sexta-feira, 1 de novembro de 2019

ISABEL DE PORTUGAL



Tendo lido há dias Quatro Últimas Canções, de Vasco Graça Moura, que repousava numa das minhas estantes desde a sua aquisição (o tempo, ou a falta dele, obriga-nos a rigorosas selecções), como referi aqui, ao arrumá-lo agora reparei que ao lado se encontrava, do mesmo autor e também ainda não lido, Retratos de Isabel e outras tentativas, publicado em 1994, e que curiosamente não figura na relação das obras de VGM na Wikipédia.

Trata-se de um conjunto de ensaios, o mais relevante e que dá o título ao livro sobre D. Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I, mulher do imperador Carlos-Quinto e mãe de Filipe II. O livro inclui reproduções de retratos da imperatriz, executados por Jos Van Cleve, Jan Cornelis Vermeyen, Jakob Seisenegger, Peter de Jode, Rubens (cópia de um quadro desaparecido do Ticiano) e do próprio Ticiano, entre os quais a famosa pintura que se encontra no Museu do Prado e que o artista realizou já depois da morte da soberana.

É um facto que D. Isabel era uma senhora de extraordinária formosura, a quem o marido dera como divisa "As Três Graças": a beleza, o amor e a fecundidade. Ela foi a grande paixão de Carlos-Quinto, que depois da sua morte (a esposa morreu prematuramente com 35 anos) nunca mais vestiu outra cor que não o preto.

Isabel de Portugal, pelo Ticiano

Ficou célebre uma frase do Duque de Gandia (depois São Francisco de Borja) que viu o corpo já decomposto de D. Isabel, quando ele chegou ao Panteão Real de Granada, ido de Toledo, para ser sepultado (os restos mortais encontram-se hoje na cripta do Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial): «Nunca mas, nunca mas servir a Señor que se me pueda morir!». A partir desta exclamação, verdadeira ou lendária, Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu o seguinte poema:


MEDITAÇÃO DO DUQUE DE GANDIA SOBRE A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória a luz o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

(A relação sentimental que o poema deixa entrever entre São Francisco de Borja e a imperatriz não assenta em base histórica)

Carlos-Quinto e Isabel de Portugal, de Rubens, a partir de um retrato de Ticiano


* * *


Os outros ensaios do livro, com graus diferentes de interesse, referem-se ao pintor Vasco Fernandes (Grão Vasco), às linhas divisórias dos Descobrimentos entre Portugal e a Espanha, às tapeçarias de D. João de Castro (com ilustrações), denotações de majestade nos retratos, Camões e os Descobrimentos, Camões e uma concepção da Europa, Fernando Pessoa e Camões, etc.

1 comentário:

Anónimo disse...

O poema de Sophia,dito pela própria,é sem exageros, uma das mais belas e emocionantes experiências da minha vida de atenção ao que realmente conta.
Figurava no pequeno EP da Valentim de Carvalho dos anos 5o/60, e estupidamente foi excluido da actual reedição em CD. Acho que ainda está disponivel no Youtube,que reproduz a antiga edição. Ter tambem tido o privilégio de a ouvir pessoalmente, ainda reforçou o meu "encanto". Alem disso, dum modo geral o amor não tem em Sophia um sentido meramente lúbrico ou carnal,pelo que não acho que o tom do poema nessa área tenha nada de despropositado.