domingo, 13 de janeiro de 2013

A HOMOSSEXUALIDADE E OS MILITARES



Por um mero acaso veio ter às minhas mãos o livro Du similisexualisme dans les armées et de la prostitution homosexuelle (militaire et civile) à la Belle Époque, de Edward I. Prime-Stevenson.

Uma precisão:

O livro agora citado (233 páginas), publicado recentemente em francês, reúne apenas dois dos treze capítulos da obra de Prime-Stevenson, The Intersexes: a History of Similisexualism as a Problem in Social Life (um "tijolo" de 641 páginas, que ocupou o autor uma dezena de anos), publicada entre fins de 1909 ou começos de 1910, em Itália, com uma tiragem de apenas 125 exemplares.

A editora Arno Press, dos Estados Unidos, considerou a obra suficientemente importante para a reimprimir em 1975, mas o resultado traduziu-se, pela má qualidade do processo de reprodução ou do próprio original, num livro de lisibilidade execrável. Assim, a edição original, hoje raríssima, atinge preços astronómicos no mercado de livros antigos. Diga-se que The Intersexes nunca teve tradução em qualquer língua até à presente edição (abrégée) francesa, a primeira publicação em língua estrangeira, devida ao empenho de Jean-Claude Féray.

Duas palavras sobre Edward Irenaeus Prime-Stevenson (1858-1942). Escritor e jornalista americano, autor de diversas obras, viajou pelo mundo e viveu a segunda metade da sua vida em Itália (nomeadamente em Florença), tendo morrido em Lausanne, de um ataque de coração. Com o pseudónimo de Xavier Mayne, publicou em 1906, Imre: A Memorandum, um romance de temática homossexual, ainda disponível nos alfarrabistas e o referido The Intersexes, uma defesa da homossexualidade do ponto de vista científico, legal e histórico.

Importa recordar que, para lá das exaustivas pesquisas de Prime-Stevenson, o livro viu a luz do dia pouco tempo depois do imenso "escândalo" registado na Alemanha, envolvendo a entourage do imperador Guilherme II. Entre os muitos visados figuravam o general conde Kuno von Moltke, comandante militar de Berlim e ajudante de campo do Kaiser e o príncipe Philip von Eulenburg, também íntimo do imperador. Eram acusados de promover orgias homossexuais com oficiais e soldados dos vários regimentos da capital. O caso, que chegou a tribunal, teve na sua génese intrigas políticas (como habitualmente), estalou após a substituição do chanceler Otto von Bismarck e criou um sentimento de profunda insegurança e de mal-estar na Alemanha, país então relativamente liberal em matéria de costumes, apesar do incrível parágrafo 175 do Código Penal germânico, que vigorou de 1871 a 1994 (!!!), e que condenava as relações homossexuais.

À eclosão da Primeira Guerra Mundial, desencadeada na sequência do atentado em Sarajevo, em 1914, que vitimou o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Áustro-Húngaro, não foi alheio o clima depressivo então vivido na Alemanha e que levou não só à queda de Guilherme II e do Segundo Reich, em 1918, como ao desmoronamento do Império Austríaco e do Império Russo.

É da história que os grandes escândalos ou pseudo-escândalos sexuais arrastam sempre consigo os regimes que os permitem ou promovem. Diga-se, num parêntese, que a durabilidade do Estado Novo se deveu, também, ao facto de Salazar nada se importar com as práticas sexuais dos cidadãos portugueses. Desde que não se ultrapassassem os limites impostos pelo "decoro" da ordem pública (e para isso uma polícia zelava atentamente), o que decorria entre quatro paredes nada preocupava o Ditador, que teve sempre, nos seus governos, ministros com amantes do sexo oposto ou do mesmo sexo, como aliás sabem os sobreviventes da época.

O livro agora em apreço (um extracto do original, como dissemos) é uma obra extraordinariamente bem documentada, com a conveniente fundamentação científica (pelo menos para o tempo em que foi escrita), e com um carácter objectivo, demonstrando igualmente os profundos conhecimentos que o autor, por experiência própria ou convivência alheia, e por investigação histórica, possuía sobre a matéria.

Para os apreciadores de ópera, regista-se uma curiosidade trazida por Stevenson. A célebre ópera Un Ballo in Maschera, de Verdi, composta a partir da peça de teatro Le Bal masqué, de Daniel Auber, que tem por tema o assassinato do rei Gustavo III da Suécia por Ankerström, devido a pensar que a sua mulher era amante do rei, não teve como móbil o ciúme do marido, presumivelmente enganado, mas tratou-se de uma conspiração contra o monarca, homossexual e grande general, movida no círculo dos amigos (e inimigos) homossexuais do soberano. Na altura, por razões óbvias, o tema passou a ser, na peça e na ópera, uma intriga de carácter heterossexual.

Para os portugueses, um acontecimento pouco divulgado. Em 1902, o príncipe Francisco José de Bragança (1879-1919), filho de D. Miguel (II), no exílio em Viena, foi enviado a Londres, na comitiva imperial às cerimónias da coroação do rei Eduardo VII. A polícia inglesa surpreendeu-o num bordel frequentado por marujos, na companhia de dois rapazes, um de 15 e outro de 17 anos, que lhe haviam sido arranjados por um intermediário de 24 anos. Julgado pelo tribunal de Southwork, em Londres, o príncipe foi finalmente absolvido pelo júri de Old Bailey. Em resultado do escândalo, foi privado dos seus direitos cívicos e obrigado a demitir-se de tenente do regimento de Hussardos do imperador Francisco José.

Ainda relacionado com Portugal, entre os numerosos bailes e festas da Belle Époque europeia, realizados em Berlim, Viena, Paris, Londres, Roma ou Nápoles, e que reuniam homossexuais, travestidos ou não, anota o autor um célebre baile que teve lugar em Berlim, no hotel König von Portugal, em Outubro de 1889, e que foi largamente descrito no jornal "Morgen Post".

A afirmação de Stevenson  de que Elizabeth de Áustria (Sissi), mulher de Francisco José, era lésbica, é, de certo modo, uma revelação, pois tal não consta geralmente das várias biografias da imperatriz. Todos conhecem a profunda afeição de Sissi por seu primo o rei Ludwig II da Baviera, homossexual público e notório, que considerava a soberana como a única pessoa que o compreendia. E também é sabido o profundo interesse de Elizabeth pelos desportos mais masculinos, como, por exemplo, o hipismo ou o trapezismo. Stevenson menciona uma relação da imperatriz com duas cavaleiras do famoso circo alemão Renz, então instalado em Viena, concretamente Emilie Loiset e Elise Petzold. Este caso é mencionado no livro Sissi ou la fatalité, de Jean des Cars.

Aludindo à prostituição masculina nas principais cidades do mundo, junto dos grandes hoteis, em ruas específicas, parques, urinóis, bares, jardins, proximidade de quartéis, pensões de curta permanência, estações de caminho de ferro, cais marítimos ou fluviais, etc.,  Stevenson menciona, em especial,  São Petersburgo, Moscovo, Londres, Amesterdão, Bruxelas, Paris, Marselha,  Bordéus, Toulouse, Estocolmo, Hamburgo, Berlim, Breslau, Munique, Madrid, Viena, Lisboa, Budapeste, Belgrado, Sofia, Constantinopla, Florença, Roma, Nápoles, Palermo, Milão, Turim, Veneza, Genève e Zurique. Quanto a Lisboa, é sempre oportuno recordar uma passagem de Raul Brandão no Volume II das suas Memórias (Edição Jornal do Fôro, pág. 361): «Lisboa foi sempre, como Nápoles, uma cidade de pederastas...».

O uso de fardas, prioritariamente de militares (mas também, hoje em dia, de polícias, de seguranças e dos profissionais de muitas outras actividades), constituiu, ao longo dos tempos, uma sedução para os homossexuais, e até para os heterossexuais, para já não falar das mulheres. Este livro detém-se demoradamente sobre esse aspecto.

Os soldados constituíram sempre um dos mais substanciais contingentes de recrutamento dos homófilos (até o próprio Luiz Pacheco nos fala disso no seu livro O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor). Mas de todas as fardas, aquela que mais suscitou o interesse homossexual foi a dos marinheiros. Stevenson recorda-nos o facto na sua obra, pretendendo fornecer explicações quase de carácter científico (e cita, como bissexuais praticantes, os navegadores portugueses Vasco da Gama e Fernão de Magalhães), não só pela passagem longo tempo no mar, como por aquilo a que ele chama "uma condição inconscientemente adquirida"; mas todas as obras relacionadas com a matéria se referem, mais ou menos desenvolvidamente, não só ao poder de atracção sexual dos marinheiros sobre os civis, como às próprias relações entre marinheiros.

No entanto, talvez o opus magnum, pelo menos na literatura contemporânea, sobre relações homossexuais entre marinheiros ou entre estes e civis, seja o célebre romance Querelle de Brest, de Jean Genet, imortalizado no cinema, e para sempre na História, por Rainer Werner Fassbinder. Sem esquecer uma obra precursora, Bom-Crioulo (1895), do brasileiro Adolfo Caminha. Ou a novela Billy Budd (1891), de Herman Melville (publicada postumamente em 1924 e só com edição autorizada em 1962), sobre a qual Benjamin Britten compôs a ópera homónima em 1951, depois revista em 1964).

Regista o livro, no último capítulo, diversos casos de chantagem  a que foram submetidos vários homossexuais, nomeadamente para extorsão de dinheiro mas também por motivos políticos, e o suicídio de muitas figuras de relevo, designadamente na esfera castrense, por receio de que as suas inclinações fossem tornadas públicas.

São ainda abordados vários casos de lesbianismo, que a história menciona com muito menos destaque, dado que as relações entre mulheres sempre foram mais discretas ao olhar do público.

O livro de Prime-Stevenson (a edição integral) tem o mérito de analisar nos seus treze capítulos a vida sexual nos principais países da Europa, e não só, com uma objectividade e um conhecimento da matéria que deve ter espantado os leitores da época, dado que cem anos atrás apenas se esboçavam os primeiros estudos científicos sobre a sexualidade, que tiveram o primeiro grande investigador em Siegmund Freud. Devem-se aos alemães  Kraftt-Ebing (1840-1902) e Magnus Hirschfeld (1868-1935), aos ingleses Edward Carpenter (1844-1929) e  Havelock Ellis (1859-1939) e ao americano Alfred Kinsey (1894-1956), entre outros, os principais estudos pioneiros sobre um assunto que tem preocupado a humanidade desde os seus primórdios.

A título de curiosidade, diga-se que a palavra "homossexual" (e, por oposição, heterossexual) se deve ao austríaco Karl-Maria Kertbeny, (1824-1882), consagrada num capítulo que escreveu para a obra de Gustav Jäger (1832-1917), Die Entdeckung der Seele (A Descoberta da Alma).

5 comentários:

Anónimo disse...

Texto de grande interesse pelas novidades que apresenta,desconhecidas,creio,da maioria dos estudiosos da Antropologia teórica e prática. É de facto escandaloso que ainda não se tenha promovido uma edição edição moderna e completa desta obra. Andam os Philippe Ariès dos vários países a publicar as suas "Histórias da Vida Quotidiana" neste e noutro local,sem conhecerem este eminente precursor. Creio ser obrigação moral do autor do blog promover por todos os meios as diligências necessárias para essa urgente tarefa. E fica-lhe bem destacar os numerosos autores de lingua inglesa que se têm dedicado a estes estudos. Aguardamos novidades,pois editoras empreendedoras não faltam no nosso país,apesar da crise. Coragem!

Anónimo disse...

Enquanto o autor do blog vai preparando a edição crítica anteriormente referida e exigida pelas vozes eruditas e populares,poderá dedicar-se tambem a escrever e publicar a aguardada biografia do infante D.Francisco José de Bragança,afilhado do Imperador homónimo,verdadeiro mártir das convenções da época,hoje aliás em vias de restauro e reforço. Alem do drama de Londres,o "golpe" das esmeraldas em Viena dará certamente interesse policial ao trabalho que esperamos para breve.E haverá que averiguar em que circunstâncias realmente morreu,prisioneiro dos italianos depois da guerra na ilha de Ischia em 1919.

Anónimo disse...

Este post, é seguramente dos mais bem conseguidos pelo autor. A quantidade de informação que nos dá a conhecer, obriga à compra imediata do livro em apreço, para, de modo mais detalhado, nos podermos documentar. E, sim, trate de envidar os seus melhores esforços, para que alguma editora nacional se apreste a editar a obra em referência. Leitores e muitos, decerto os terá. Ficamos à espera.
Marquis

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para os meus comentadores:

1) Não creio que, na presente situação de crise, alguma editora esteja interessada na publicação portuguesa do livro cuja tradução francesa comentei;

2) Também esclareço que não tenciono escrever a biografia de Francisco José de Bragança;

3) Agradeço os comentários.

Anónimo disse...

1) Está equivocado,pois as editoras,após as últimas concentrações,estão bastante activas. Nunca se publicaram tantos livros em Portugal. Se são lidos,isso é outra questão. A temática da obra que foi objecto do post tem ,como justamente observou outro comentador,ampla venda assegurada.
2) É pena,pois este tio do Senhor D.Duarte é uma figura de grande originalidade,apesar da sua curta vida(39 anos). Seria certamente outro sucesso de vendas.
3) Não tem nada que agradecer.Os seus leitores,especificamente quanto a este post,é que lhe estão gratos.