quarta-feira, 5 de setembro de 2012
O ESCÂNDALO MILLET
Reina grande agitação nos meios literários (e não só) franceses, após a publicação há pouco mais de uma semana de dois livros do escritor Richard Millet, membro do Conselho de Leitura da prestigiadíssima editora Gallimard: Langue fantôme: Essai sur la paupérisation de la littérature suivi de Éloge littéraire d'Anders Breivik e De l'antiracisme comme terreur littéraire.
Não sendo propriamente Richard Millet um escritor menor (leia-se sobre a matéria o texto de Pierre Assouline no seu blogue La République des livres), e descontando o que nos dois livros possa ser considerado como provocação ou exibicionismo, importa proceder à sua leitura com serenidade e espírito crítico. E perguntar se Millet estará sozinho (claro que não está) nas teses que defende, ou se, pelo contrário, haverá já muita gente, no chamado mundo ocidental, que perfilhe as suas ideias, ou que, no mínimo, se interrogue quanto à bondade das mesmas.
Naturalmente que o racismo, que Millet sustenta ao condenar o antiracismo (mesmo como terror literário) é repugnante. E que o elogio, ainda que literário, de Anders Breivik, responsável pelo assassínio de 77 pessoas em Oslo, em Julho do ano passado, só pode merecer condenação. É certo que Millet não aprova o crime, mas entende que o gesto convidou a uma meditação sobre a decadência da Europa e que as jovens vítimas «eram futuros colaboradores do nihilismo multicultural».
Que a Europa se encontra em profunda decadência parece evidente, mas não é exactamente pelas razões invocadas por Millet, como por exemplo os minaretes das mesquitas e os best-sellers anglo-saxónicos. A questão do multiculturalismo é suficientemente complexa para poder ser tratada neste espaço, mas deverá perguntar-se se a presença dos árabes (e dos negros) na Europa durante décadas provocou algum sobressalto cívico. O que começou a agitar os muçulmanos do Velho Continente foi a política ocidental em relação aos países islâmicos. Importa recordar o livro de Huntington (possivelmente uma encomenda) sobre o choque de civilizações, e também as guerras do Golfo, a invasão do Afeganistão e do Iraque e tudo o mais que não cabe aqui citar. Já quanto aos best-sellers, talvez Millet tenha alguma razão, uma vez que dos livros aos filmes e à televisão, o que provém do mundo anglo-saxónico é, em grande parte, uma incitação à violência.
Porque o assunto não constitui um fait-divers, como o futuro se encarregará de demonstrar, voltaremos oportunamente a este tema.
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4 comentários:
Não me parece que o sobressalto cívico seja provocado por questões rácicas. O sobressalto deve-se essencialmente a duas visões do mundo diferentes. Resta saber se os negros e os árabes estão do mesmo lado da barricada. Não me parece.
PARA XICO:
Não se trata propriamente de uma questão rácica, nem mesmo ideológica ou religiosa. Embora a religião sirva aqui de pretexto. É antes uma contestação do Ocidente, por causa da sua política em geral, e, em particular, da forma como acolheu os imigrantes durante muitos anos. Ressurgem velhos fantasmas.
Certamente que os negros não árabes, e que também não sejam muçulmanos (muitos são-no), não se sentirão tão atingidos pelas políticas referidas. Uns juntar-se-ão aos árabes , por solidariedade migrante, outros não.
A maior ou menor tolerância depende de muitos factores e não das culturas em causa. Quando se diz que a cultura islâmica foi mais tolerante que a cristã, foi-o de facto em certa medida e em certa época. E foi-o quando essa sociedade islâmica se sentia suficientemente forte e consolidada e o "outro" não punha em perigo essa estabilidade. Da mesma forma na Europa dos últimos anos com o multiculturalismo. A nossa visão do mundo tornou a tolerância em sim num tal valor, de aceitação de tudo e um par de botas, que se fragilizou nas suas convicções. Começará a sentir-se ameaçada devido a esse multiculturalismo, e aí lá irá a tolerância e pagará o justo pelo pecador. É assustador ver o que dizem alguns grupos islâmicos na Europa, sabendo que poderão a vir a ser a maioria em algumas cidades.
E devemos ou não aceitar, em nome da tolerância, aqueles que não são tolerantes?
PARA XICO:
Referi-me, na minha resposta anterior, ao que penso sejam algumas das causas (não todas) da contestação islâmica na Europa Ocidental.
Outras questões são o multiculturalismo e a tolerância. O multiculturalismo, que considero desejável, deu bom resultado nuns lados, noutros não. Dependeu da forma como foi conduzido o processo. Em muitos sítios aceitou-se a 50% e promoveu-se 50% de "ghetização", o que não poderia resultar.
É claro que em nome do multiculturalismo não pode aceitar-se a intolerância, como já se verifica em alguns países da Europa. Ela está a ser incentivada em larga medida pelo fundamentalismo religioso.
Serve também de exemplo o que se passa em alguns estados recém-saídos da Primavera Árabe, a que me referirei num post a publicar.
Neste momento, na Tunísia e no Egipto, países árabes, muitos dos cidadãos que fizeram as revoluções estão a ser perseguidos por serem laicos ou menos integristas que o pretendido pelos novos poderes.
Considero que os estados devem ser laicos (o que contraria a filosofia do fundamentalismo islâmico), que as pessoas devem professar a religião que entenderem (ou nenhuma) e que não deverá ser imposta qualquer norma religiosa.
O comportamento dos muçulmanos na Europa dependerá muito do caminho político que seguirem os países árabes. Teremos de aguardar.
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