sexta-feira, 30 de setembro de 2016

ANDRÉ GIDE, O CONTEMPORÂNEO CAPITAL




Por razões que não vêm ao caso, acabei de reler por estes dias Si le grain ne meurt, de André Gide. Livro publicado em 1926, nele o autor recorda a sua vida desde que nasceu (1869), isto é, desde as primeiras recordações, até à sua viagem à África do Norte, em 1893, e à morte da mãe, em 1895.

A primeira parte do livro (cerca de três quartos do texto) é uma espécie de diário, ainda que Gide tenha escrito dois volumes do seu Journal (postumamente publicados), um consagrado ao período 1887-1925 e o outro ao período 1926-1950. Da segunda parte do livro consta a descrição dessa viagem à Tunísia e à Argélia. A publicação de Si le grain ne meurt provocou grande escândalo, apesar de Gide ter dado já à estampa Corydon, em 1924 (que teve anteriormente uma edição de tiragem reduzida e sem nome de autor), ensaio sobre os amores socráticos e destinado a combater os preconceitos contra a pederastia. É que nesse livro André Gide descreve as suas aventuras sexuais com os jovens maghrebinos, a primeira em Sousse, com Ali, depois em Argel, com Mohammed e em Biskra, com Athman. Os rapazinhos teriam entre 14 e 16 anos e Gide, Prémio Nobel da Literatura em 1947, seria hoje certamente acusado, julgado e condenado, apesar de ser um dos maiores escritores franceses e universais do século XX. O tempora o mores! Foi também na Argélia que André Gide conheceu pessoalmente Oscar Wilde (e Alfred Douglas), na companhia do qual se aperfeiçoou no seu encontro com os autóctones.

Mas o que importa aqui referir, mais do que evocar a infracção das regras da moral definida pelo código aprovado, é a sua própria "libertação" dessas regras. Educado numa austera família protestante, Gide travará sempre uma luta entre os rigores do puritanismo (tantas vezes hipócrita) e as tentações da carne. Interrogar-se-á neste livro sobre os benefícios da virtude e sobre os malefícios do pecado. É curiosa uma alusão à Suiça, país que visitou e pelo qual professa um manifesto horror. A rigidez calvinista é-lhe insuportável.

A primeira parte deste livro, a mais extensa, é rica em pormenores sobre o percurso do jovem Gide, as relações familiares, as suas amizades, as escolas e os professores domésticos, o ambiente da cidade e do campo, o início da carreira literária.

A vida de André Gide (a vida e a obra) encontra-se retratada em inúmeras biografias, a última das quais o monumental estudo em dois volumes de Frank Lestringant. Mas também a de Claude Martin (de que apenas foi publicado um primeiro volume), a de Pierre Lepape, a de Eric Deschodt, a de George Painter, etc. A vida de Gide ocupou o último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX. Permitiu-lhe assistir a duas guerras mundiais e a profundas modificações na sociedade, tornou-o testemunha de progressos científicos e tecnológicos (para o bem e para o mal) até então impensáveis. É, pois, de impressionante riqueza o depoimento dos seus livros, sejam de ficção, poesia, ensaio, teatro. No total, cerca de uma centena de obras.

Creio que a época conturbada que vivemos impõe um regresso à leitura de André Gide.


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