sexta-feira, 1 de outubro de 2021

A MORTE DE D. JOÃO II

Folheei hoje O Obito de D. João II (sic), de Ricardo Jorge, obra publicada em 1922. A morte do monarca em Alvor (1495) tem suscitado muitas interrogações, e várias têm sido as suspeitas de que a mesma fosse devida a envenenamento.

Começa o autor, famoso médico, investigador e professor, por fazer desfilar perante nós uma série de envenenamentos de figuras históricas, supostamente autênticos, recorrendo contudo ao dito de espírito de Alfred  de Vigny: "duas coisas se contestam o mais das vezes aos reis, a nascença e a morte, negando-se-lhes que uma seja legítima e a outra natural".

[Entretanto, descobri um erro. Ricardo Jorge escreve que em 1643 Luís XII teria morrido envenenado, mas quem morreu em 1643 foi Luís XIII.]

A morte do príncipe D. Afonso (1475-1491), na ribeira de Santarém, privara D. João II do seu filho e herdeiro, levando-o a diligenciar passar a herança régia para o bastardo D. Jorge de Lancastre (1481-1550), duque de Coimbra, filho de Ana de Mendoça. A esta tentativa se opôs denodadamente a rainha D. Leonor, que até recebera o bastardo na Corte e o educara juntamente com o filho. Mas a sucessão do trono pelo bastardo, não.

Muita gente quis mais tarde imputar a D. Leonor (a benemérita rainha) a responsabilidade da morte do marido. Até Camilo, atribuindo-a concretamente ao mestre judeu João do Porto, médico da rainha. Nestas histórias de soberanos estranhamente mortos aparecem sempre figuras de médicos, cuja intervenção Ricardo Jorge veementemente contesta, quanto à maioria dos casos, embora não deixe de lembrar os inúmeros assassinatos que foram imputados à vontade de Filipe II. Mas no caso em apreço não se verificou, de facto, um conjugicídio.  

Importa não esquecer neste momento que, prosseguindo uma política de centralização real, D. João II conseguiu que fosse ordenada a decapitação do duque de Bragança e ele mesmo apunhalou no Paço seu primo e cunhado, o duque de Viseu, irmão da rainha. Além de outros crimes que perpetrou.

Todavia, na hora extrema, D. João II arrependeu-se dos seus actos e pediu perdão por escrito à rainha, à sogra e ao cardeal de Alpedrinha (um dos mais altos dignitários católicos do tempo). E confirmou a sucessão na pessoa de seu outro primo direito e cunhado (também irmão da rainha), D. Manuel, duque de Beja, o futuro D. Manuel I.

Os textos de Rui de Pina e de Garcia de Resende constituem as únicas peças do processo relativo à morte de D. João II. Desde muito tempo antes do seu passamento que o rei sofria de males, atribuídos ao facto de ter bebido água peçonhenta na herdade da Fonte Coberta, próxima de Évora. 

«Assim enfermiço, no mez de julho de 95 nas Alcaçovas a doença do rei toma um "grande crescimento para mal, que se gastava e sumia e enfraquecia muito..." Dahi a tres mezes, a 25 de outubro "sahio-lhe a alma da carne", suum diem obiit.» (p. 61)

O envenenamento pela água das fontes obsessionou as gentes medievais até ao paroxismo da violência sanguinária. «No seculo XV na Aquitania os miseros gafos foram acusados de andar a empeçonhar as aguas, por instigação de judeus; duns e doutros se fez chacina pela forca e pelo queimadeiro.» (p. 62)

Como nota Ricardo Jorge, a ingestão de água peçonhenta em 1491 não justificaria as crises sucessivas em 1492, 1493 e 1495. Se envenenamento houvera, de que veneno se valeriam para o atentado? O grande tóxico ao tempo, e mesmo depois, era o arsénico, existente nos produtos para matar ratos. Distante a Antiguidade, em que predominavam os venenos vegetais, reinavam então os venenos minerais, à frente dos quais o rosalgar, conhecido raticida.

«Arsenicum vagum nomen est, diz magistralmente o Amato [Lusitano], porque tres arsenicos se apuram no drogário temporaneo: - o vermelho (arsen. rubeum), a sandaraca dos gregos, o bisulfureto de arsenico dos quimicos; - o amarelo (auripigmentum), oiropimento, o trisulfureto de arsenico; - o branco (arsen. album aut sublimatum), o acido arsenioso. A separação entre o acido arsenioso e os sulfuretos datava do Avicena. O termo de rosalgar (risalgalum) aplica-se mais propriamente à primeira especie, mas também é usado para a terceira, e até como apelativo comum de todos tres. Na linguagem popular portuguesa, rosalgar é o vocabulo corrente. O mais baixo e trivial nas boticas era o vermelho, o primeiro rosalgar; o oiro pimento vinha em melhor estima; apreciava-se, como a qualidade mais fina, o branco, raro e caro, provindo do oriente.» (p. 68)

«Naqueles tempos de venenismo e sortilegios, os arcanos dos envenenadores desentranhavam-se nos mais diabolicos efeitos. Matava-se a praso, deixando ao paciente meses ou anos de vida; era o venenum attemperatum, o lento, especie de contracto de passagem para o outro mundo em dia prefixado. Havia o modo fulminante, em que a droga ingerida, ou apenas respirada ou tocada, abatia de chofre a vitima. Tudo servia de vehiculo, tudo se podia impregnar de veneno mortal - as botas, os estribos, as joias, os lenços, as luvas, o sobrescrito duma carta, a chama de uma tocha, etc.» (p. 70)

«O arsenico não podia deixar de trazer-se ad rem, ao pensar-se na morte de D. João II por envenenamento. A incorrução do corpo do monarca veiu dar força á indiciação do rosalgar. Foi a primeira ideia do Camilo e o objecto da consulta feita ao dr. Carlos Lopes, que, em face dos praxistas, mostrou a invalidade do facto para a justificação da tese proposta. O dr. Silva Freitas forrageou tambem o testemunho dos mestres consagrados, extraindo identicas inferencias. A inteireza dos cadaveres é coisa relativamente frequente e devida ás causas mais banaes; por outro lado os corpos de homens ou de animais mortos pelo arsenico, se por vezes resistem á putrefacção, noutras deixam-se apodrentar e consumir como se nada fôra.» (pp. 71-2)

«É para reparar que nenhum se preocupasse com a veracidade da propinação pela agua da Fonte Coberta. O rosalgar deitado na agua sobrenada; ao beber, vê-se e sente-se. [...] Já o patriarca toxicologo, o rabino Maimonides, dizia que da agua bem pura nada ha que temer, a fraude não pode com ela.» (p. 72)

«E assim se engendra com paciencia e geito uma especie de puzzle nosografico, sem valor demonstrativo real. Nem vale a pena esmerilhá-lo. Antº de Lencastre desfaz alguns destes forçados ajustes clinicos, e entre eles a possibilidade do incomodo sofrido na Fonte Coberta ser imputavel ao arsenico. D. João refez-se depressa, e o rosalgar, quando intoxica, não dá licença a uma reposição tão pronta do pé para a mão; a ausencia de paralisias perifericas afasta tambem o arsenismo.» (pp. 73-4)

Segundo Ricardo Jorge, a nefrite crónica foi a causa real da morte de D. João II, considerando  que este diagnóstico não deixa dúvidas nem dá margem a objecções. E cita António de Lencastre: «"D. João II morreu de uremia, motivada por nefrite cronica, que não podia ser originada pelo envenenamento mesmo cronico de arsenico". Vai no andamento da doença, assiste ás suas crises evolutivas, finca o dedo nos inchaços fugazes, que "no verão de 94 assentam em mortal idropesia" como diz o cronista. A scena do desenlace em Alvor assume a nitidez dum "boletim medico", calcado sobre o depoimento do cronista. "É um quadro admiravel de uremia mista. A forma gastro-intestinal com vomitos, diarreia e soluços, alternando com a comatosa, não faltando as convulsões..." [...] O rei desesperava-se contra os acessos de modorra, dizendo nos intervalos - "Acordem-me, que não quero morrer como besta". E como esta sonação viera da supressão do fluxo, restabeleceram-no para aliviar os sentidos do enfermo. Unica coisa que fizeram com juizo. Tudo o mais foi uma serie pegada de asneiras - ida para banhos, caçada aos porcos e outras, todas autorizadas pela idiotia dos medicos cubicularios. Se algum medico ajudou a dar cabo de el-rei, foram este mata-sanos. Salvou-se das responsabilidades de tanto disparate o mestre Leão que se recusou a subscrever o ditame dos colegas e a acompanhar o regio amo até á estancia nefasta do Algarve.» (pp. 77-8-9)

Num texto gongórico mas breve, e certeiro, assim nos descrevia, há um século, o eminente higienista Ricardo Jorge, a causa da morte do Príncipe Perfeito, a partir de um capítulo do livro A Rainha D. Leonor, do Conde de Sabugosa, baseado no testemunho do dr. D. António de Lencastre.

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