Pelo seu comprovado interesse, transcreve-se, com a devida vénia, o artigo de Rui Miguel Tovar, hoje publicado no jornal "i":
Finito. O Euro-2012 já não mora mais aqui. Em Varsóvia, na Polónia. O
Alemanha-Itália de quinta-feira é o último acto futebolístico na capital
polaca. Não quer isso dizer que a abandonemos assim de repente, num
estalar de dedos. Não, nós não. Ficamos aqui mais uns dias até à final
de Kiev e aproveitamos para conhecer a Cidade Velha, um pedaço
encantador de arquitectura e ruas serpenteadas, longe das bolas gigantes
de futebol nas rotundas e das cores aberrantes das selecções do Euro
nas paredes dos hotéis. Aqui respira-se História.
Quando entramos na imponente Avenida Tokarzewskiego Karaszewicza, há um
pequeno jardim. À esquerda, uma exposição fotográfica sobre Varsóvia de
meados do século XIX. À direita, uma outra exposição fotográfica, esta
sobre o futebol em Varsóvia no início do século XX. No meio, a separar
os caminhos e as fotografias, um quadrado gigante de ferro preso ao chão
com a bandeira de Portugal. Damos a volta ao quadrado e só dá Portugal:
cachecóis, fitas para o cabelo, bandeirinhas e papelinhos. Só jogámos
uma vez em Varsóvia (1-0 à República Checa para os quartos-de-final) e
marcámos território.
Ainda estamos surpreendidos com esta situação quando ouvimos Portogallo
lá ao longe. São três italianos sentados numa esplanada. Olhamos para
eles, sorrimos de forma simpática na esperança de selar um acordo
“calem-se para continuarmos a andar sem sermos perseguidos pelos olhares
de dezenas, centenas de turistas” e saímos de cena. Em direcção a um
beco sem saída. Temos de voltar para trás e continuamos a ouvi-los
gritar Portogallo. Eles já sabiam da marcha-atrás e só há uma saída: ir
ter com eles. À medida que nos aproximamos debaixo de um calor
abrasador, eles insistem no Portogallo. Cada vez mais alto. Quando nos
sentamos à mesa, calam-se. Finalmente. Okay, chegámos e agora querem o
quê? Fare il portoghese, e riem-se controladamente. O quê?
Lição número um: “Na Roma do século XVIII, o embaixador de Portugal
convida os seus compatriotas residentes na capital para assistirem a uma
peça no Teatro Argentina. À porta, os convidados só têm de dizer a sua
nacionalidade e não lhes é pedido qualquer contrapartida financeira.
Aproveitando-se dessa situação, alguns (muitos) romanos passam-se por
portugueses e vêem o teatro à borla.” Ahhhh agora sim, click, esta
história já nos passara pelas mãos, através de um amigo luso-brasileiro
durante um Fiorentina-Benfica de 1997.
Lá estamos nós a falar de futebol. Estes adeptos não são desses. Aliás,
são italianos muito especiais. Primeiro, não falam com as mãos nem com
os ombros, limitam-se a abrir a boca e debitar palavras – assim também
nós, ah. Depois não querem saber de Cassano nem de Balotelli. Nem de
Buffon ou de Pirlo. Ma ché cosa? Para terminar, as suas camisolas não
são do azul desta Itália, os números não são os desta Itália e os nomes
também não. À nossa esquerda, com o número 9 a ocupar toda a t-shirt,
Pasolini. À nossa direita, com o chapéu do JR do Dallas, Pier. À nossa
frente, com um canivete a tentar fazer um buraco no frasco artesanal do
sal, Paolo. Devidamente alinhados, eles são um só: Pier Paolo Pasolini.
Quem?
Lição número dois: “Pier Paolo Pasolini, um dos maiores artistas
intelectuais italianos do século XX. Poeta, romancista, dramaturgo,
cineasta, linguísta e jornalista.” Ahhh jornalista, então é cá dos
nossos. Segue-se o pingue-pongue de rotina. Jornalismo escrito,
televisivo ou radiofónico? Lisbona, Oporto, Coimbra ou Sagres? Política,
economia, sociedade ou desporto? Quando a resposta é sport, Pier Paolo
Pasolini falam entre si. Continuam a falar. Pier mete a mão no meu ombro
como que a dizer “calma aí, já serás atendido”, Paolo consegue
finalmente fazer um furo no frasco artesanal de sal
que-afinal-é-de-pimenta e Pasolini baixa-se ligeiramente para nos
emprestar um livro. Será o momento do fare il portoghese?
Lição número três: não te rias quando os outros estão sérios. Abrimos o
livro e vemos imagens, manuscritos, reportagens, pensamentos... Tudo de
Pier Paolo Pasolini. “Isto não é futebol, é futebol--poesia”,
garantem-me. Mas o que fazem aqui? “Vamos ver a final, como tu. Sempre
que há um jogador do Bolonha na selecção italiana, nós acompanhamo-lo
até ao final.” E quem é do Bolonha? “Ai és jornalista desportivo?
Di-a-man-ti, conheces?” Ahhhh sim, ele é engraçado, porque é mais rápido
do que a própria sombra e causa sempre enormes problemas aos
adversários, como no jogo com a Inglaterra. “Sim, sim, sim, mas isso não
interessa nada. Estamos aqui para acompanhá-lo.” Mas porquê?
Lição número quatro: Pier Paolo Pasolini nasce em Bolonha em 1922. O
Bolonha é campeão italiano em 1925 e 1929 mas PPP é muito novo, não se
lembra de nada. Na sua adolescência, o Bolonha é campeão em 36, 37, 39 e
41. Pasolini agarra-se ao clube da terra como um adepto mais,
frenético, apaixonado, exacerbado. Independentemente da sua influência
sócio-político-cultural na Itália dos anos 50/60/70, Pasolini passa
invariavelmente os limites quando o assunto é futebol. É visto a jogar
de fato e gravata com os miúdos nas ruas mais pobres de Bolonha e de
Roma como é visto a debater tácticas, resultados, jogadas e defesas nos
cafés à noite. No Verão, passa férias em Grado, um paraíso para os mais
abastados na era pré-Maldivas e outros destinos exóticos. Lá, cruza-se
com futebolistas a sério, da Serie A, como Fabio Capello, e organiza
jogos com eles.
Lição número cinco: nove e meia da manhã de 16 de Março de 1975. Entram
uns vinte e tal gadelhudos na Cittadella, campo de treinos nas
imediações do Estádio Ennio Tardini (Parma). O Parma joga nesse dia em
Pescara e há quem aproveite a deixa para organizar um jogo para a
História. De um lado, um onze de electricistas, guionistas, e actores
vestidos à Bolonha, capitaneados por Pier Paolo Pasolini. Do outro, 11
juniores do Parma com t-shirts psicadélicas, liderados por Bernardo
Bertolucci. É o dérbi dos cineastas. A equipa de Pasolini chama-se
Centoventi (pela obra 120 giornate di sodoma), a de Bertolucci é a
Novecento (1900, o seu próximo filme com Robert de Niro, Gerard
Depardieu e Burt Lancaster). Atenção, isto não é um jogo amigável. As
duras críticas públicas de Pasolini ao Último Tango em Paris de
Bertolucci (ex--assistente de realização de PPP) dividem os cineastas.
Não se sabe ao certo o resultado final: 5-2, 4-2, 19-13. A única certeza
é que Pasolini deixa o campo antes do fim a gritar narcisistas.
Pasolini, o adepto à nossa esquerda, indica-nos o recorte do jornal
Gazzetta di Parma de 19 de Março de 1975, com declarações de Hugo
Chessari, jogador da equipa de PPP: “Ele não é como os outros, não joga
para se divertir. Só joga para ganhar. Quando vê que está a perder e sem
hipótese de recuperar, é isto.”
Lição número seis: em Outono de 1963, Pasolini viaja de Roma, onde vive
com a mãe, para Bolonha, onde monta um espectáculo nunca visto. Então
não é que junta todos os jogadores do Bolonha para jogarem futebol de
bairro com os mais desfavorecidos! É um documentário sobre
homossexualidade! A exaltação do corpo, os jovens taciturnos, a
masculinidade exacerbada... “Não é preciso ser nenhum Freud”, escreve
Pasolini nesse ano, “para se perceber que o futebol é um meio fortemente
homossexual. Ao mesmo tempo, a homossexualidade existe e é fortemente
reprimida. Sou muito sensível a essa repressão, ao abrigo da família e
da religião. O machismo dos políticos representa a má orientação da
masculinidade. E o futebol é levado por esse machismo.”
Lição número sete: em Janeiro de 1971, Pasolini escreve sobre o futebol
em geral. “Os brasileiros jogam um futebol de poesia, à base de dribles
e golos. O futebol europeu é um futebol em prosa, fundado na sintaxe,
na organização do jogo colectivo. Antecipo aqui um exemplo sobre
Bulgarelli [avançado do Bolonha e campeão europeu pela Itália em 1968],
que joga um futebol em prosa. Já Riva [avançado do Cagliari, também
campeão em 1968] é um poeta.”
Lição número oito: o primeiro romance de Pasolini sai em 1955, chama-se
Ragazzi di Vita e fala sobre a prostituição masculina. Escândalo. É-lhe
instaurado um processo por obscenidade pelo tribunal de Milão mas a
obra é um sucesso literário. Seis anos depois, sai o seu primeiro filme
Accatone. Crónica nua e crua de um proxeneta dos bairros pobres de Roma.
Mais um processo judicial. Em 1968, o filme Teorema é sobre um homem
misterioso que entra no dia-a-dia de uma família burguesa de Milão e
altera-lhe os hábitos com sucessivas relações sexuais a cada um dos
membros. Mais uma queixa por obscenidade, mais um processo e mais um
êxito popular. Há quem esteja preocupado com esta sequência. Na noite de
1 para 2 de Novembro de 1975, Pino Pelosi, um prostituto de 17 anos,
entra no Alfa Romeo de Pasolini para dar uma volta. Param em Ostia, na
região metropolitana de Roma. Algumas horas depois, Pasolini é
encontrado sem vida, com a cara desfigurada, num campo de futebol
(ironia das ironias). Pelosi é rapidamente apanhado pela polícia e
diz-se culpado. É condenado a nove anos de prisão. Em 2005, já solto,
volta atrás e diz-se inocente. “O crime foi cometido por três pessoas
com sotaque do Sul.” Assassinato político? O Ministério Público reabre o
processo e recolhe novas provas sobre o assassinato do artista mais
controverso da Itália contemporânea.
Lição número nove: nas nossas mãos, temos um recorte do jornal “Stadio”
do dia seguinte ao do assassinato. Lê-se: “A Organização de Actores de
Roma confirma a data, a hora e o local do jogo [Stadio Favorita, em
Palermo] contra uma equipa de antigas glórias do futebol italiano e
adianta que vai começar com dez jogadores, por ausência forçada de Pier
Paolo Pasolini. Decidiu-se que o seu lugar de extremo-esquerdo não será
ocupado por ninguém.”
Lição número dez: Silêncio na mesa. Então? “Sabes quem são os jogadores
pasolinianos da Itália?” Diamanti? “Não, esse é só do Bolonha, nunca
será um pasoliniano.” Quem, então? “Cassano. Fica atento ao Fantantonio
[número dez da Itália]. Se este Europeu é o dele, Pier Paolo Pasolini
ficaria orgulhoso. Como orgulhoso ficou no Euro-68, quando a Itália
ganhou a finalíssima à Jugoslávia com um golo do Riva.” Esse mesmo, o
poeta.
Lição número onze: se não sei quê não sei que mais, junta-te a eles. No
avião Varsóvia-Kiev, estamos sentados no 25 D. O 21 A, B e C estão
ocupados por italianos vestidos de azul. São os tais, só que o Pasolini
de hoje não é o de ontem, nem o Pier ou o Paolo. Todos os dias, trocam
de camisola mas a filosofia mantém-se. Devidamente alinhados, eles são
um só: Pier Paolo Pasolini. Esse mesmo, o poeta.
1 comentário:
Pasolini, um profundo conhecedor da vida.
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