quinta-feira, 22 de setembro de 2016
O BURKINI: PRÓS E CONTRAS
O programa televisivo "Prós e Contras" da passada segunda-feira foi dedicado à recente polémica em França sobre a permissão do uso do burkini. Não costumo ver este programa, aliás raramente vejo televisão, mas voz amiga chamou-me a atenção para o tema tratado esta semana. Por isso, ontem decidi-me repescá-lo para observar os comentários dos participantes.
Começo por declarar que subscrevo, na generalidade, as intervenções de Faranaz Keshavjee e de Miguel Vale de Almeida e que discordo, na generalidade, das intervenções de André Freire e de Inês Pedrosa. Pareceu-me, também, muito oportuna a declaração, a partir da plateia, de José Vera Jardim, presidente da Comissão da Liberdade Religiosa.
O assunto em apreço é simultaneamente muito simples e muito complexo. Tentarei alinhar algumas considerações que à discussão importam. E situá-las no teatro de operações que foi convocado para essa discussão, a Europa, já que trazer à colação a Arábia Saudita, como fez Inês Pedrosa, me parece fora do contexto.
Em primeiro lugar, não compete aos Estados determinar como os cidadãos se vestem (ou se despem). Mais do que ao gosto e conveniência de quem os usa, os trajos estão especialmente submetidos à ditadura da moda e do mercado. Já nem o sexo é determinante das normas de trajar desde que grande parte das mulheres passou a usar calças. E embora não seja habitual ver homens de saias, não creio possam ser presos por usá-las. Os limites decorrem dos imperativos constitucionais. Assim, é proibida ao cidadão a ausência de vestuário (o nu integral é permitido nas praias, mas só em algumas), como deve ser proibido o uso de burka, pela simples razão que esta peça de indumentária oculta completamente o rosto, impedindo a identificação do portador.
Portanto, o clamor verificado em França, nomeadamente na Côte d'Azur, devido à presença de mulheres, presumivelmente muçulmanas, usando burkini, é perfeitamente ridículo, e a proibição decretada por alguns presidentes de câmara decorre quer da alucinação dos edis, quer da presunção de ganhos eleitorais. Esteve bem o Conselho de Estado ao invalidar essas proibições, por serem contrárias à lei, e ao bom senso.
O burkini não constitui qualquer ameaça à segurança, não representa uma escalada do islamismo radical, nem é atentatório dos "bons costumes". Ainda não há muitos anos, em pleno Ocidente civilizado, as mulheres eram proibidas de se apresentarem nas praias demasiado despidas; agora, são proibidas por estarem demasiado vestidas. O relativismo da moral ocidental.
Ouvi várias vezes no programa a invocação dos "nossos valores". Mas o que são os nossos valores, se é que existe agora no Mundo Ocidental algum valor que não seja o do dinheiro?
As mulheres muçulmanas têm todo o direito de se passearem na Europa de véu, hijab ou niqab, como as mulheres europeias se passeiam no mundo árabo-islâmico "ocidentalmente" vestidas. Ressalvam-se países como a Arábia Saudita, o Irão e poucos mais, mas constituem, apenas pelas piores razões, a excepção que confirma a regra.
Mesmo em Portugal, não vai longe o tempo em que as mulheres não iam para a rua de cabeça descoberta. Vivendo em Lisboa, recordo-me de minha mãe que, durante muitos anos, punha na cabeça um lenço, se saía para uma volta perto de casa, ou um chapéu, se ia à Baixa, a um teatro, ou jantar fora. E só nos últimos anos da sua vida minha mãe passou a sair de casa de cabeça descoberta. E recordo-me também, no tempo em que passava férias no campo com os meus pais, de ver todas as mulheres com lenço na cabeça.
Argumentou-se, igualmente, no debate, que o uso do burkini configurava uma provocação, uma afirmação ostensiva dos valores islâmicos. E porque não? Não foi de uso corrente, até há muito pouco tempo (e ainda hoje) homens e mulheres usarem ao pescoço um fio com um crucifixo pendente? E os sikhs não se deslocam de turbante nos Estados Unidos ou no Reino Unido?
Eu preferia, por convicção íntima, que não se fizesse exibição pública de símbolos religiosos. Mas aceito que, tal como os cristãos, cidadãos de crenças não cristãs (no caso vertente, muçulmanos), já europeus ou ainda migrantes, queiram afirmar a sua identidade no momento em que se assiste a uma campanha anti-islâmica na Europa, a pretexto de actos terroristas praticados por indivíduos supostamente muçulmanos. E haveria aqui lugar para outra questão, mas isso seria outra conversa, a de saber as origens do "radicalismo islâmico". Trata-se de uma radicalização do Islão, como afirma o meu amigo Gilles Kepel, ou de uma islamização do radicalismo, como sustenta Olivier Roy, ambos famosos islamólogos franceses. Perfilho a segunda hipótese.
Como não pretendo alongar o texto - já escrevi mais do que o previsto - terminarei com uma consideração porventura lateral, mas indissociável. Proclama-se que o Islão está em guerra com o Ocidente. Desde que Samuel Huntington (sabe-se lá porquê ???) sustentou a tese do "clash of civilizations" que não deixou de se falar no assunto. Opinião não surpreendentemente partilhada pelo centenário islamólogo anglo-americano Bernard Lewis, um grande crítico de Edward Saïd. Não penso que haja uma "guerra" do Islão contra o Cristianismo, apesar do termo "cruzada" ter sido utilizado pelo inominável George Bush após os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001. Mas concedo que existe por parte dos árabes (mais propriamente daquilo a que se convencionou chamar a rua árabe) um sentimento de desconforto relativamente aos europeus, primeiro, e também aos americanos, depois.
Recordemos. Ainda antes do desmoronamento do Império Otomano, quando o general Bonaparte em 1798 invadiu o Egipto, começou a chamada Questão do Oriente. Os ingleses substituíram os franceses, que foram depois ocupar o Marrocos e a Tunísia, mais tarde protectorados, e a Argélia, que se tornou uma província francesa. Os italianos ocuparam a Líbia. Após a Primeira Guerra Mundial, e sobre os escombros otomanos, com os Acordos Sykes/Picot e a Declaração Balfour ingleses e franceses partilharam o Médio Oriente e criaram o Estado de Israel. O conflito israelo/palestiniano permanece até hoje e a invasão anglo-americana do Iraque, em 2003, foi a cereja em cima do bolo do neo-colonialismo ocidental, com a pretensão estulta de exportar a democracia e o falso pretexto das armas de destruição maciça. Depois, as "primaveras árabes", aparentemente louváveis mas habilmente comandadas do exterior, consolidaram a insegurança e o caos. O ataque anglo-americano-francês à Líbia transformou o país do discutível Qaddafi num território sem governo e sem lei, abrindo a fronteira sul a todos os movimentos da África sub-sahariana. A intervenção camuflada dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia, Arábia Saudita, Turquia, Irão, Qatar, etc., na guerra civil que há cinco anos destrói a Síria, transformou uma revolta popular num conflito de proporções inimagináveis. De tudo isto nasceu o Daesh (ou ISIS), armado pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita, e que se revela um pesadelo intra e extra-muros.
Nestas circunstâncias, quem pode admirar-se da vaga de imigrantes que demanda a Europa. As vítimas do Iraque, da Síria, da Líbia, entre mortos, feridos e deslocados contam-se já por vários milhões. A Europa, não as suas populações, a não ser pelos dirigentes que elegem, mas pelos governos dos seus países, é cúmplice desta chacina contemporânea.
Eu sei que é difícil para os europeus receberem tanta gente, mas não vale a pena erguerem muralhas, pois, como afirmou Umberto Eco, já em 1997, no Convénio sobre as Perspectivas do Terceiro Milénio, organizado pelo Município de Valência, « Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com o chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem "colorado". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma.» [Tradução portuguesa publicada em Cinco Escritos Morais (1998)].
Os europeus terão de conviver com esta situação, serão obrigados a compreendê-la. Espanta que governos ditos socialistas, como o francês, disputem à extrema-direita a ofensiva anti-muçulmana. Não ganharão votos por causa disso, pois é sempre preferível o original à cópia. E a Frente Nacional, que passou oportunamente de anti-semita a anti-islâmica, acabará por encontrar uma fórmula que lhe permita a aceitação dos muçulmanos tal como já operou uma prudente viragem a favor dos homossexuais.
Regressando ao burkini, em nada ele fere a laicidade ou os "nossos valores". Acima de tudo, reclama-se bom senso e bom gosto, a fim de que o tempo, esse grande escultor, possa encontrar a solução mais adequada.
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3 comentários:
Concordo na generalidade consigo.
Mas as portuguesas usavam muito o lenço por causa do cabelo (ir à cabeleireira todas as semanas era caro...), que sempre foi mais difícil de cuidar que o nosso. E também como forma de se defenderem do vento, nas estações mais desagradáveis (a fonte foi a minha mãe).
De há muito tempo leitor do seu blog, permita-me que o felicite pela sua voz equilibrada e, sobretudo bem documentada e informada, sobre um assunto que, à partida, tem tudo para se tornar polémico.
Parabéns!
http://www.zerohedge.com/news/2016-10-03/france-ticking-time-bomb-islamization
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