sábado, 26 de fevereiro de 2022

A SITUAÇÃO NA UCRÂNIA (II)

Naturalmente, sou contra a guerra na Ucrânia. Como fui contra as guerras que a precederam, na Jugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria. Tive ocasião de exprimir publicamente a minha opinião nessas ocasiões.

Surpreende-me, contudo, o coro de virgens ofendidas que agora rasgam as vestes com a presente ofensiva militar quando não tiveram uma palavra a dizer aquando dos anteriores actos de agressão, que foram perpetrados pelos Estados Unidos e pela NATO contra aqueles países. Certamente que houve excepções, mas não se ouviu o ruído que ecoa neste momento nas televisões, nos jornais, nas redes sociais. Que me recorde, a única manifestação significativa a que assisti foi a realizada por ocasião da invasão anglo-americana do Iraque, e essa foi encabeçada por Mário Soares. E não esqueço a defesa acérrima que o jornalista José Manuel Fernandes, então no PÚBLICO, fez do ataque anglo-americano ao Iraque, proclamando que o caminho para Jerusalém, no sentido de um entendimento entre israelitas e palestinianos, passava por Baghdad. Ainda estamos à espera.

Mas regressemos à situação no terreno. Sabemos todos que o objectivo de Vladimir Putin é o derrube do actual governo ucraniano, que ele considera hostil a Moscovo, e que uma adesão da Ucrânia à NATO seria uma ameaça para a Rússia. Este pensamento é dominante no Kremlin desde o desmoronamento da União Soviética e foi por causa dele que foram então solicitadas garantias aos Estados Unidos de que os antigos países da zona de influência soviética (post-Yalta) ou as repúblicas da ex-URSS nunca seriam admitidas na NATO. Garantias solicitadas por Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin a Bill Clinton que foram prestadas mas não cumpridas, como escrevi há dois dias.

Na prossecução do seu objectivo, e tendo concentrado milhares de soldados na fronteira com a Ucrânia, Putin reconheceu a independência das repúblicas de Luhansk e de Donetsk, já autoproclamadas em 2014, acedendo ao pedido dos seus líderes para envio de tropas para defesa daquelas regiões. Não estou obviamente na cabeça de Vladimir Putin (possivelmente ninguém está) mas tenho previsto o desenrolar das operações levadas a cabo pela Federação Russa. Sendo o presidente russo considerado um hábil estratega, não admiti como possível um bombardeamento da Ucrânia, parecendo-me lógico que Moscovo limitasse as acções militares ao Donbass e procurasse por outros meios a substituição governamental que deseja e julga indispensável à segurança do seu país. Assim, assegurei há dias aos meus amigos ucranianos que não haveria bombardeamentos no território extra-Donbass. Confesso que me enganei. Ou alguma coisa terá obrigado Putin a rever os seus planos.

Escrevi anteontem, já depois do início dos bombardeamentos, que considerava um erro grave qualquer tipo de ocupação militar da Ucrânia, e que esperava que não se ultrapassasse o limite de alguns ataques cirúrgicos a alvos exclusivamente militares. Segundo as notícias a que vamos tendo acesso, afigura-se que existe a vontade de um controlo global do país.

A guerra na Ucrânia, como todas as guerras, é uma tragédia. Pela perda de vidas de militares (de ambos os lados), pela perda de vida de civis (que sempre ocorre, mesmo que se trate dos chamados danos colaterais), pelas destruições materiais, pelo êxodo das populações, enfim, por todas as consequências de um conflito bélico. Mas neste caso (como já sucedeu noutros) há a acrescentar os prejuízos de ordem moral decorrente de ucranianos e russos estarem desde há séculos ligados por laços familiares e de amizade, de convivência habitual, só esporadicamente perturbada nos últimos tempos por forças exógenas que terão eventualmente contribuído para se chegar à situação actual. E há igualmente os inevitáveis danos políticos para o regime russo (não me refiro ao povo russo), para não falar nas sanções económicas que, como sempre, afectarão especialmente os mais vulneráveis.

Dado que as vias diplomáticas nunca se extinguem, mesmo em tempos de guerra, impõe-se a procura rápida de uma solução que conduza a um cessar-fogo e ao estabelecimento de negociações com vista a restabelecer a paz. Sob pena de um agravamento da situação a níveis de consequências imprevisíveis, já que o governo de Kiev decretou a mobilização geral dos cidadãos. Não sei quais os actores políticos capazes de uma intervenção nesse sentido, mas é nestes momentos que surgem às vezes figuras de autoridade indiscutível e cuja palavra é escutada.

Convinha, também, que o Ocidente não lançasse achas para a fogueira, como lhe é peculiar, e de que é exemplo recentíssimo o convite à Suécia e à Finlândia, vizinha da Rússia, para participarem numa reunião da NATO, da qual não fazem parte. Sendo a NATO o pomo de discórdia que originou esta guerra, este convite só poderá ser interpretado por Moscovo como uma provocação.

Para concluir, porque já me alonguei, direi tão só que esta guerra, especialmente se for duradoura, provocará estragos económicos e sociais muito graves em toda a Europa (onde nos situamos) e que se o Ocidente ultrapassar o que o Kremlin considera as suas linhas vermelhas Putin não hesitará em carregar no botão nuclear. Então, as consequências seriam inimagináveis!

 

A SITUAÇÃO NA UCRÂNIA

Em primeiro lugar, quero manifestar a minha solidariedade com todos os ucranianos, residentes em Portugal, na Ucrânia ou algures, que são, neste momento, vítimas de decisões irreflectidas, idiotas e perigosas (para não dizer outra coisa) do Governo de Kiev.
 
Saliento, também, a acção do Governo Português ao declarar aceitar receber em Portugal todos os familiares de cidadãos ucranianos residentes no nosso país.
 
Analisemos agora a situação decorrente da ofensiva militar desencadeada esta manhã pela Rússia na Ucrânia.
 
Não possuo neste momento dados objectivos e concretos sobre a amplitude da acção militar russa.
Era expectável, na sequência do reconhecimento, por Vladimir Putin, da independência das repúblicas separatistas de Donetsk e de Luhansk, que haveria um apoio militar de Moscovo à concretização dessa situação no terreno.
 
É também conhecida a oposição do Kremlin à continuação em Kiev de um governo manifestamente anti-russo, ao contrário do que se verificou nos tempos que se seguiram à dissolução da União Soviética.
Seria menos expectável a realização de bombardeamentos em outras localidades, como parece ter acontecido, a menos que se trate de ataques cirúrgicos para neutralizar uma resposta das forças ucranianas às forças russas, já que o presidente Volodymyr Zelensky decretou a mobilização geral do país.
 
Também é possível que esses ataques se destinem a acelerar a substituição do governo ucraniano anti-russo por um governo minimamente independente. Os próximos dias serão esclarecedores.
Não acredito que a Rússia tenha a intenção de ocupar militarmente a Ucrânia, o que, em minha opinião, constituiria um erro grave.
 
Importa salientar, para quem ainda não o saiba, que a Ucrânia é constituída por regiões cultural, linguística e tradicionalmente muita diversas, desde um ocidente de forte influência polaca a um leste decididamente russófilo.
 
O governo do presidente Zelensky (e dos seus acompanhantes) ignorou voluntariamente a conjuntura do país, optando por um alinhamento com Washington e apoiando-se em elementos oriundos de forças estranhas, incluindo confessados nazis, como os membros do Batalhão de Azov. Houve, ao longo dos últimos oito anos, provocações e agressões a cidadãos considerados pró-russos, sem qualquer reacção do governo central. Entre as muitas decisões erradas de Kiev conta-se a proibição do ensino da língua russa na Ucrânia!!! Também Kiev não cumpriu o ponto nº 3 do Protocolo de Minsk, que obrigava o governo ucraniano a estabelecer constitucionalmente a regionalização do país, o que teria evitado um deteriorar da situação. 
 
Finalmente, Kiev solicitou formalmente a adesão da Ucrânia à NATO, o que poderá ser considerado como uma máxima provocação à Rússia.
 
Ninguém ignora que foram dadas garantias dos Estados Unidos (Bill Clinton) a Mikhail Gorbachev e a Boris Yeltsin de que, após o desmoronamento da URSS, e tendo sido extinto o Pacto de Varsóvia, a NATO não alargaria os seus limites a Leste. Não há um tratado formalmente assinado mas essas garantias são reais e disso têm testemunhado não só os russos mas muitos diplomatas ocidentais. Ora, verificou-se que não só os antigos países comunistas do Leste europeu ingressaram rapidamente na Aliança Atlântica como nela foram integradas três república da própria União Soviética (Estónia, Letónia e Lituânia). Além do que todos esses países foram incluídos na União Europeia. Este "cerco" da Rússia a ocidente foi visto com o maior desagrado pelo Kremlin que não terá intervindo na altura por desorganização interna ou falta de meios. Entendeu agora Putin tentar reverter a situação ou, pelo menos, evitar que ela se agrave.
 
O que escrevi é do conhecimento da maioria das pessoas interessadas na matéria, mas convém, às vezes, recordar.
 
Também não compreendo o coro de lamentações que se ergue da parte daqueles que não se indignaram quando os Estados Unidos e seus Aliados e a NATO atacaram, invadiram e ocuparam, sob falsos pretextos, territórios a milhares de quilómetros de distância, como foi o caso da Jugoslávia, do Afeganistão, do Iraque e da Líbia, para só referir os mais recentes.
 
O facto de Volodymyr Zelensky ter passado dos palcos da televisão para o palco da política foi um desastroso erro de "casting".
 
Como em todos os conflitos desta natureza, embora se tente evitá-lo, ou se diga que se tenta, haverá sempre vítimas civis, o que não podemos deixar de lamentar profundamente.
 
Voltarei ao assunto quando estiver na posse de novos e fidedignos elementos.
 
(PUBLICADO NO FACEBOOK EM 24/02/2022)
 
 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

KAPUTT

Talvez influenciado por ter revisto há dias o filme A Pele, de Liliana Cavani, sobre o romance homónimo de Curzio Malaparte (1898-1957), decidi reler alguns capítulos da sua obra mais famosa, Kaputt (1944), traduzida para português nos anos sessenta do século passado; ignoro a data exacta da edição, já que a empresa "Livros do Brasil", não indicava, à época, o ano das suas publicações.

Foi Curzio Malaparte uma curiosa e fascinante personagem do seu tempo. Jornalista, escritor, dramaturgo, cineasta, cronista, diplomata e militar italiano, de seu verdadeiro nome Kurt Suckert, filho de pai alemão, e que viria a usar o apelido de Malaparte, por oposição paradoxal a Napoleão, que se chamava Buonaparte (mais tarde Bonaparte) e que morreu exilado em Santa Helena. Fascista no início da vida, temporariamente preso depois por ordem de Mussolini, convertido finalmente em opositor do regime nazi.

Mas ocupemo-nos de Kaputt, cujo nome provém do hebraico koppäroth, que significa "vítima", segundo o autor. Descreve Malaparte as suas andanças nos teatros de operações e nos salões mundanos, durante a Segunda Guerra Mundial. É notório o empenho que coloca em mostrar a sua familiaridade com as grandes figuras da época, e é igualmente evidente a sua intenção em alardear uma cultura vasta e profunda, tais são as referências a escritores, pintores, músicos, etc., e as suas citações provenientes de grandes obras literárias (por vezes com lapsos e imprecisões). Porque descreve os inúmeros almoços, jantares e banquetes em que participou, na companhia dos notáveis do seu tempo, Malaparte não se exime a proporcionar-nos também uma pormenorizada (e exagerada) descrição das iguarias, obrigando-nos a um esforço hercúleo para interpretar os mais requintados manjares servidos nos pratos de antanho.

Este livro, de quase 500 páginas, informa-nos não só de situações pitorescas ocorridas à época, mas igualmente dos horrores da guerra. As páginas sobre as atrocidades praticadas durante o conflito germano-soviético (países limítrofes incluídos) contêm momentos de rara violência, que o autor soberbamente nos relata, deixando-nos entrever a banalidade do mal. Na descrição das conversas com as altas figuras de então, civis e militares, conversas certamente adornadas de algumas (ou muitas) fantasias, Malaparte exibe uma apurada ironia e revela-nos um profundo desencanto da natureza humana.

A tradução de Amândio César (1921-1987) é normalmente fluente (não sei se realizada a partir do original italiano ou da versão francesa) mas apresenta alguns escolhos, nomeadamente nos nomes próprios (ou nas transliterações), o que por vezes nos obriga a um esforça de adivinhação. Sendo característica de Malaparte mencionar certos diálogos nas línguas originais, teria sido também conveniente que o tradutor nos indicasse em nota o seu significado. Presumido-se que a generalidade dos leitores (à época da edição) conhecesse o francês, e até mesmo o inglês, já é mais problemático que soubesse alemão, russo, romeno, polaco, búlgaro e outras línguas da Europa Central.

Alongando-se na reprodução de conversas com altas personalidades, e também com baixas, entremeadas de anedotas e ditos espirituosos, o volumoso livro poderia ser acusado de frivolidade. Sê-lo-á às vezes, mas também é verdade que procede, com imenso talento, ao relato de situações horríveis, de actos de desumana crueldade, de episódios em que a piedade desertou do coração de homens normalmente considerados pela sociedade como pessoas normais e até compassivas, e, sobretudo, de elevado grau de cultura e inteligência. Essas páginas são momentos de grande literatura e são dos escritos mais notáveis que Malaparte consignou nos seus livros.

Não pretendendo traçar aqui um, ainda que minúsculo, resumo da extensa biografia de Curzio Malaparte, refiro que o escritor, um fascista convicto na sua juventude, reconheceu posteriormente as atrocidades do regime nazi, que descreve em Kaputt, e, já no seu leito de morte (aos 59 anos), conseguiu a admissão (até aí recusada) no Partido Comunista Italiano, por decisão de Palmiro Togliatti. Convertido ao catolicismo, depois de ter abjurado certas afirmações que a Igreja condenara nos seus escritos, recebeu então, in articulo mortis, o baptismo e a primeira comunhão. 

A sua célebre casa, num rochedo de Capri, legou-a à República Popular da China.

 

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

SALÓ

Revi esta tarde em minha casa, na companhia de um amigo, "Saló ou os 120 Dias de Sodoma", de Pier Paolo Pasolini, (1975), apresentado ao público já depois do realizador ter sido assassinado em Óstia, curiosamente uma das dioceses suburbicárias de Roma, de que é tradicionalmente bispo o cardeal-decano do Sacro Colégio.

Este filme é de alguma forma o testamento cinematográfico de Pasolini, cuja obra seria simbolicamente encerrada com o seu homicídio (em circunstâncias ainda hoje não esclarecidas), uma vez que ao longo dos seus filmes tivera a oportunidade de amplamente discorrer sobre os vícios e as virtudes dos homens.

Baseado no romance "Os 120 dias de Sodoma", do Marquês de Sade, e situada a acção na efémera República de Saló (no norte de Itália), o derradeiro feudo de Mussolini, depois da sua destituição de chefe do Governo italiano, no fim da Segunda Guerra Mundial, o filme convoca para a tela a perversão absoluta do ser humano. Por maiores que sejam as violências já apresentadas no cinema e por mais cruéis que sejam os actos descritos em filmes, nada se fizera antes comparável a "Saló", e nada se faria depois.
 

Como na obra do Marquês de Sade, o filme está dividido em quatro partes, que, a exemplo da "Divina Comédia", de Dante, têm o nome de círculos: o "Antinferno" (Vestíbulo do Inferno); o "Girone delle manie" (Círculo das paixões); o "Girone della merda" (Círculo da merda) e o "Girone del sangue" (Círculo do sangue).

Ao longo do filme há referências à "Genealogia da Moral", de Nietzsche, aos "Cantos", de Ezra Pound, a "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust e a diversos textos de Roland Barthes, Maurice Blanchot e Pierre Klossowski.

Resumindo: quatro homens de poder, decididamente libertinos, reúnem numa casa 18 belos adolescentes de ambos os sexos, que são submetidos a cenas de depravação, práticas sexuais aberrantes, humilhação, tortura e finalmente morte. Dispenso-me dos pormenores que não cabem neste texto e que só poderiam fornecer uma pálida imagem do que se vê no filme.

"Saló ou os 120 dias de Sodoma" é um filme que expressa uma situação limite da sociedade contemporânea. Mais do que um filme sobre sexo, crueldade, alucinação, sadismo é um filme eminentemente político, como, de resto, todos os filmes de Pasolini. Porque se atingiu um extremo, a película foi interditada em Itália, depois autorizada, novamente proibida para voltar a ser permitida bastante mais tarde. E foi na altura interditada também em numerosos países. Em Portugal foi apresentada nos cinemas em finais dos anos 70 do século passado. Vi-a então mais do que uma vez e constatei que havia sempre numerosos espectadores que se retiravam da sala antes do fim da exibição.

"Saló" é um filme que nos obriga a uma profunda reflexão sobre os mecanismos do poder e que constitui um marco indelével na história do cinema.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

O FANTASMA

Revi hoje o filme O Fantasma, de João Pedro Rodrigues (2000), que vi pela primeira vez, creio, num dos cinemas do Saldanha Residence, que possivelmente já não existe. 

Trata-se de uma película curiosa e inovadora, que tem como argumento as obsessões sexuais de um jovem cantoneiro (julgo que se chama assim) da recolha do lixo nos camiões da Câmara Municipal de Lisboa, e que acaba por se apaixonar por um rapaz morador numa rua do trajecto habitual da rotina nocturna. É claro que o filme trata também da solidão, da angústia, do fetichismo, das relações de poder, e seria diminui-lo se o reduzíssemos a umas meras aventuras de sexo.

Sendo um filme de argumento abertamente homossexual, o primeiro que me lembre a ser feito em Portugal, e porque o realizador não pretendia actores profissionais, foi finalmente escolhido para o papel de protagonista (Sérgio), o jovem Ricardo Meneses que, quando João Pedro Rodrigues o descobriu num bar gay de Lisboa, tinha apenas 17 anos. Assim, e por causa dos "costumes" actualmente vigentes, a rodagem foi adiada por alguns meses até o Ricardo ter completado os 18 anos. O filme não contém cenas propriamente "chocantes", sendo a única que pode incomodar alguns espectadores mais sensíveis e menos acostumados aos costumes (outros, neste caso) um take num urinol público (coisa que hoje já não existe), em que um homem se ajoelha e realiza fellatio ao jovem Ricardo, aliás, à personagem Sérgio.

Ricardo Meneses

Refira-se que O Fantasma foi apresentado em diversos festivais internacionais e recebeu várias nomeações em Veneza, Salónica, Nova Iorque, Karlovy Vary, Gant, Bergen, Rejkjavik, Joanesburgo, etc.

A propósito de O Fantasma, e das fantasias que certas profissões suscitam nos próprios profissionais e nos outros, recordo um episódio que me foi contado por um velho amigo (velho em ambos os sentidos, porque era razoavelmente mais velho do que eu e porque éramos amigos há longo tempo), ocorrido vários anos antes da realização do filme (talvez nos anos 80/90), mas que tem com este uma relação directa. Não tenho o hábito de relatar histórias pessoais, mas não resisto a narrar este episódio que JBV (que foi o empresário de Amália Rodrigues), então me contou, com o seu aguçado sentido de humor.

Numa noite de Verão, JS (filho de um conhecido maestro português, há muito falecido e do qual possuo orgulhosamente a batuta de regência), também meu amigo (esse talvez da minha idade, mas que não vejo há décadas) - seguia no seu automóvel por uma rua estreita de Lisboa, quando se lhe deparou à frente, a certa altura, um camião de recolha do lixo que não podia, obviamente ultrapassar. Neste sucessivo pára/arranca, acabou por meter conversa com um dos rapazes que procedia ao despejo dos contentores para o interior do camião. Parece que o rapaz era bem parecido e JS marcou um encontro com ele para o fim da operação de recolha, lá para as três da madrugada, em sítio que ignoro, certamente no término do percurso. Levou-o depois a casa e o entendimento foi tão perfeito que logo combinou novo encontro para um dia em que o jovem cantoneiro estivesse de folga. Assim aconteceu, tendo-se este então apresentado lavado e bem vestido, não envergando já a farda fosforescente de serviço. A relação voltou a correr bem mas JS achou que se havia perdido algo do fascínio do primeiro encontro, ou pela ausência da farda ou mesmo porque os odores do lixo doméstico haviam desaparecido do corpo do jovem, agora limpo e perfumado.

Contando JS o ocorrido a JBV, com quem tinha uma relação de confiança, este retorquiu-lhe sarcástico: «Lavaste, estragaste!», tal como Eça numa carta para Camilo.

Não imagina a Câmara Municipal de Lisboa, e possivelmente todas as outras, os encontros proporcionados pela recolha do lixo!