (por Moisés) eram contraditórios com a própria palavra de Jesus, o qual seria um mensageiro de Deus encarregado de condenar as suas próprias leis. (p. 67)

Algumas décadas depois de Celso ter escrito a sua notável dissertação, um outro filósofo grego, Porfírio de Tiro (234?-304?) escreveu uma obra, dividida em 15 livros, Contra os Cristãos, de que só restam fragmentos, pelas razões já aduzidas, para mais sustentadas na opinião do imperador entretanto cristão, Constantino, que o descreveu como "inimigo da piedade" e autor de "tratados licenciosos contra a religião".

«Os observadores cristãos fitavam a tolerância dos seus vizinhos não-cristãos com espanto. Santo Agostinho maravilhou-se, mais tarde, com o facto de os pagãos serem capazes de adorar muitos deuses diferentes sem discórdia, ao passo que os cristãos, que adoravam apenas um, se dividiam em inúmeras facções adversárias.» (p. 79)
 
Abria-se uma nova era. Adorar outro deus não era ser-se apenas  diferente. Era errar. E os que erravam deviam ser apanhados golpeados e - se necessário - feridos. Acima de tudo, deviam ser parados. «"Não há nada de errado", escrevera Celso, "se cada nação observar as suas próprias leis de adoração". Para muitos dos mais influentes pensadores da Igreja Cristã, nada poderia ser mais abominável.» (p. 81)

Um dos outros temas dominantes da propaganda cristã é o mito dos mártires. Em 64 a cidade de Roma ardeu largamente. Para arranjar um culpado (há quem atribua o incêndio ao próprio Nero, o que é duvidoso), o imperador decidiu culpar os cristãos, praticantes de um novo culto que Tácito descreveu como uma "perniciosa superstição". Certamente muitos cristãos foram mortos, queimados vivos ou lançados às feras, o que alimentou substancialmente a lenda dos mártires, nomeadamente após a publicação do romance Quo Vadis (1895) do escritor polaco Henryk Sienkiewicz, que em 1905 receberia o Prémio Nobel da Literatura. O romance, tornado num best-seller, foi várias vezes passado ao cinema, com especial destaque para a produção de 1951, realizada por Mervyn Le Roy e interpretada por Robert Taylor, Deborah Kerr, Leo Genn e Peter Ustinov. No entanto, as perseguições contra os cristãos não foram sistemáticas e, segundo as mais recentes investigações históricas, o número de mártires geralmente apontado é manifestamente exagerado e os suplícios a que foram submetidos devem muito à imaginação dos escribas.
 
Verificou-se também em muitos lugares, e ao longo destes tempos, um grande desejo de alguns cristãos ascenderem ao martírio. Não o logrando, praticavam o suicídio, tendo-se mesmo formado grupos com essas intenções, especialmente no Norte de África, que ficaram conhecidos como circunceliões.
 
Um dos grandes atentados dos cristãos contra a cultura clássica foi a destruição, em 392, do Templo de Serápis, em Alexandria. O deus Serápis fora introduzido no Egipto pelos Ptolemeus, desejosos de combinarem a antiga religião faraónica com a mitologia grega. Neste templo, situado próximo do lugar onde hoje ainda se ergue a chamada Coluna de Pompeu [e onde eu estive algumas vezes] reuniam-se os livros que sobraram do incêndio e destruição da antiga Biblioteca de Alexandria e peças do Museu adjacente. Naquela data, uma turbamulta de cristãos, comandada pelo Patriarca Teófilo, procedeu à destruição do templo e do seu conteúdo, sem esquecer as obras artísticas que foram roubadas. Citando Luciano Canfora, num livro sobre a Biblioteca de Alexandria [que eu possuo mas que não tenho agora ocasião de procurar], a autora escreve: «Queimar livros foi parte do advento e da imposição do Cristianismo». (p. 121)
 
 «Mas olhe-se por um momento para a disseminação do Cristianismo a partir do outro lado e o que emerge é uma imagem bem menos fácil. Não é nem triunfante, nem alegre. É uma história de conversão forçada e de perseguição do governo. É uma história em que grandes obras de arte são destruídas, edifícios são desfigurados e as liberdades são abolidas. É uma história em que aqueles que se recusavam a converter eram proscritos e, à medida que a perseguição se adensava, eram caçados e até executados pelas autoridades zelosas. As breves e esporádicas perseguições romanas aos cristãos não são nada em comparação com que os cristãos infligiram aos outros - já para não falar do que infligiram aos seus próprios heréticos. Se isto parece implausível, considere-se um simples facto. No mundo de hoje, existem mais de dois mil milhões de cristãos. Não existe um único verdadeiro "pagão". As perseguições romanas deixaram um Cristianismo suficientemente vigoroso não só para sobreviver, como para prosperar e para assumir o controlo do império. Por outro lado, quando as perseguições cristãs terminaram finalmente, todo um sistema religioso fora praticamente varrido da face da Terra.» (p. 134)
 
«As páginas da história podem ignorar esta destruição, mas a pedra é menos esquecida. Visite a sala 18 do Museu Britânico de Londres [já a visitei] e ver-se-á perante os mármores do Parténon, levados da Grécia por Lorde Elgin no século XIX. As espantosas estátuas de aparência realista estão, hoje, num estado terrível: muitas foram mutiladas ou faltam-lhes membros. Tal, presume-se frequentemente, ocorreu por culpa dos trabalhadores desajeitados de Lorde Elgin ou dos confrontos que ocorreram durante a ocupação otomana. E, de facto, em parte - mas só em parte - isso é verdade. Em grande medida, a destruição resultou do trabalho dos zelosos cristãos que percorreram o templo com instrumentos rombos, atacando os deuses "demoníacos", mutilando algumas das estátuas mais belas que a Grécia alguma vez produzira.» (p. 137)
 
«No Museu de Palmira existia, pelo menos até à recente ocupação da cidade pelo Estado Islâmico, a figura mutilada e reconstruída da outrora grandiosa figura de Atena que havia dominado o templo da cidade. Uma enorme cova no rosto outrora belo foi tudo o que restou , depois de o nariz lhe ter sido arrancado [ainda vi essa estátua no Museu, antes da invasão do Daesh]. Um livro recente acerca da destruição das estátuas pelos cristãos, que se concentra apenas no Egipto e no Próximo Oriente, chega quase às trezentas páginas carregadas de imagens de mutilação. (Making and Breaking the Gods: Christian Responses to Pagan Sculpture in Late Antiquity, de Troels Myrup Kristensn)» (p. 138)
 
Depois da "conversão" do imperador Constantino ao cristianismo, este tornou-se numa religião plenamente aceitável no Império. Mas o paganismo manteve-se, ainda que os cristãos prosseguissem a sua acção de progressivo apossamento dos lugares chaves, seguindo o exemplo do Imperador que, embora não renunciando às suas prerrogativas como Pontifex Maximo, educou os seus filhos na nova religião.
 
O imperado Juliano, chamado posteriormente o "Apóstata", pois não se tornou cristão como os seus antecessores, pretendeu restabelecer os cultos antigos e combater as novas ideias totalitárias que, sincera ou hipocritamente, iam ganhando os espíritos e se lhe afiguravam perigosas. Morreu assassinado, talvez por um escravo cristão, e com a sua morte esfumaram-se definitivamente as esperanças de restaurar os deuses da Antiga Roma. Sobre Juliano, homem de extraordinária cultura clássica e de refinados costumes, o último imperador romano dotado de vasta sabedoria, escreveu Gore Vidal, em 1964, um notável romance, Julian, que a todos os títulos se recomenda e de que existe tradução portuguesa.
 
Mas a grande tragédia para os pagãos ocorreu com Teodósio I, que em 391 proibiu o culto pagão: "Pessoa alguma terá o direito de realizar sacrifícios; pessoa alguma se aproximará dos templos;  pessoa alguma prestará reverência aos altares" (p. 142). 
 
Confortados com os favores imperiais, os bispos cristãos prosseguiram a política de combate aos pagãos e de destruição dos seus templos e escritos.  Martinho de Tours mandou incendiar templos, Bento de Núrsia, ao chegar ao Monte Cassino, começou por destruir o santuário de Apolo, João Crisóstomo (Boca de Ouro) incentivava o povo de Antioquia a campanhas da maior violência.
 
O requisitório da autora é extenso e pormenorizado. Anotarei ainda as destruições levadas a cabo contra santuários pagãos em Cartago e os estragos infligidos nos templos do Egipto faraónico. [Eu mesmo tive ocasião de ver, por mais de uma vez, certas pinturas apagadas nas colunas de Luxor ou de Karnak que representavam imagens não conformes ao cristianismo nascente. Por exemplo, todas as figuras do deus itifálico Min foram raspadas até à altura alcançável pelas escadas dos cristãos. Olhando uns metros mais acima, ainda podemos contemplar algumas dessas representações].
 
Catherine Nixey refere um episódio que estudei e que sempre me perturbou. O assassinato pelos cristãos da famosa Hipácia, célebre filósofa e matemática de Alexandria, em 415, por instigação do sinistro patriarca Cirilo de Alexandria, então em conflito com o governador romano Orestes. Hipácia era a última representante dessa plêiade de filósofos e sábios que haviam tornado aquela cidade, desde os tempos da Biblioteca e do Museu, o grande centro intelectual da época. E que eram, naturalmente, pagãos. Diz Kathleen Wider que o assassinato de Hipácia "marcou o fim da Antiguidade Clássica". E escreve Stephen Greenblat que essa morte "representou efectivamente a queda da vida intelectual de Alexandria" [Tenho dois bons livros sobre Hipácia: Hipátia de Alexandria, de Maria Dzielska (tradução portuguesa) e Hypatia, de Arnulf Zitelmann (em francês)].

«O hábito de queimar livros gozou de uma longa história. Um milénio mais tarde, o pregador italiano Savonarola queria que as obras dos poetas amorosos latinos Catulo, Tibulo e Ovídio fossem banidas, enquanto outro pregador dizia que todos estes "livros vergonhosos" deveriam ser abandonados, "porque se forem cristãos são obrigados a queimá-los".» (p. 190)

Amiano Marcelino (330-391) escreve (The Later Roman Empire) que «inúmeros livros e pilhas inteiras de documentos, que haviam sido retirados de diversas casas, foram empilhados e queimados sob os olhos dos juízes. Foram tratados como textos proibidos, para mitigar a indignação provocada pelas execuções, embora se tratasse, n sua maioria, de tratados sobre diversas artes liberais e sobre jurisprudência.» (p. 194)

«Muito da literatura clássica foi preservado pelos cristãos. Ainda mais não o foi. Para sobreviverem, os manuscritos precisavam de ser cuidados, recopiados. Os clássicos não o foram. Os monges medievais, numa altura em que o pergaminho era dispendioso e o conhecimento clássico tido em pouca conta, limitavam-se a pegar em pedra-pomes e a raspar da página as últimas cópias das obras clássicas. Rohmann realçou que existem provas que sugerem que, em alguns casos, "conjuntos inteiros de obras clássicas foram deliberadamente escolhidos para serem apagados e escritos por cima por volta de 700 dC., frequentemente com textos da autoria dos Pais da Igreja ou com textos legais que criticavam ou baniam a literatura pagã". Plínio, Plauto, Cícero, Séneca, Virgílio, Ovídio, Lucano, Lívio e muitos, muitos mais: todos foram raspados pelas mãos dos crentes.» (p. 196)

São João Crisóstomo foi exímio em controlar os costumes determinados pelas suas leis. «Estas leis eram mais fáceis de fazer do que de policiar. Como poderiam os cristãos saber o que se passava por trás das portas fechadas? Num infame sermão, São João Crisóstomo encontrou a solução: os membros das congregações cristãs deviam espiar-se uns aos outros. Deviam observar os restantes elementos da congregação em busca de pecadores - e por "pecadores" refiro-me a pessoas que se atrevessem a ir ao teatro - e quando os encontrassem, deviam caçá-los e humilhá-los, entregá-los.» (p. 238). As polícias secretas dos nossos dias talvez se tenham inspirado neste santo particularmente venerado pela Igreja.
 
O imperador Justiniano foi implacável na sua perseguição a judeus, pagãos e heréticos e interveio em todos os negócios da Igreja a fim de mantê-la sob o seu controlo como sustentáculo do Império. Em 529, fechou a Academia de Platão, em Atenas, o último baluarte do paganismo. Em 540 extinguiu o Talmude das sinagogas.  Em 550 mandou destruir uma parte dos frisos do templo de Ísis, na ilha de Philae, o último reduto dos mistérios egípcios.
 
As consequências das determinações de Justiniano foram colossais. O filósofo Damáscio, o último dos neoplatónicos, que dirigia a Academia de Atenas foi obrigado a exilar-se. Foram estas leis de Justiniano que levaram o já citado Edward Gibbon a «declarar que "as invasões bárbaras tinham sido menos prejudiciais à filosofia ateniense do que o Cristianismo".» (p. 264)
 
Damáscio, que trocara Alexandria por Atenas devido ao clima sufocante provocado pelos cristãos, abandonava agora esta cidade (532), viajando para a Pérsia, seduzido pela fama (indevida) de grande erudito que seria o rei Cosroes. 
 
Mas com o encerramento da Academia a filosofia ateniense estava acabada. E a Idade das Trevas começou a descer sobre a Europa.
 
Registei alguns aspectos que me pareceram mais significativos desta obra, mas é imenso o que fica por dizer. 
 
Há, todavia, alguns reparos à edição. O primeiro refere-se à tradução (de Pedro Carvalho e Guerra) e à revisão de Goodspell (ignoro se é um tradutor automático). Os primeiros capítulos evidenciam uma prosa pouco fluente mas com a continuação o discurso melhora substancialmente. Uma coisa inexplicável é o facto de no Índice se mencionarem os capítulos pelos seus números, omitindo o nome de cada um. Apenas alguns pontos merecendo correcção: na página 23, onde se refere 532 a.C. é 532 d.C.; na página 47, onde está escrito William Blakeish, deveria estar William Blake; na página 117, onde se menciona 39 d.C. deveria estar 392 d.C; na página 137, onde se lê "uma estátua maior do que a vida de Afrodite", presume-se que seja #uma estátua de Afrodite maior do que o tamanho natural", mas não conheço o original. E na página 173 a referência a um "Cármen" de Catulo dispensaria proveitosamente o acento no "a".

Deve acrescentar-se ainda (mérito da autora) a exaustiva bibliografia inserida no fim do volume, quer de fontes primárias, quer de fontes secundárias, que muito contribui para ulteriores consultas dos interessados na matéria.