Durante largos anos, o Demónio deixou de fazer parte do catálogo das preocupações da Igreja Romana. Não me recordo, mas posso estar esquecido, que a evocação (que não a invocação) do Maligno fosse tema da predilecção de Pio XII ou de João XXIII, papas meus contemporâneos. Segundo o jornal "i", em notícia de hoje que transcrevo, Paulo VI ter-se-á referido uma vez a Satanás em 1972, mas creio não ter sido assunto das suas prédicas habituais.
Como João Paulo I, morto em condições pouco claras, não teve tempo, nos 33 dias do seu pontificado, e certamente mais preocupado com outras coisas, de se referir ao Diabo, coube ao seu sucessor, João Paulo II, de usar e abusar das referências a Belzebú. Bento XVI, que era um intelectual, um homem de gabinete, de investigação e estudo, o contrário do grande propagandista da Igreja (e da política, strictu sensu, mais reaccionária) que foi o seu antecessor, raramente concedeu ao Demónio honras de citação.
Eis que agora, o papa Francisco é citado como tendo realizado um exorcismo na Basílica de São Pedro, além das muitas evocações do Inimigo que tem feito, antes de ascender à cátedra pontifícia, e já depois de nela estar instalado.
A Igreja, até por atitude cultural e ética, tinha-se afastado do Demónio, depois de, em nome dele, ter condenado, durante séculos, muita gente à fogueira, como a História regista. Não deixa por isso de ser preocupante este regresso do Maligno às preocupações pontifícias.
Por mim, que associo, como o comum dos mortais, o Demónio ao Inferno, continuo a perfilhar a última fala da peça de Jean-Paul Sartre Huis Clos: «L'enfer c'est les autres».
E passo à transcrição do artigo:
Os últimos Papas desafiaram o inimigo. João Paulo II fazia exorcismos e Paulo VI disse que Satanás entrou na Igreja
O Diabo foi banido, nas últimas décadas, das pregações da Igreja, mas só nas primeiras 48 horas de pontificado, o Papa Francisco desafiou o inimigo n.o 1 dos católicos por duas vezes. A 14 de Março, na Capela Sistina, citou o escritor francês Léon Bloy: “Quem não reza ao senhor, reza ao Diabo.” E logo a seguir, acrescentou: “Quando não se confessa Jesus Cristo, confessa-se o mundanismo do Diabo.” No dia seguinte, voltou à carga e deixou um aviso sério aos cardeais: “Não cedamos nunca ao pessimismo e à amargura que o Diabo nos oferece.”
A batalha não ficou por aí. Poucos dias depois, Francisco relembrou o Demónio, num discurso dirigido aos jovens. “E nestes momentos vem o inimigo, vem o Diabo, muitas vezes disfarçado de anjo e insidiosamente nos diz a sua palavra. Não o escuteis.” Mesmo antes de chegar à cátedra de São Pedro, e quando era cardeal, Bergoglio já falava publicamente do Demónio. Ainda em Buenos Aires, chegou a atribuir a aprovação do casamento gay às manobras do inimigo. Em 2010, o agora Papa escreveu uma carta às carmelitas argentinas, pedindo-lhes que rezassem: “Não sejamos ingénuos. Esta não é uma mera luta política. Trata-se de uma proposta destrutiva do plano de Deus. Não é uma mera proposta legislativa (essa é apenas a forma), mas uma medida do pai da mentira para confundir e iludir os filhos de Deus.”
As primeiras abordagens de Francisco aos assuntos demoníacos passaram despercebidas, mas o exorcismo que terá feito no último domingo, na Praça de São Pedro, acordou a opinião pública. Será o novo Papa obcecado, nas suas pregações, pelo tema do demónio? E como poderá, nesse caso, liderar uma Igreja rendida às evidências da Ciência e que, nas últimas décadas, foge do tema como o Diabo da cruz? “A pregação sobre o Demónio ou sobre o inferno quase desapareceu das homilias e ganharam força questões politicamente correctas, como a doutrina social da Igreja”, confirma um sacerdote. Mas nem por isso os padres católicos passaram a negar a existência do Demónio e todos os papas têm repetido – uns mais discretamente do que outros – a doutrina tradicional da Igreja, que preconiza que o Diabo existe e que Jesus é o salvador precisamente porque libertou do mal.
Paulo VI e os avisos O Papa que mais se referiu ao Demónio foi João Paulo II. Mas a expressão mais célebre na história da relação entre o Vaticano e o Diabo pertence a Paulo VI que, em Junho 1972, chocou a imprensa internacional. “Tenho a sensação de que o fumo de Satanás entrou no templo de Deus através de alguma fenda”, disse, referindo-se à crise da Igreja, saída do Concílio Vaticano II e à perda de influência no mundo moderno. A tirada rendeu-lhe dissabores na opinião pública e, sobretudo, junto da ala progressista da Igreja – que o acusaram de voltar à Idade Média.
Mesmo assim, Paulo VI insistiu e, numa longa homilia dedicada aos perigos do Demónio, avisou os católicos de que o Diabo não é um mito. “Devemos lutar contra o demónio. Quase ninguém pensa nele”, criticou. E acrescentou: “Já não se fala dele porque não é uma experiência visível. Crê-se que não existem as coisas que não se vêem.”
Os exorcismos de João Paulo II A postura de João Paulo II na batalha contra o inimigo foi bem mais pragmática e durou quase até ao fim da vida. Aos 80 anos e a sofrer de Parkinson, o beato terá exorcizado uma rapariga italiana de 19 anos, que viajou do Norte do país de propósito para resolver um problema de possessão.
A história, revelada num dos livros do exorcista de Roma Gabriele Amorth, é muito semelhante à que se conta sobre o exorcismo do Papa Francisco. A rapariga foi levada à Praça de São Pedro para assistir à audiência semanal de João Paulo II, depois de vários exorcistas terem desistido do caso.
João Paulo II não fez o ritual completo: abeirou-se dela, abraçou-a e rezou. Mas este não foi o seu primeiro exorcismo: a estreia terá ocorrido ainda na década de 1970, mas pouco se sabe sobre o caso. Já sobre a segunda experiência de João Paulo II há muitos detalhes que ficaram para posteridade. Um cardeal francês, Jacques Martin, contou tudo nas suas memórias. Wojtyla terá exorcizado uma mulher chamada Francesca. Durante horas, desfiou orações sem sucesso. Até que lhe disse: “Amanhã rezarei uma missa por ti”. O cardeal conta que Francesca voltou a si nesse momento. Um ano depois, já curada, foi recebida, com o marido numa audiência papal.
Bento XVI e a luta silenciosa Contrariamente aos seus antecessores, Bento XVI falou poucas vezes no Demónio. Mas em Agosto do ano passado, quando estava de férias em Castel Gandolfo e antes da oração do Angelus, Ratzinger recordou a traição de Judas. “Ele poderia ter ido embora, mas escolheu ficar com Jesus para se vingar dele.” A culpa, sublinhou o Papa emérito, foi da falsidade. “E a falsidade é a marca do diabo”, rematou.
Numa outra ocasião, na quaresma de 2008, Bento XVI afirmou: “Temos de encarar o mal e combater os seus efeitos mas sobretudo as suas causas e a sua causa primeira, que é Satanás.” Terão sido, porventura, as únicas duas vezes que Ratzinger tocou publicamente no assunto. O que não significa, sublinha um padre consultado pelo i, que Bento XVI não tenha travado as suas batalhas contra o Diabo. “Como profundo teólogo, abordou muitíssimas vezes as consequências da sua existência: o relativismo moral, o consumismo desenfreado ou o esquecimento de Deus.”
2 comentários:
Abrenuntio, abrenuntio!!!
Se este papa enveredar pelo "show-business", independentemente de todas as suas qualidades, é um mau serviço que presta à Igreja.
Já bastou a volta ao mundo de João Paulo II e o seu envolvimento na queda dos regimes de Leste, que possibilitou agora arrogâncias como a da Alemanha, ou o contributo que deu para a dissolução da Jugoslávia.
O antigo arcebispo de Cracóvia cumpriu sempre uma agenda política, e até o facto de ter pretendido dar o chapéu de cardeal ao famigerado arcebispo Marcinkus (só recuou na véspera quando as autoridades italianas emitiram contra ele um mandado de captura), pouco abona a seu favor.
Creio que já é beato, uma fraqueza de Bento XVI. Se for canonizado, os outros santos sentir-se-áo em má companhia.
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