sábado, 4 de setembro de 2021

IL CATALOGO È QUESTO

Revi, uma vez mais, Don Giovanni, de Mozart/Losey (1979), uma interessante experiência cinematográfico-operática, realizada por iniciativa de Rolf Liebermann, administrador geral da Ópera de Paris, que pretendia a democratização dos espectáculos líricos.

O encenador inicialmente pressentido para esta complexa empresa foi Patrice Chéreau mas a realização acabou por ser entregue a Joseph Losey, ambos, aliás, com créditos firmados no mundo do teatro e do cinema. Tratou-se de uma co-produção, com a filmagem a cargo da Gaumont (dirigida por Daniel Toscan du Plantier) e a gravação a cargo da CBS-Europa (dirigida por Paul Myers). Participaram alguns dos grandes cantores da época: Ruggero Raimondi (Don Giovanni), John Macurdy (Comendador), Edda Moser (Donna Anna), Kiri Te Kanawa (Donna Elvira), Kenneth Riegel (Don Ottavio), Jose Van Dam (Leporello), Teresa Berganza (Zerlina) e Malcolm King (Masetto) e o maestro Lorin Maazel dirigiu a Orchestre de Paris. As filmagens foram efectuadas na Villa La Rotonda (de Palladio), próximo de Vicenza e também em Veneza.

A personagem de Don Juan, desde Tirso de Molina, sempre foi caracterizada por uma certa ambiguidade sexual, que os tempos posteriores se encarregariam de confirmar em pessoas de idêntico comportamento machista. Joseph Losey estava também plenamente convencido de que Mozart era homossexual e, nesse sentido, solicitou a Paul Myers livros sobre o assunto. Este respondeu-lhe que nada sugeria que Mozart o fosse e que por isso não existiria documentação quanto a essa matéria. Mas Losey persistiu na ideia da bissexualidade, e com o auxílio do seu colaborador directo na realização, Frantz Salieri, criou uma personagem (muda) que não existe na ópera, o "criado de negro", um rapaz apelativo (no caso, o jovem Éric Adjani, irmão de Isabelle Adjani) que surge no filme como a sombra permanente (ou quase) do próprio Don Giovanni. 

A figura do persistente e incansável sedutor de mulheres  tem sido normalmente apresentada numa atmosfera de uma forma algo ambígua, como referi acima, seja nas produções teatrais de Molina e Molière e muitos outros, seja nas diversas realizações operáticas de Don Giovanni ao longo dos anos. Assim também aconteceu neste filme.

A película de Losey não teve a recepção aguardada, que seria supostamente entusiástica, à excepção da França (et pour cause), talvez devido à extensão (3 horas), uma vez que quer Liebermann quer Losey insistiram na apresentação integral da partitura, o que hoje já não se faz (já então não se fazia), nos tradicionais espectáculos de ópera.

Conta ainda Paul Myers, numa entrevista, que ao ser-lhe apresentado o elenco da ópera, escolhido por Rolf Liebermann,  argumentou que tratando-se embora de um valioso naipe de cantores, havia todavia três personagens para as quais poderiam ter sido seleccionados ainda melhores intérpretes, o que provocou grande irritação no director da Ópera de Paris. Aconteceu, todavia, que durante a gravação Myers recebeu um telefonema de Toscan du Plantier dizendo-lhe que Liebermann lhe havia escrito afirmando que três dos cantores não eram realmente apropriados para a produção e que deveriam ser substituídos, recomeçando-se as gravações desde o início. Myers terá dito um palavrão pelo telefone e as gravações continuaram com os intérpretes previamente escolhidos. Recorda ainda Myers que os três cantores que Liebermann se propunha substituir a meio do trabalho eram exactamente aqueles relativamente aos quais ele tinha manifestado inicialmente algumas reservas. Instado a pronunciar-se sobre os nomes, Myers polidamente declinou a resposta. Suponho eu quais terão sido os nomes, mas também não os revelarei aqui.

As condições em que o filme foi realizado foram igualmente precárias, inclusive devido ao estado do tempo, mas os cantores conseguiram superar as adversidades da meteorologia. Também o período previsto para as filmagens foi inferior ao necessário, o que obrigou a uma corrida contra relógio. Tratou-se de uma produção muito cara. Segundo um especialista, o custo do filme seria hoje superior a 50 milhões de euros, o que, convenhamos, é uma importância muito elevada, mesmo tratando-se de uma co-produção. Foi a época em que Liebermann pretendeu colocar a Ópera de Paris a rivalizar com o Scala e o Met. A posterior construção da Ópera da Bastilha contribuiria para esse desejo mas os tempos entretanto mudaram...

Conta Maazel, que então estava ocupado com outros trabalhos, não só em Paris como também em Londres e algures (e que disponibilizou o mínimo de atenção indispensável ao Don Giovanni), que enquanto se efectuava a gravação deste espectáculo a Orchestre de Paris interpretava, ao mesmo tempo, no Théâtre de l'Opéra, também um Don Giovanni, mas dirigido por outro maestro. O que obrigava os músicos a um ping-pong musical, alterando diariamente a execução da partitura segundo a interpretação de cada um dos dois directores circunstanciais da orquestra.

Todavia, é indiscutível que, apesar de todos os contratempos e eventuais divergências e reduzido tempo de rodagem, esta produção, não da filmagem de uma ópera mas de um filme sobre uma ópera, permanecerá entre as grandes realizações do género efectuadas até aos nossos dias.

 

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