domingo, 3 de março de 2013

ROGER PEYREFITTE



Foi publicada há pouco tempo a primeira biografia do escritor Roger Peyrefitte (1907-2000), autor de cerca de 50 livros, figura polémica da literatura e da vida social francesa do século passado.

Deve-se esta primeira (e única, até agora) biografia a Antoine Deléry, que traça, fluentemente, a vida (e a obra) do autor de Les Amitiés particulières, livro inicial e fundamental, porventura o melhor romance de Peyrefitte, fruto da sua passagem, na infância, por um colégio interno dirigido por jesuítas.

Muitas e variadas observações se poderiam fazer sobre o livro recentemente publicado, uma das quais é a ausência, numa obra deste tipo, de quaisquer ilustrações, contrastando com o verdadeiro culto pelas imagens, especialmente por algumas mais específicas, alimentado pelo ilustre retratado.

Uma crítica do livro de Deléry pode ler-se no blogue "Les Diagonales du Temps", pelo que me abstenho de considerações que outros já fizeram e que, na generalidade, subscrevo.

Acrescentarei, ou acentuarei, somente alguns pormenores: o livro Roger Peyrefitte, le Sulfureux, permite compreender as contradições do escritor, corajoso e pusilânime, lúcido e ingénuo, vaidoso mas também simples, sumamente bisbilhoteiro e devassador da vida alheia, mesmo que, em alguns casos, o tenha feito para vender os seus livros, já que, especialmente no fim da vida, uma situação económica e financeira precária o deixou quase na miséria, devida em grande parte não só a um trem de vida superior aos seus rendimentos mas aos ruinosos empreendimentos da sua última (e para ele única) verdadeira paixão, Alain Philippe de Malagnac.

Todos sabemos que o amor não é racional, e que paixões de anciãos ou anciãs por jovens (quer se trate de homens ou mulheres) não resultam normalmente bem, até porque a diferença de idades convida a uma exploração dos mais velhos pelos mais novos, cada vez mais acentuada, nos tempos que correm, pelo enaltecimento da juventude, a qualquer preço, e pelo desenvolvimento de uma sociedade progressivamente mais materialista, em que a humanidade é convidada (diria mesmo) forçada a sacrificar no altar do dinheiro.

Roger Peyrefitte, aliás bastante imprevidente, desde o tempo em que foi diplomata em Atenas, não escapou a deixar-se encantar pelo canto das sereias, mas parece que morreu feliz. Valha-nos isso!

Gente muito diversa perpassa nesta biografia de Deléry, mas duas figuras, ambas nomes sonantes das letras francesas, se evidenciam: Henry de Montherlant e François Mauriac. Foi o primeiro amigo de Peyrefitte durante alguns anos, quando ambos se dedicavam à conquista de efebos numa França ainda não ocupada pelos alemães, mas as relações esfriaram por razões especialmente literárias (Montherlant projectara publicar Les Garçons, obra que só deu à estampa pouco tempo antes de morrer e que trata o mesmo tema de Les Amitiés particulières, e acabaram definitivamente cortadas. Quanto a François Mauriac, entre os quais sempre o vítriolo foi destilado, Peyrefitte não perdoava a Mauriac, escritor assumidamente católico, membro da Academia Francesa e Prémio Nobel da Literatura, que enquanto batia com a mão no peito, andasse discretamente atrás de rapazinhos, como então já era sabido, mas que a monumental e recente biografia de Jean-Luc Barré veio confirmar.

Ao longo de uma vasta obra, que exigiu uma investigação exaustiva e requereu uma cultura invulgar, não conseguiu Peyrefitte furtar-se, na quase totalidade, ao tema da homossexualidade. Devem-lhe os gays um tributo pela sua coragem e persistência, mas os seus últimos livros penetram no âmbito da vida privada de terceiros, ainda que, no espírito de autor e editores, estivesse em mira o número de exemplares vendidos. E os mexericos, ontem como hoje, continuam a ser razoavelmente vendáveis.

Abordou Roger Peyrefitte quase todas as "veneráveis" instituições do seu tempo: a Carreira Diplomática, a Igreja Católica, a Ordem de Malta, a Maçonaria; grandes vultos da História: Alexandre Magno, Frederico II, Voltaire, De Gaulle; mas também os Judeus, os Americanos e os Franceses, sem esquecer as eternas paixões pela Grécia e pela Itália.

Considera-se hoje Peyrefitte um escritor prolífico mas menor. Não tenho a certeza. Já lá vai o tempo em que Sade, hoje estudado cuidadosamente nas universidades, era tido por um escritor maldito. É certo que a obra de Peyrefitte é sem dúvida desigual, mas, para além do primeiro e indubitavelmente melhor livro, Les Amitiés particulières, merecem referência La Mort d'une mère, Les Ambassades, Du Vésuve à l'Etna, L'Exilé de Capri, Retours en Sicile (o último, hoje esgotado mesmo na generalidade dos alfarrabistas).

Sendo certo que Antoine Deléry prestou um serviço à literatura ao escrever a biografia de Roger Peyrefitte, a melhor forma de conhecer a obra (e, através dela, o homem, já que os livros são quase todos autobiográficos, mesmo quando não é utilizado o "Je") é ler alguns dos seus melhores livros. E nunca esquecer-nos que as distinções mundanas (como a Academia Francesa ou o Prémio Nobel da Literatura) são veneras temporárias para a satisfação de vaidades particulares. Quantos são os franceses (já nem falo dos estrangeiros) que conhecem 1% dos membros que pertenceram à sua Academia? E quantos cidadãos do mundo cultivado sabem o nome dos nobelizados? A maioria dos escritores que obteve o Nobel é hoje totalmente desconhecida, enquanto alguns monstros sagrados da literatura nunca o receberam.

Como se dizia na cerimónia da coroação do Papa (não sei se ainda hoje se diz, mas o momento é propício): Sic transit gloria mundi!

2 comentários:

Anónimo disse...

Já agora,o autor do blogue podia-nos contar algumas das coscuvilhices mais curiosas do livro,dado que nem todos podemos abalançar-nos a comprá-lo. E não devem faltar! Coscuvilhar o coscuvilheiro mór é certamente tarefa divertida.

Anónimo disse...

Peyrefitte, a par de livros medíocres, foi autor de obras notáveis. Deve, por isso, prestar-se-lhe a homenagem devida.