Só agora tive oportunidade de ler Rainha D. Amélia - Uma Biografia, de José Alberto Ribeiro (JAR), publicado em 2013/2019. Trata-se de um importante estudo sobre a última rainha de Portugal, figura a quem o autor tem dedicado muito do seu trabalho de investigação. Para o efeito, JAR teve oportunidade de consultar os diários privados de D. Amélia, todos redigidos em francês, que esta manteve ao longo de 65 anos da sua vida, desde que chegou a Portugal até próximo do seu falecimento em França. Os restos mortais da rainha foram trasladados para Portugal durante o Estado Novo.
Era desejo de D. Amélia que estes diários, bem como outros papéis privados fossem queimados após a sua morte, o que não aconteceu, como aliás sucede, felizmente, na maioria dos casos. Estou agora a lembrar-me de Kafka. O principal herdeiro foi seu sobrinho Henrique, conde de Paris, que recebeu o maior lote dos diários. Outro lote, mais pequeno, ficou em posse de Louis Jouve, último mordomo de D. Amélia. Os diários que são propriedade da Casa Real de Orléans estão depositados nos Arquivos Nacionais de França, em Paris. Os documentos que ficaram em posse do mordomo, diários e outros papéis, são hoje propriedade do coleccionador francês Rémi Fénérol. Regista o autor ter tido a prerrogativa de ter sido, em ambos os casos, a primeira pessoa a ter consultado estes arquivos na sua totalidade.
Relativamente aos documentos da colecção Fénérol, desejou o proprietário que algumas informações ficassem secretas até sua ulterior decisão, vontade que o autor respeitou mas que, obviamente, ao referir certos assuntos, estes nos suscitam a maior curiosidade. É o caso de revelações de D. Amélia sobre a morte do Delfim de França (Luís XVII) ou, ainda mais importante, sobre a morte do arquiduque Rodolfo de Habsburg. Sobre este último caso, refere o autor constar dos papéis de D. Amélia as dúvidas manifestadas pela imperatriz Elisabeth de Áustria (Sissi), quando visitou D. Amélia no Palácio da Pena, sobre as circunstância da morte de seu filho Rodolfo no Pavilhão de Caça de Mayerling. [Consagra a história oficial que Rodolfo, filho de Sissi e do imperador Francisco José se terá suicidado depois de ter morto com um tiro de pistola a sua presumível amante. a baronesa Maria Vetsera. Num primeiro momento, foi dito que se tratou de um acidente com a limpeza da arma, tendo Francisco José intercedido para o efeito junto do Papa, pois um suicidado não poderia ter enterro religioso o que seria um impensável escândalo para a Casa Imperial Austríaca. Depois divulgou-se a versão oficial do suicídio. Mas há a tese de que Rodolfo foi assassinado por ordem do próprio Governo austríaco (eventualmente com conhecimento do próprio pai, o imperador) quer pelo facto de ter ideias que não se coadunavam com a política da época, quer pelo facto da baronesa Maria Vetsera ser um transexual. O realizador húngaro Miklós Jancsó tem um curioso filme sobre o assunto, Vizi privati, pubbliche virtù (1976), onde aborda estas perspectivas "heterodoxas".]
Existem alguns livros publicados sobre a rainha D. Amélia, como o de Laurence Catinot-Crost, Amélie de Portugal, Princesse de France (2000) ou de Stéphane Bern, Eu, Amélia, Última Rainha de Portugal (1999), e uma vasta bibliografia onde é tratada, directa ou indirectamente, a figura da rainha D. Amélia. Em 1914, Lucien Corpechot publicou, com a supervisão da monarca, Souvenirs sur la Reine Amélie de Portugal, com tradução portuguesa em 2007: Memórias Inéditas da Rainha D. Amélia. [Possuo, há muitos anos, a edição, ricamente ilustrada, Rainha D. Amélia, de Ayres de Sá (1928)].
Na transcrição de documentos a que procede, JAR menciona frequentemente ANP, sigla que não consta das Fontes Manuscritas mencionadas no Índice, onde figuram, por exemplo, ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo), APDVV (Arquivo do Paço Ducal de Vila Viçosa), AFDM (Arquivo da Fundação D. Manuel II), etc. Presumo que o autor se queira referir aos Archives Nationales de France (em Paris), que designa pela sigla ANF (que, pelo facto de se encontrarem em Paris, passou a designar por ANP nas Notas.
José Alberto Ribeiro procura fornecer-nos o retrato de D. Amélia e da sua época através do testemunho da própria, consagrado nos seus Diários. A transcrição segue uma ordem tendencialmente cronológica, e os escritos da rainha são intercalados por considerações do autor visando contextualizar os acontecimentos referidos. Apesar das aspas e dos parágrafos torna-se às vezes difícil distinguir o que é de D. Amélia e de JAR, tal a profusão de citações, e de compreender os parentescos (inúmeros) da soberana. Sabemos que as casas reais europeias estavam ligadas através de uma inextricável teia de casamentos, e que todos os reis e príncipes eram primos uns dos outros. Talvez tivesse sido conveniente a inclusão, em apêndice, de uma nota explicativa da família mais próxima de D. Amélia (do lado francês, já que o português é minimamente conhecido), pois as duas árvores genealógicas apresentadas no fim do volume (Casa de Orléans e Casa de Bragança) são manifestamente insuficientes. A da Casa de Orléans, além de letra minúscula é ilegível a meio, dada a costura do livro (seria preferível um desdobrável) e não dá uma ideia dos parentes mais próximos de D. Amélia e das sucessivas alterações da chefia da Casa de Orléans (no seu ramo oriundo dos Bourbons), não apresentando também a representação da Casa de Bourbon (que existe), nem da Casa Imperial de França (Bonaparte).
A descrição dos acontecimentos verificados durante o reinado de D. Amélia e no seu exílio é feita por JAR numa perspectiva de neutralidade, como é conveniente em investigação histórica, embora nem sempre aconteça. Não fiz propriamente uma leitura crítica do livro, e por isso não sou garante da autenticidade de todas as afirmações, mas saltaram-me aos olhos algumas incorrecções que seria conveniente corrigir em edições futuras.
Por exemplo, a propósito de tomadas de posição "avançadas para a época" da infanta Eulália de Espanha, está escrito (p. 215) que o rei Afonso XIII era seu tio. Mas não é verdade, era de facto seu sobrinho; na página 224 está escrito que o casamento de D. Manuel II (1913) no Palácio de Sigmaringen foi celebrado pelo cardeal-patriarca de Lisboa, monsenhor Neto. Também não é verdade. O cardeal D. José Sebastião Neto resignara de patriarca de Lisboa em 1907, retirando-se para um convento, tendo sido substituído nessa data por D. António Mendes Belo; na página 265 está escrito que o golpe militar de 25 de Maio de 1926 foi liderado pelo general Costa Gomes. Também não é verdade. O golpe militar foi em 28 de Maio e não em 25 e o general era Gomes da Costa e não Costa Gomes. Este último esteve muito mais tarde envolvido em diversas conspirações mas em 1926 ainda era uma criança.
A esposa de D. Manuel II, a princesa Augusta Vitória de Hohenzollern-Sigmaringen, é mencionada algumas vezes como rainha, o que também é incorrecto. Ao tempo do seu casamento, D. Manuel II era já ex-rei, pelo que a esposa nunca foi rainha de Portugal. Aliás, na realeza europeia, as mulheres que casaram com alguns ex-reis não passaram a usar o título de rainhas.
Existem algumas outras imprecisões, mas não é minha intenção estar a assinalá-las aqui; tal como vários erros ortográficos na menção de nomes estrangeiros.
Mas tem muito mérito esta obra de JAR ao dar-nos a conhecer, através dos diários de D. Amélia, a sua visão do Portugal e do mundo e dos acontecimentos seus contemporâneos. A rainha foi uma das últimas representantes de uma aristocracia dos finais do século XIX e não compreendeu (certamente não poderia compreender) os "ventos de mudança" que de todos os lados sopravam. São compreensíveis as suas indignações com a forma que revestia a vida política no nosso país, nos reinados de seu sogro, de seu marido, de seu filho e no exílio. Mas o mal já vinha de trás; os portugueses não conseguiram entender-se, constitucionalmente, desde a Revolução de 1820. Lembremo-nos dos pronunciamentos do tempo de D. Maria II. O reinado de D. Pedro V foi curto, mas a instabilidade agravou-se com D. Luís e sobretudo com D. Carlos. Os monarcas não encontraram remédio para uma "conciliação" nacional. Quando D. Carlos deu plenos poderes a João Franco já era tarde e também o rei, pela forma como conduziu a sua vida, não se terá apercebido da gravidade da situação, que o levou à imprudência de atravessar o Terreiro do Paço (1908) em carro descoberto num momento em que a tensão estava ao rubro. Tinha sido publicado há pouco tempo o livro de António de Albuquerque, O Marquês da Bacalhoa, que, usando nomes supostos, atacava violentamente D. Carlos, D. Amélia (denunciando uma relação lésbica desta com a condessa de Figueiró), etc. Aliás, o próprio Afonso Costa, chefe do Partido Republicano, proclamara nas Cortes que por menos crimes que os de D. Carlos rolara no cadafalso a cabeça de Luís XVI.
O Regicídio, que foi (sabe-se hoje, pelo menos) um acto politicamente inútil, já que D. Carlos se encontrava gravemente doente, catapultou para o trono o infante D. Manuel, com 18 anos e sem qualquer experiência política, até porque era mais dedicado aos seus luxos pessoais, e j'en passe... Não conseguiu, nem conseguiria, impedir a proclamação da República, em 1910. Mesmo no exílio, e os diários de D. Amélia são disso testemunho, D. Manuel II interessou-se sempre mais pela sua vida privada do que pelos acontecimentos verificados em Portugal.
Tentou D. Manuel II, uma vez que do seu casamento com Augusto Vitória de Hohenzollern não havia nem era esperada descendência, assegurar a sucessão do trono, especialmente após a morte do herdeiro presuntivo, seu tio, o infante D. Afonso. Não havendo descendentes do ramo constitucional preenchendo os requisitos essenciais, gizou-se uma aproximação com o ramo legitimista da Casa de Bragança, chefiada por D. Miguel (II) a favor de seu filho D. Duarte Nuno. Os chamados pactos de Dover (1912) e de Paris (1922) não foram conclusivos, mas os monárquicos portugueses acabariam por aceitar D. Duarte como uque de Bragança e chefe da Casa Real Portuguesa.
Registe-se que D. Amélia visitou Portugal em 1945, a convite de Salazar, estadista que muito apreciava, pois fora capaz de pôr alguma ordem no país, depois dos buliçosos anos da Monarquia Constitucional e da I República.
Muitas e muito interessantes coisas se poderiam ainda escrever sobre este livro e sobre a época a que se refere e por isso se aconselha a sua leitura. Estudando a vida das figuras que, pelas suas funções, desempenharam papéis importantes em Portugal, aprendemos sempre mais sobre a nossa História.
6 comentários:
Temo que o autor do blog,talvez por falta de tempo, "despache" apressadamente e negativamente os reinados de D.Luiz e sobretudo D. Carlos. Como presumo ser pessoa muito ocupada,é capaz de não ter tido ocasião de ler as magníficas biografias de Filomena Mónica sobre Fontes Pereira de Melo e de Rui Ramos sobre D.Carlos,por exemplo. Mas eventualmente consiga uns minutos para os sumários capítulos da História de Portugal coordenada por Rui Ramos,com Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro. Apesar das dificuldades,houve durante a Monarquia Constitucional progresso económico,social,cultural, e mesmo na politica externa apesar do incidente do Ultimato. A I República foi bastante mais negativa para o país do que o período da Monarquia Constitucional.
Não sei a razão pela qual a minha proverbial preguiça ainda não me obrigou a comprar este livro, mas de facto há muito desejo fazê-lo, "vais er desta".
Corpechot tem servido e base para todas as obras posteriormente publicadas e se alguma são notadamente ficcionais, como é o caso do livro de S. Bern, outras vão repetindo aquilo que se sabe. Contudo, no seu monumental volume D. Carlos I, Rocha Martins foca aspectos da intervenção de D. Amélia nas mais variadas áreas do seu multifacetado interesse, daí podendo facilmente tecer-se a rede que nos leva à desastrosa política do período liberal que se estenderia até 1926, agravada sobretudo após a violenta e totalmente desnecessária subversão de 1910.
D. Amélia, se foi uma grande mulher, mais ainda o terá sido no seu papel de consorte real, trazendo para Portugal uma boa série, ainda existente, de políticas e instituições culturais e de assistência social que poucos poderão ombrear. Daí ao tardio reconhecimento geral da sua acção consiste numa satisfatória e popular reparação que muito justamente lhe foi feita. A soma de tudo aquilo que deliberadamente lhe foi feito e o exílio, poderiam facilmente tê-la feito esquecer o país onde durante duas décadas e meia foi sobrevivendo, desde cedo atacada pela sua imponência física num momento de anões políticos não apenas físicos, como morais. A sua figura notoriamente nas fotos paira sobre as cabeças dos demais, talvez um simpático reflexo daquilo que o dia a dia e a história confirmou
Como portugueses podemos estar descansados, pois a reparadora justiça realizou-se e a rainha D. Amélia é hoje admirada como uma das grandes de Portugal. Um sujeito há pouco falecido, reconheceu-o indirectamente e de tal forma que para além de tomar a titularidade do combate à tuberculose que ela ferreamente controlou, organizou, subvencionou e incansavelmente protegeu, ocuparia também aquele espaço no jardim das Necessidades onde ela passaria momentos da sua vida diária.
* O Marquês da Bacalhoa que o nefando, cobarde e indecente Afonso Costa classificaria como um dos caboucos da república, n\ao passa de um dejecto levado à prensa, mostrando à saciedade a mente turva que em certos círculos então imperou e que devo dizer, teimosamente chegou aos nossos dias.
Para o Anónimo das 22:46:
Não despachei apressadamente os reinados de D. Luís e de D. Carlos. Só que o livro é sobre D. Amélia. E mesmo assim não discorri sobre o reinado dela mas apenas sobre o livro em apreço.
Para o Anónimo das 7:37:
Há hoje um já razoável número de biografias de D. Amélia. Lendo todas elas pode ficar-se com uma ideia mais próxima da realidade, e, especialmente, do que ela pensava do país. O livro comentado, transcrevendo parte dos Diários, ajuda.
Voltando um pouco atrás. "Despachou" no sentido de ter emitido opinião sumária mas clara e, no meu ponto de vista, errada, tal como a do comentador seguinte. É só.
Para o Anónimo das 22.29:
Já referi que não estava em causa opinar sobre os reinados de D. Luís e de D. Carlos. Aliás, nem mesmo emiti opinião acerca do reinado de D. Amélia em particular. O meu comentário foi ao livro. Quanto à época, para precisar o que se depreende dos Diários da rainha, é que havia um desfasamento entre o pensamento da Corte e o da Nação, e que já vinha de trás, como a História o demonstrou.
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