segunda-feira, 23 de julho de 2012

É SATÃ QUEM CONDUZ O BAILE



Em 31 de Dezembro de 2010 publiquei um post sobre as desgraças que se vinham abatendo sobre o mundo, que intitulei "Et Satan conduit le bal", ilustrando-o com a célebre ária do Faust, de Gounod - "Le veau d'or", onde Mefistófeles canta a célebre expressão.

Passados menos de dois anos, e perante o espectáculo que me é dado contemplar, nomeadamente a situação que se vive no mundo árabe, vejo-me obrigado a retomar o tema. E aproveito para ilustrar o post a capa de um livro de Georges-Anquetil, velho de quase um século, subintitulado "Roman pamphlétaire & philosophique des moeurs du temps", crítica de costumes na França do século XIX e princípios do século XX, mas cujo título se revela apropriado para a ocasião.

Não sendo crente, não posso atribuir a Satã todos os males que assolam o universo, mas reconheço a existência de diabos humanos, menos brilhantes do que Lúcifer, que vagueiam pelo mundo para espalhar à sua volta as maldades mais inconcebíveis. Tinha, pois, razão Sartre quando escreveu na sua notável peça Huit-Clos que "L'enfer c'est les autres".

O caos em que se encontra mergulhada a Síria, um dos últimos actos da tragicomédia apelidada de "Primavera Árabe", não pode deixar de suscitar a maior indignação, o mais vivo repúdio em todos os homens honestos. Como já tinha merecido reprovação universal a invasão do Iraque, há cerca de dez anos, e em que continuam a registar-se os mais graves incidentes, como o que hoje provocou mais de 100 mortos e centenas de feridos em ataques perpetrados em cerca de 20 cidades, entre as quais Baghdad e Kirkuk.

A democracia que o sinistro Bush, acolitado pela funesta administração norte-americana, pretendeu exportar para o Iraque, não levou ao país a liberdade, a fraternidade e a igualdade, para utilizar termos conhecidos, mas antes a paz dos cemitérios, "La pace dei sepolcri", como diria Verdi no Don Carlo.

A insurreição despoletada na Tunísia pela imolação de um jovem, em circunstâncias ainda hoje não totalmente esclarecidas, e que desencadeou as revoluções no Egipto e na Líbia e outras manifestações prontamente sufocadas em alguns outros países árabes, destinou-se a substituir regimes certamente ditatoriais mas razoavelmente laicos por outros que se transformarão a breve trecho, se já o não são, em ditaduras religiosas, que, como todos sabemos, são as piores de todas as ditaduras.

Todas estas revoluções foram apoiadas pelo Ocidente, por miopia política ou por insondáveis desígnios que o tempo se encarregará de revelar. Na Líbia, existiu mesmo um ataque da NATO, ultrapassando uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, para depor (e assassinar) Muammar Qaddafi, quando este já não interessava à "comunidade internacional". Tal como se encenou no Iraque, patrocinado por um governo fantoche, um julgamento que levou ao assassinato legal (por enforcamento) de Saddam Hussein, terminada que fora a guerra com o Irão.

Chegou, entretanto, a vez da Síria. Ensaiada uma primeira contestação, reprimida talvez com despropositada violência, logo se instalou um clima insurreccional que viria a degenerar na guerra civil em que o país se encontra hoje mergulhado. Tratando-se de um regime ditatorial, como todos os regimes dos países árabes, não contaram as forças interessadas no apoio que o povo prodigalizava a Bashar Al-Assad, que empreendera, para lá de algumas reformas sociais, uma considerável melhoria do nível de vida. Certamente que a oposição ao regime gerou a adopção de medidas de repressão quiçá exageradas, estabelecendo-se, como era desejo dos arautos da "democracia", uma espiral de violência, em que muitas famílias perderam os entes queridos e, especialmente por essa razão, passaram a contestar a governação alauíta.

Sendo um regime laico, existia na Síria uma convivência pacífica, e mesmo amistosa, entre os seguidores dos cerca de 20 credos por que se distribui a população, além das diversas etnias existentes no país.

Estive na Síria mais do que uma vez, e pude verificar o espírito de confraternização dos seus habitantes. Haveria corrupção? Certamente. Verificar-se-iam injustiças sociais? Com certeza. Estariam cerceadas algumas liberdades? Não duvido.Mas não são essa distorções comuns à generalidade dos países, com especial inclusão do Ocidente? Posso testemunhar que assisti a uma peça num teatro de Damasco em que se faziam as maiores críticas à polícia política do regime, os Mukhabarat, para gáudio dos espectadores. Havia, portanto, uma polícia política. Mas quais são os estados que a não possuem, normalmente disfarçadas com o título de serviços de informações.

Porque não quero, nem devo, alongar-me, proponho duas reflexões.

1) A "Primavera Árabe" é um mito destinado a ocultar a verdadeira intenção de tanto alvoroço: abrir caminho para o Irão e iniciar um cerco à Rússia, agora com o Afeganistão pretensamente domesticado e o Paquistão misteriosamente privado de Bin Laden, cujo cadáver é suposto repousar no fundo dos oceanos. E reforçar também a posição de Israel, protelando sine die, a solução da questão palestiniana.

2) Não vi, até hoje, nenhum dirigente político ocidental preocupar-se com a falta de democracia, da mais elementar liberdade, nas monarquias dos países do Golfo. Precisamente aqueles que apoiaram, para boa consciência da "comunidade internacional", a invasão da Líbia e fornecem agora, armas, dinheiro e homens à insurreição na Síria, nomeadamente a Arábia Saudita e o Qatar, que são considerados países exemplares e que se orgulham em brandir os seus certificados de bom comportamento.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, devido aos vetos da Rússia e da China, tem sido impedido de desencadear uma ofensiva militar contra a Síria. Mas, os Estados Unidos e seus sequazes, não o fazendo  abertamente, têm apoiado de forma tanto quanto possível discreta, e com o apoio enigmático da Turquia ( o que faz correr Erdogan?) a revolta contra o presidente Bashar Al-Assad.

Duvido que o regime sírio sobreviva. Mas tenho a certeza de que, a exemplo do Iraque, ou muito pior, devido a circunstâncias que o espaço me não permite explicitar, com Assad ou sem ele, o país entre numa guerra civil permanente,  com o seu interminável cortejo de vítimas.

Muito mais haveria a dizer e deveria ser dito. Mas, por hoje, basta. Talvez os rios de sangue que correm do Iraque, da Síria, da Líbia, em breve do Egipto, porventura do Irão e de outros países, acabem por desaguar em Washington e nas outras capitais do mundo ocidental.


5 comentários:

Anónimo disse...

Simplesmente brilhante. E o autor teria ainda muito mais para dizer.

ZÉ DOS ANZÓIS disse...

O autor faz uma previsão assustadora. Receio que a realidade venha a ser ainda pior do que a previsão do autor.

Abrenúncio disse...

O Grande Satan, que se tem movimentado impunemente pelo universo, será em breve derrotado na mais apocalíptica das tragédias.

Anónimo disse...

Como sempre tenho afirmado, em sintonia, aliás, com o autor do post, podem acreditar que tempos tenebrosos se aproximam velozmente. Não pensem que é fantasia, todas as grandes confrontações começaram deste modo, com as devidas particularidades geográficas e políticas. Só que desta vez, existem em abundância e espalhadas por toda a parte, armas químicas, biológicas e atómicas que os contendores, não se eximirão a utilizar indiscriminadamente. Como diz o autor do post, trata-se do cerco à Rússia e ao Irão, é transparente como água do Luso. Só os ceguinhos não vêem. Mas vai sair-lhes o tiro pela culatra, oh se vai!
Marquis!

Anónimo disse...

Desejo que o regime de Bachar se mantenha e que os seus opositores vão todos para o inferno, que, como diz o post, são os outros.