sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

KAPUTT

Talvez influenciado por ter revisto há dias o filme A Pele, de Liliana Cavani, sobre o romance homónimo de Curzio Malaparte (1898-1957), decidi reler alguns capítulos da sua obra mais famosa, Kaputt (1944), traduzida para português nos anos sessenta do século passado; ignoro a data exacta da edição, já que a empresa "Livros do Brasil", não indicava, à época, o ano das suas publicações.

Foi Curzio Malaparte uma curiosa e fascinante personagem do seu tempo. Jornalista, escritor, dramaturgo, cineasta, cronista, diplomata e militar italiano, de seu verdadeiro nome Kurt Suckert, filho de pai alemão, e que viria a usar o apelido de Malaparte, por oposição paradoxal a Napoleão, que se chamava Buonaparte (mais tarde Bonaparte) e que morreu exilado em Santa Helena. Fascista no início da vida, temporariamente preso depois por ordem de Mussolini, convertido finalmente em opositor do regime nazi.

Mas ocupemo-nos de Kaputt, cujo nome provém do hebraico koppäroth, que significa "vítima", segundo o autor. Descreve Malaparte as suas andanças nos teatros de operações e nos salões mundanos, durante a Segunda Guerra Mundial. É notório o empenho que coloca em mostrar a sua familiaridade com as grandes figuras da época, e é igualmente evidente a sua intenção em alardear uma cultura vasta e profunda, tais são as referências a escritores, pintores, músicos, etc., e as suas citações provenientes de grandes obras literárias (por vezes com lapsos e imprecisões). Porque descreve os inúmeros almoços, jantares e banquetes em que participou, na companhia dos notáveis do seu tempo, Malaparte não se exime a proporcionar-nos também uma pormenorizada (e exagerada) descrição das iguarias, obrigando-nos a um esforço hercúleo para interpretar os mais requintados manjares servidos nos pratos de antanho.

Este livro, de quase 500 páginas, informa-nos não só de situações pitorescas ocorridas à época, mas igualmente dos horrores da guerra. As páginas sobre as atrocidades praticadas durante o conflito germano-soviético (países limítrofes incluídos) contêm momentos de rara violência, que o autor soberbamente nos relata, deixando-nos entrever a banalidade do mal. Na descrição das conversas com as altas figuras de então, civis e militares, conversas certamente adornadas de algumas (ou muitas) fantasias, Malaparte exibe uma apurada ironia e revela-nos um profundo desencanto da natureza humana.

A tradução de Amândio César (1921-1987) é normalmente fluente (não sei se realizada a partir do original italiano ou da versão francesa) mas apresenta alguns escolhos, nomeadamente nos nomes próprios (ou nas transliterações), o que por vezes nos obriga a um esforça de adivinhação. Sendo característica de Malaparte mencionar certos diálogos nas línguas originais, teria sido também conveniente que o tradutor nos indicasse em nota o seu significado. Presumido-se que a generalidade dos leitores (à época da edição) conhecesse o francês, e até mesmo o inglês, já é mais problemático que soubesse alemão, russo, romeno, polaco, búlgaro e outras línguas da Europa Central.

Alongando-se na reprodução de conversas com altas personalidades, e também com baixas, entremeadas de anedotas e ditos espirituosos, o volumoso livro poderia ser acusado de frivolidade. Sê-lo-á às vezes, mas também é verdade que procede, com imenso talento, ao relato de situações horríveis, de actos de desumana crueldade, de episódios em que a piedade desertou do coração de homens normalmente considerados pela sociedade como pessoas normais e até compassivas, e, sobretudo, de elevado grau de cultura e inteligência. Essas páginas são momentos de grande literatura e são dos escritos mais notáveis que Malaparte consignou nos seus livros.

Não pretendendo traçar aqui um, ainda que minúsculo, resumo da extensa biografia de Curzio Malaparte, refiro que o escritor, um fascista convicto na sua juventude, reconheceu posteriormente as atrocidades do regime nazi, que descreve em Kaputt, e, já no seu leito de morte (aos 59 anos), conseguiu a admissão (até aí recusada) no Partido Comunista Italiano, por decisão de Palmiro Togliatti. Convertido ao catolicismo, depois de ter abjurado certas afirmações que a Igreja condenara nos seus escritos, recebeu então, in articulo mortis, o baptismo e a primeira comunhão. 

A sua célebre casa, num rochedo de Capri, legou-a à República Popular da China.

 

4 comentários:

Anónimo disse...

Tanto mais de aplaudir quanto hoje Malaparte anda bastante esquecido. Para mim,uma das suas melhores obras é a notável casa de Capri, que infelizmente nunca vi,e que "participa" magnificamente em dois filmes,pelo menos: o "La Pelle",que aqui foi comentado,e sobretudo no "Mépris",um dos melhores Godards.
De notar finalmente que não é "in articolo", mas "in articulo".

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para Anónimo:

Exacto. A tecla falhou. Vou corrigir o "o".

Ana disse...

Em boa hora veio o seu artigo! Digo-o por ter escrito enviesadanmente algo que se refere a esse autor, mas não ter nunca lido nada do que ele escreveu. Nem ter encontrado ninguém que o tivesse lido e dado disso notícia. Tinha curiosidade e continuo a tê-la. Lê-lo-ei, quando puder. Mas agora com mais informação e com a vantagem de saber que preciso de estar preparada para a violência (essa abjecta característica humana!), o que, pelo menos para mim, nem sempre é fácil.
Se quiser ler o 'escrito enviesado' que referi, tenho todo o gosto.
https://ccaana.wixsite.com/my-site
Grata.
Ana

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para Ana:

Muito obrigado. Li agora o seu texto, com muito gosto. Infelizmente, quando estive em Capri não tive possibilidade de visitar a casa de Malaparte.