sábado, 8 de outubro de 2016

A BÍBLIA SEGUNDO FREDERICO LOURENÇO




Foi apresentado no passado dia 22, no Centro Cultural de Belém, o primeiro volume de uma nova tradução da Bíblia, efectuada por Frederico Lourenço.


O plano da obra é o seguinte:

I - Novo Testamento - Os Quatro Evangelhos
II - Novo Testamento - Actos dos Apóstolos, Epístolas e Apocalipse
III - Antigo Testamento - Os Livros Proféticos
IV - Antigo Testamento - Os Livros Sapienciais
V - Antigo Testamento - Os Livros Históricos
VI - Antigo Testamento - Os Livros da Lei

O I Volume desta nova edição abrange os Quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João).

Tem este volume a particularidade de se tratar da primeira edição em língua portuguesa de uma tradução realizada a partir dos originais gregos. As traduções existentes em português têm sido feitas a partir da versão latina, a Vulgata, efectuada por São Jerónimo sobre o texto hebraico, entre o século IV e o século V.

Todos os 27 livros que integram o Novo Testamento foram escritos originalmente em grego. Os livros do Antigo Testamento foram originalmente escritos em hebraico (com algumas frases em aramaico, caso do Génesis, Jeremias e Esdras e especialmente Daniel), num total de 39, com excepção de sete livros escritos em grego: Tobite, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Baruc, 1º Livro dos Macabeus e 2º Livro dos Macabeus. O que perfaz 46 livros, isto segundo a organização da Bíblia no cânone católico.

As principais divergências entre as diversas versões da Bíblia dizem especialmente respeito ao número de livros. A Bíblia Hebraica, que obviamente não inclui o Novo Testamento, contém 24 livros que, com outras divisões, constituíram os 39 livros do Antigo Testamento protestante. O Antigo Testamento católico conta 46 livros, os 39 escritos em hebraico mais os referidos outros sete escritos em grego. Todavia, o Antigo Testamento grego é ainda mais completo pois conta 53 livros, os 46 do cânone católico mais sete livros. É esta versão do Antigo Testamento grego que Frederico Lourenço nos dará a conhecer em português.

Este I volume abre com uma Introdução, instrumento imprescindível não só para a percepção daqueles que estão menos familiarizados com a Bíblia, como para compreender as opções do autor quanto à tradução, advertindo este que se trata de um trabalho científico e não confessional, pelo que se verificarão discrepâncias relativamente às traduções aprovadas pela Igreja Católica ou que são apresentadas pelas confissões protestantes. É pena que Frederico Lourenço nesta Introdução não estabeleça também comparações com a Bíblia do cânone ortodoxo, mas o que nos faculta é já bastante para suscitar os maiores aplausos. Acresce que o autor procedeu à tradução exacta do que está na versão grega, recusando "melhoramentos" do texto ou procurando adaptá-lo às conveniências da doutrina cristã.



[Uma das mais antigas traduções efectuadas na Biblioteca de Alexandria foi a da Torah hebraica (correspondente aos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, o Pentateuco), conhecida como Versão dos Setenta ou Septuaginta e realizada por determinação de Ptolemeu II (século III AC). Enquanto muitas traduções eram motivadas pela curiosidade intelectual ou pelo interesse científico, a tradução da Torah correspondeu também a razões de ordem prática. Estando a comunidade judaica fortemente helenizada em finais do século III AC, tornava-se necessário dispor de um texto grego do livro sagrado dos judeus. Segundo Aristeu, ele mesmo se teria deslocado a Jerusalém com a incumbência de solicitar ao Sinédrio não só a autorização para se traduzir o texto sagrado para grego, mas o envio de especialistas para procederem à referida tradução. Note-se que até então fora interdito verter o texto hebraico para uma língua profana, tal como só recentemente foi permitido traduzir o texto árabe do Corão para outra língua, ou como a Bíblia Católica até à Reforma foi editada exclusivamente em latim. O sumo-sacerdote Eliézer e os 71 sacerdotes aceitaram o pedido de Ptolemeu II e manifestaram-se dispostos a partir para Alexandria, mas verificando-se que a maioria não conhecia o grego, resolveram designar os seus representantes, 12 grupos de seis Anciãos, representando as 12 tribos de Israel. A tradição chamou-lhes os Setenta, mas eram na realidade 72, chefes de clans e perfeitos conhecedores da língua grega. Acolhidos pelo faraó (os reis da dinastia Lagida continuaram a usar o título de faraó), colocaram como única exigência para a realização do trabalho pretendido a de não ficarem instalados no Museu (Mouseion), o templo das Musas, que abrigava a célebre Biblioteca, pois consideravam-no um templo idólatra. O soberano colocou-os então em 72 celas isoladas, construídas na ilha de Pharos, de onde não poderiam sair até à conclusão da sua tradução. Afirma a crónica que os 72 tradutores terminaram ao mesmo tempo as respectivas traduções, ao fim de 72 dias, e que estas eram todas rigorosamente iguais. Também na ilha de Pharos foi por essa altura construído o célebre Farol de Alexandria, uma das sete maravilhas do mundo, e daí o seu nome. O Farol manteve-se em funcionamento até à ocupação de Alexandria pelos árabes (642), entrando depois em progressiva degradação e uma sucessão de terramotos, especialmente por volta de 1100 e por volta de 1300, acabou por destruí-lo. No local existe hoje um forte mandado construir pelo sultão Qaytbey, e concluído em 1479. Ao longo dos séculos III e II AC foram traduzidos para grego os restantes livros do Antigo Testamento e a Septuaginta permanece ao fim de dois mil anos uma obra preciosa de toda a história das traduções e continua a ser indispensável para a prossecução dos estudos bíblicos.]

As precisões consignadas por Frederico Lourenço quer na Introdução, quer nas notas aos textos dos Quatro Evangelhos são preciosas, não cabendo aqui alongarmo-nos nos comentários mas recomendando vivamente a leitura desta obra e, sem dúvida, dos volumes que se seguirão.

Concluo referindo, para os mais distraídos, que Frederico Lourenço (doutorado pela Universidade de Lisboa) é não só tradutor prestigiado (Ilíada, Odisseia), mas ficcionista, ensaísta, poeta e  professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

* * *

Nota: O texto apresentado entre parênteses rectos, porque alheio à Introdução, é de minha exclusiva responsabilidade.

2 comentários:

Anónimo disse...

nada mas nada de novo....de todo!

as divergências são conhecidas, nas compilações e por vezes na redacção.

é mais um ex-católico a ajustar contas com a igreja católica. primeiro querem-na mudar por dentro. depois, face à inviabilidade, saem. por vezes passam para outra variante ou, mais vagos, ficam-se pela espiritualidade.

quem não precisa de ler a tradução sou eu.

garanto-lhe no entanto que ficarei curioso e até serei tentado a ler o livrinho, se o tradutor tiver posto qualquer coisa: e jesus viu a cruz, e ao vê-la deu um safanão nos centuriões, e fugiu a sete pés. uma coisa destas sim, arregala o olho.


João Alves disse...

Como em qualquer tradução, eu não quero melhoramentos nem ajustamentos à conveniência dos tempos. Mas convinha esclarecer se Frederico Lourenço traduz literalmente ou se nos indica o que aquela palavra significava no contexto da época e de quem assim o escreveu. A mesma palavra escrita na mesma época por um grego erudito e escrita por um apóstolo pode significar coisas muito diferentes. Eu não quero saber o que um grego erudito pensava sobre determinada palavra mas interessa-me o que o apóstolo que a escreveu queria verdadeiramente significar, e para isso não basta um bom tradutor e especialista em grego. Porque a Bíblia não é separável do contexto religioso. Temo bem que a forma como esta tradução é apresentada não passa de um golpe publicitário. Frederico Lourenço tem de ser mais honesto do que isso, porque tradutore, traditore.