terça-feira, 26 de novembro de 2019

SABER ENVELHECER



Marcus Tullius Cicero nasceu em 106 AC, em Arpinium (cento e vinte quilómetros a sudeste de Roma) e morreu em 43 AC, em Formia (localidade próxima da cidade de Gaeta), assassinado pelo centurião Herennius, por ordem de Marco António. Estadista romano, grande orador, advogado e filósofo, foi Cônsul da República em 63 AC.

Não cabendo, evidentemente, neste texto descrever a vida de Cícero, matéria para um grosso livro, ocupamo-nos agora de uma obra breve, Cato maior - De senectute, escrita em 45 AC, um ano antes do assassinato de Júlio César, nos idos (dia 15) de Março de 44 AC, quando o filósofo, reprovando a ditadura de César, já estava retirado dos negócios públicos.

Divorciado da mulher, Terentia (que se casará com o historiador Salústio), novamente casado com a sua pupila Publilia (que rapidamente o deixará), e desgostoso com a morte da filha, Cícero deixa-se invadir pela amargura. Assim, inspirando-se abertamente em Xenofonte, escreve este ensaio, emprestando ficticiamente a palavra a Catão, o Antigo (velho censor que admirava), com o objectivo de dar de si mesmo a imagem de um sábio retirado e cheio de serenidade.

A forma dialogada de De senectute foi o autor buscá-la aos tratados de filosofia, nomeadamente aos diálogos de Platão. Os interlocutores que Cícero escolhe correspondem a personagens reais: Cipião (Publius Cornelius Scipio Aemilianus), neto adoptivo de Cipião, o Africano; Lelius (Caius Laelius Sapiens, o amigo mais íntimo de Cipião, ao ponto de se dizer que Cipião e Laelius eram os Montaigne e La Boétie da Antiguidade) e  Catão (Marcus Porcius Cato), que nasceu em Tusculum, em 234 AC e morreu em 149 AC e por cuja boca Cícero exprime o seu pensamento.

Preocupado com a velhice, a sua e a dos outros, Cícero escreve (utilizamos a tradução francesa de Christiane Touya): «À y bien réfléchir, je vois quatre raisons de trouver la vieillesse détestable. Premièrement, elle nous écarterait de la vie active; deuxièmement, elle affaiblirait notre corps; troisièmement, elle nous priverait des meilleurs plaisirs; et quatrièmement, elle nous rapprocherait de la mort.» (pp. 27-28)

A estas quatro razões, que parecem de meridiana clareza, Cícero contrapõe os seus argumentos, apontando as vantagens da velhice. Não podendo descrever neste espaço a argumentação do filósofo, deixarei apenas duas notas, uma sobre os prazeres da vida e a outra sobre a iminência da morte.

Nos prazeres da vida, inclui Cícero a mesa e o sexo. Quanto à primeira, transcrevo: «Nos ancêtres avaient bien raison d'appeler "convivialité" (vivre ensemble) le fait d'assembler autour d'une table, jugeant ainsi que cela impliquait une communauté de vie. ... Pour ma part, c'est parce que j'aime la conversation que je prends plaisir aux repas prolongés; non seulement avec les gens de mon âge - il en reste peu - mais ainsi avec ceux du vôtre, et tout spécialement avec vous.» (p. 52) [Esta observação parece dirigida a um amigo meu que não gosta de permanecer nos restaurantes acabado que seja o jantar]. Quanto ao sexo, cito: «On m'objectera que les vieillards ne ressentent  plus intensément ce chatouillement que procure le plaisir. C'est vrai, mais ils n'en éprouvent pas pour autant la nostalgie. On ne souffre pas d'être privé de ce qu'on ne regrette point. Quelqu'un demandait un jour à Sophocle, déjà vieux, s'il lui arrivait encore de faire l'amour. Il eut cette réponse admirable: "Les dieux m'en préservent! C'est de bon coeur que je me suis soustrait à cette tyrannie, comme on s'affranchit d'un maître grossier et exalté.» (p. 53) [Convenhamos que nem todos diriam o mesmo]. E ainda: «La volupté gâte le jugement, perturbe la raison, brouille les yeux de l'esprit, si je puis m'exprimer ainsi, et n'a rien à voir avec la vertu. C'est à contre-coeur que j'ai exclu du sénat, sept ans après son consulat, Lucius Flaminius, le frère du très énergique Titus Flaminius. Mais je croyais de mon devoir de sanctionner la débauche. Lorsqu'il était consul en Gaule, il s'était laissé convaincre par une prostituée, lors d'un festin, de décapiter à la hache un des prisionniers condamnés pour crime.» (pp. 48-49). A propósito da prostituta, a tradutora incluiu esta nota de rodapé: « C'était un fait un jeune garçon, circonstance aggravante que Cicéron passe sous silence.»

A iminência da morte é um caso mais complexo, mas, mesmo assim, Cícero argumenta: «[A morte] est incontestable. Mais comme il est pitoyable, le vieillard qui, après avoir vécu ainsi longtemps, n'a pu apprendre à toiser la mort de haut! Il faut soit la mépriser complètement, si l'on pense qu'elle entraîne la disparition de l'âme; soit la souhaiter, si elle confère à cette âme son immortalité. Il n'y a pas d'autre alternative. Pourquoi craindrais-je la mort si, après, je ne suis pas plus malheureux, voire plus heureux? Et qui peut être assuré le matin, même s'il est jeune, d'être encore vivant le soir même? Mieux encore: plus que nous, les jeunes courent le risque de mourir. Ils tombent plus aisément et plus gravement malades; ils sont plus difficiles à soigner. Aussi, peu nombreux sont ceux qui atteignent à la vieillesse. D'ailleurs, s'il en allait autrement, le monde vivrait mieux, et plus raisonnablement puisque l'intelligence, le jugement et la sagesse sont le propre des vieillards, sans lesquels il n'y aurait jamais eu de cités.» (pp. 68-69). E nesta perspectiva continua Cícero a desenvolver a sua argumentação. «Le vieillard, lui, n'aurait plus rien à espérer? Alors sa position est meilleure que celle de l'adolescent. Ce dont rêve ce dernier lui l'a déjà obtenu. L'adolescent veut vivre longtemps, le vieillard, lui, a déjà vécu longtemps!» (p. 70). 

É verdade que o juízo sobre a vida e a morte na Antiguidade era diferente daquele que formulamos nos nossos dias. E que Cícero não era um romano vulgar mas um filósofo com larga experiência da vida. Mesmo assim, permito-me duvidar da sua absoluta sinceridade. Há pessoas que, pelas mais variadas razões, entendem pôr termo à vida; daí o numero de suicídios registado e de outros que o não são. Todavia, a esmagadora maioria dos velhos persiste em atrasar o mais possível a hora da partida, lamentando-se é certo, ao contrário do filosofo romano, da falência do corpo e da privação dos prazeres, que muitos conseguem esticar para lá do que a idade prevê em geral.

Já que não podemos evitar a morte, tentemos, mesmo velhos, gozar a vida o melhor possível, abdicando das judiciosas sentenças de Cícero, e utilizando os recursos (por vezes falaciosos) que a sociedade moderna põe à nossa disposição. Creio ser esta, neste século XXI, a normal predisposição dos mortais, especialmente a dos não crentes.



Não terminarei sem referir uma obra fundamental sobre a velhice: La Vieillesse (1970), da famosa escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), que foi companheira de Jean-Paul Sartre. Tratando-se de um livro imenso, guardarei para outra oportunidade alguns comentários sobre esta obra.

4 comentários:

Anónimo disse...

1) Como se vê pelo Satiricon e não só, os assentos nas refeições romanas eram bem mais confortáveis do que as hirtas cadeiras da maioria dos restaurantes do nosso burgo. Assim,nada impede,pelo contrário,que o convívio prossiga nos maples do clube (o Reform,por exemplo) ou da casa.
2) Quanto à nota da tradutora, talvez o Cícero não quisesse avançar demasiado com exemplos específicos, pois o seu enlevo pelo seu jovem escravo/secretário era bem conhecido.
3) Concordo que a velhice pode ser agora bem mais agradável do que no tempo do autor da "Senectude". A velhice não tem que ser um desastre nem um naufrágio,como dizia o outro. Com as suas óbvias limitações,pode até ser um tempo de libertação dos constrangimentos da vida profissional, até de novos horizontes e novas aventuras. Convem é que o mais ou menos ancião não se encerre no poço dos seus impedimentos, e queira viver plenamente o que pode e deseja.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para o Anónimo das 17:52:

Reform, só conheço em Londres. Se houver um em Lisboa, agradeço a indicação

Zephyrus disse...

Importa referir que chegar à velhice era uma grande conquista numa época em que a esperança média de vida rondaria os 30 anos. Não havia por exemplo antibióticos nem vacinas, logo boa parte das doenças infecciosas que hoje facilmente curamos eram então uma sentença de morte. Morria-se também muito em cenários de guerra e instabilidade política, e em cenários de rixas familiares, especialmente por envenenamento. As classes mais altas e instruídas, com acesso a melhores condições de habitabilidade e a uma melhor alimentação, eram quem poderia aspirar a uma maior longevidade. Mas a Medicina Tradicional grega e romana já entendiam que o «normal» seria o homem viver até aos 80-100 anos, tendo a vida quatro fases: infância (antes da puberdade), juventude (até aos 30 anos), vida adulta (até aos 50-6o), velhice. Seria preciso esperar até ao século XX para a esperança média de vida da população em geral nos países desenvolvidos ultrapassar os 80 anos. Na idade da juventude havia uma moratória psicossocial para os homens a quem se toleravam os excessos nos prazeres da cama e da mesa. Essa moratória perdeu-se com a queda do Mundo Antigo, embora ainda exista de forma subtil nas sociedades ocidentais e em algumas de outros povos e culturas.

Anónimo disse...

Oui,mais, como dizia o sempre lembrado Valery. A aceitação dos desvarios juvenis tinha limites, mesmo para jovens ricos e bem parecidos, vide o caso do Alcibíades e dos seus amigos, em bebedeiras públicas e mutilando estátuas, o que os levou a sérias condenações. E a moratória para fantasias de diversa ordem não era exclusiva da juventude, veja-se o desvario do banquete do Trimalchion, que não era propriamente um jovem...