domingo, 29 de maio de 2016

O FIM DAS AMIZADES





Pela sua pertinência e actualidade, transcrevo o artigo do jornal PÚBLICO, de 3 de Junho de 2012, do qual agora, por acaso, tomei conhecimento:

O fim da amizade é um tabu


Francisco perdeu um amigo quando montou um negócio com ele. Maria viveu "um ano de absoluta perplexidade e dor" - o que viu nela aquela amiga para a pôr de parte? Técnicos de saúde mental explicam como recebem nos seus consultórios pessoas que não sabem lidar com o fim da amizade. E uma equipa de sociólogos britânicos fez uma viagem ao lado negro das relações entre amigos



Já perdeu muito tempo a pensar no que fazer com este amigo demasiado autocentrado que lhe telefona a toda a hora mas que nunca está disponível para ouvir o que ele tem para contar. Acha que não tem de suportar o egoísmo dele para o resto da vida só porque quando tinham dez anos jogavam ténis de mesa na casa dele. Enfim, Jerry Seinfeld está sentado num café à frente deste amigo de infância, com quem não tem nada em comum a não ser esse passado longínquo, e tomou uma decisão: vai acabar com ele. Como? Da única forma que sabe acabar.

Jerry: Ouve Joel... acho que não devemos continuar a encontrarmo-nos. Esta amizade... não está a funcionar.

Joel: Do que é que estás a falar?

Jerry: Não fomos feitos para ser amigos.

Joel: Como é que podes dizer uma coisa dessas?

Jerry: Ouve, tu és bom tipo...

Joel: Hei! O que foi que eu fiz? Diz-me, quero saber!

Jerry: Não fizeste nada. Não tem a ver contigo. Sou eu.

O episódio da série norte-americana Seinfeld é recordado pelo escritor e poeta Pedro Mexia. Sobre o "fim da amizade", já falou muitas vezes, em crónicas, em poemas e no seu blogue. Porque já perdeu grandes amigos, diz, em conversa com a 2, porque sentiu necessidade de reflectir sobre essa experiência "tão desagradável" de que se "fala tão pouco", porque é um "tema tabu".

Lembra o episódio de Seinfeld para ilustrar como "não há um código para acabar uma relação de amizade, não existe na sociedade, não há um comportamento apropriado".

Nas relações amorosas há, quanto mais não seja, o "isto não está a resultar", "não tem a ver contigo, o problema sou eu", "sinto falta de estar com outras pessoas" e mais todos os clichés repetidos pelo comediante que já vimos e revimos nas séries, no cinema e replicados na vida real. Mas uma amizade, uma amizade a sério, intensa, íntima, não é suposto acabar. Ou é?

"Quando o amor acaba, a tragédia é minimizada porque já sabíamos que "o amor acaba". O fim de uma amizade é uma surpresa mais chocante", escreveu numa crónica para o PÚBLICO, em 2008, intitulada Teoria geral do ex-amigo. "A mitologia diz que os amigos são indestrutíveis e eternos. Há, por isso, um grau de decepção no fim de uma amizade que cobre de vergonha os envolvidos."

De um amor que desaparece pode dizer-se que se confundiu o amor com uns olhos azuis, como ironizava Mexia na crónica. "Nunca mais me apaixono", ouve-se tantas vezes. Vale o que vale, mas quem já não viu alguém mais ou menos abalado fazer essa promessa?

Bem mais improvável será ter ouvido: "Nunca mais vou ser amigo." Em suma, diz Mexia: "Nunca achei que a amizade fosse mais importante do que o amor, nunca comprei essa tese, mas, curiosamente, do fim do amor pode falar-se abertamente", as pessoas acham isso normal. Enquanto do fim da amizade "tem-se pudor em falar". E talvez por isso, todos os homens e mulheres junto de quem a 2 recolheu testemunhos pessoais pediram para que os seus nomes verdadeiros não fossem usados.

Já agora, para quem não viu o episódio: Joel desfez-se em lágrimas. Seinfeld voltou atrás, inventou uma desculpa esfarrapada - "Ando sob grande stress, podemos esquecer isto? Continuamos amigos, continuamos amigos..." - e convidou-o para ir ver um jogo de basquetebol. O humor com o qual a sitcom aborda o assunto não tem qualquer correspondência com a realidade. É pura ficção.

A verdade é que "muita gente procura apoio de um profissional para lidar com a dor que o fim de uma amizade provoca", diz Gabriela Moita, psicóloga e terapeuta familiar. "O fim de uma amizade pode doer tanto como o fim de outras relações, como o fim de uma relação amorosa, que é algo muito mais cantado."

Nas suas consultas, a psicóloga lida com casos em que a narrativa sobre a amizade repete argumentos que associamos a outras relações. Pessoas que sentem que uma amizade lhes faz mal (porque é demasiado exigente, porque é demasiado frustrante...) - mas que acreditam que "é melhor persistir nas coisas do que abandoná-las", como se "ir embora de uma relação fosse um falhanço" (onde é que já ouvimos isto? Nas relações amorosas marcadas pela violência doméstica, por exemplo, lembra).

Mas nas consultas aparecem, sobretudo, pessoas "devastadas" porque perderam um amigo. O fim de uma amizade, garante, também pode tirar o sono, o apetite, a autoconfiança e a confiança nos outros. Pode igualmente ser a última gota que faz cair um edifício já frágil - Claudio Moraes Sarmento, psiquiatra e grupanalista, conta como recentemente recebeu na sua clínica alguém com um quadro depressivo desencadeado "pela traição de um grande amigo, uma espécie de irmão".

A tristeza que fica perdura no tempo. "Uma tristeza mais suportável e mais duradoura que a tristeza amorosa", nas palavras de Pedro Mexia. E também nas de Maria, 47 anos, separada, uma filha e uma vida da qual, diz, fazem parte muitos amigos.

Não é com prazer que aceita dar um testemunho. "Não me apetecia nada falar disto hoje", diz sentada à mesa da cozinha onde, três, quatro dias por semana, recebe os amigos - "A minha filha pergunta sempre: "Mãe, quem janta esta noite?""

Um dos casos que recorda tem anos, mas ainda hoje a incomoda profundamente. "A ressaca de uma amizade é enorme. Não é a vertigem da ressaca amorosa, mas fica para sempre. A paixão é uma necessidade que alguém preenche - uma paixão substitui outra, pelo menos é o que eu sinto. A amizade não. A amizade com uma determinada pessoa é única, junta-se a outras, mas é única, não é substituível e, ao desaparecer, fica um vazio que não pode voltar a ser preenchido."

A história então: são três amigas, duas zangam-se, Maria fica no meio. Sabe que uma está bastante desiludida com a outra, mas decide não tomar partido. Quer manter as duas amizades e, na verdade, acha que os comportamentos do ser humano nem sempre são facilmente classificáveis como, simplesmente, bons ou maus. Não sente uma necessidade urgente de expressar um juízo. Mas a amiga que se sente desiludida não compreende essa posição. Provavelmente, irrita-a este pudor de Maria em criticar a outra amiga. "Houve uma conversa, ela disse que não tinha gostado, eu senti-me desconfortável" e acabou.

A amiga afastou-se. A outra permaneceu. Mas cá está: um amigo não ocupa o lugar de outro. "Vivi um ano de absoluta perplexidade e de dor." Pelo vazio. Mas não só. "A capacidade que aquela pessoa teve de desistir de mim foi algo tão violento que eu sinto que, de alguma forma, simbolizo algo de muito desagradável na vida dela. Reflecti bastante e não cheguei a grande conclusão. Mas fica sempre a dúvida: o que é que aquela pessoa viu em mim? Porque para acabar uma amizade é preciso identificar no outro algo profundamente errado ou mau, e agora estou a ser muito primária. Mas se desistimos de um amigo é porque ele nos faz mal; desistir da amizade é um castigo."

A revista britânica Sociological Review publicou, na sua edição de Maio, um artigo sobre o assunto. Uma equipa de sociólogos da Universidade de Manchester analisou as narrativas de cerca de 200 pessoas sobre os "altos e baixos da amizade" - homens e mulheres (a maioria casados e de meia-idade) que fazem parte do painel do British Mass Observation Project, que pretende retratar o quotidiano dos britânicos pedindo-lhes periodicamente que escrevam sobre certos temas.

Na última década, o tema "amizade" tem despertado o interesse da academia, recordam os autores (Carol Smart, Katherine Davies, Brian Heaphy e Jennifer Mason). Nas sociedades contemporâneas, "onde cada vez mais pessoas vivem sós", se debate cada vez mais as novas formas de família e até "se discute se os amigos estão a substituir as relações familiares", há quem se dedique a perceber qual o papel das relações interpessoais que não as marcadas pelo parentesco, como as que se estabelecem entre amigos.

Nesses estudos, as amizades tendem a ser valorizadas como relações agradáveis, com benefícios para todos os envolvidos, no pressuposto de que "escolhemos os amigos". Já a possibilidade da amizade poder ser "difícil", "problemática", colocar "dilemas morais", é menos equacionada. No artigo Difficult Friendships and Ontological Insecurity os sociólogos centraram-se, por isso, nos "baixos da amizade" - uma espécie de viagem ao lado negro das relações entre amigos.

Em muitos depoimentos analisados repetem-se estas três ideias: mesmo quando há uma desidentificação, é suposto manter uma amizade - "Não se pode abandonar um velho amigo mesmo se ele se torna cansativo", lê-se num dos testemunhos; os nossos amigos estão associados "à imagem que construímos de nós próprios", funcionam como uma espécie de espelho, ao ponto de muitas pessoas relatarem que não querem rever um velho amigo porque eles lhes faz lembrar um "eu" ligado a certas circunstâncias da sua vida no qual já não se revêem; por fim, quando as amizades se desvanecem, ou se rompem abruptamente, muitas pessoas sentem-se profundamente inseguras - se um amigo as afasta, o que é que isso revela delas? Que características tão "desagradáveis" ou até "inaceitáveis" descobriram esses amigos que se foram embora?

"Podia contar histórias até amanhã de manhã de pessoas que sofreram genuinamente com desilusões com amigos", diz Margarida Cordo, psicóloga. Tal como Gabriela Moita, também ela lida com estes casos no consultório. "Quando nos dedicamos a alguém afectivamente é espontâneo e natural que criemos expectativas. Expectativas de alguma incondicionalidade que não contempla certos tipos de atitudes como a traição, a competição desleal, a infidelidade, porque não é só no amor que há infidelidade."

Noutros casos há um profundo desgosto por uma relação se revelar assimétrica. Uma das psicólogas com que a 2 falou recorda o caso de Ana, chamemos-lhe assim, uma mulher solteira, sem qualquer relação amorosa. Ana tem muitas amigas e faz questão de estar presente na vida delas. Manda-lhes mensagens diárias, telefona-lhes. É o tipo de pessoa que adivinha as necessidades das pessoas próximas para tentar satisfazê-las. "O problema é que exige na proporção do que dá e frustra-se a toda a hora", até porque as amigas têm menos disponibilidade, têm companheiros e maridos. "Estamos a falar de alguém que sofre muito com tudo isto..." e que, ao mesmo tempo, faz sofrer as amigas que não conseguem lidar com esta amizade. Neste momento, Ana anda a tentar descobrir outra forma de "ser amiga".

Raramente o fim de uma amizade é provocado por divergência de opiniões - a amizade é um espaço de liberdade, onde se aceita a diferença, nota Teresa Freire, investigadora da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Essa é, aliás, uma das suas características intrínsecas. Quando uma amizade acaba há antes, frequentemente, uma dimensão de "erro de avaliação do carácter" - "Perder aquela amizade afectou-me profundamente, abalou a minha confiança e fez-me acreditar que avalio mal o carácter das pessoas", escreveu uma das participantes no estudo britânico.

Margarida Cordo reconhece o sentimento: "Há uma pessoa que acompanho em terapia que me pediu ajuda e o que me disse foi: "Preciso de me pacificar face a uma desilusão de amizade. Ficar com a amizade ou sem ela já é para mim uma questão secundária. Preferia ficar com ela, mas mais do que reparar a amizade quero reparar-me a mim mesmo. Porque eu era uma pessoa atenta. Hoje, sou uma pessoa desconfiada"."

A psicóloga não revela pormenores sobre este homem que arranjou emprego numa empresa para ele e para um amigo que vinha dos tempos de faculdade. Mas, no essencial, a história é esta: a "ambição" foi mais forte do que o companheirismo. "O amigo montou-lhe uma armadilha, este caiu na esparrela, cometeu um erro, o outro podia tê-lo ajudado a corrigir mas, antes que ele tivesse oportunidade de corrigir, denuncia-o à chefia, dizendo que aquele indivíduo não estava em condições de trabalhar porque até cometia erros daquele calibre. Este ficou completamente arrasado. Nas sessões, à medida que temos avançado, percebemos que isto foi tão avassalador que o fez perder a capacidade de confiar, de acreditar na lealdade."

Histórias em que trabalho, negócios e amigos resultam num cocktail amargo são, de resto, comuns. Francisco, 36 anos, experimentou-o e está ainda a digerir o resultado. Conheceu Rodrigo na escola, em plena adolescência, quando os amigos, como diz Teresa Freire, têm um papel crucial no crescimento do indivíduo.

Tornaram-se inseparáveis e assim foi até entrarem na universidade. Seguiram caminhos distintos. E afastaram-se. Até que um dia se reencontraram.

Em pouco tempo estavam tão próximos como sempre tinham estado. Tinham interesses comuns, profissões que tocavam a mesma área e Rodrigo, que estava a formar uma empresa, convidou Francisco a entrar no projecto e a ser seu sócio. Francisco não hesitou. Largou o emprego que tinha, juntou as poupanças, investiu. "Mas sabia que ao trabalhares com um amigo estás a pôr a amizade num dos pratos da balança." Arriscou na mesma.

No início correu bem, depois veio a crise. Os concursos começaram a escassear, as encomendas também. E a empresa começou a ter dificuldades. "Se estivéssemos ricos, provavelmente nada disto tinha acontecido, mas em tempos de crise não é fácil." No início, Francisco tentava não entrar em confronto directo com o amigo-sócio. "Guardava para mim o que pensava, não falava, para não prejudicar a amizade."

Com o tempo, percebeu que não estava a fazer aquilo que acreditava que tinha de ser feito - para bem do negócio e da amizade. Mais tarde veio a desconfiança. E foi o fim. Francisco afastou-se da empresa, já não tem nada a ver com as decisões que lá se tomam, não quer ter.

Espera conseguir recuperar o dinheiro que investiu. Talvez seja mais fácil do que recuperar a relação com o amigo. Continuam a falar-se, cordialmente, até porque há projectos comuns a concluir. Mas não se imagina, por exemplo, a voltar a tomar um copo com ele. "Amizade e negócios, nunca mais."

Quer acreditar, no entanto, que tudo isto não vai deixar marcas maiores. "Se calhar isto vai tornar-me uma pessoa mais cautelosa... Desconfiado? Vou tentar não ir por aí."

O artigo Difficult Friendships... distingue diferentes tipos de amizades. Não são as amizades "simples" (expressão usada pelos autores) que colocam problemas - estas amizades são descritas como aquelas que estão associadas, sobretudo, à diversão, ao lazer e, em relação a elas, muitos entrevistados não têm dúvidas de que se a relação deixa de ser "agradável", o melhor é "deixar cair".

O problema são as outras - as "complexas", as do tipo "alma gémea", lê-se. Ou, como descreve Pedro Mexia num dos seus textos, os amigos "a quem um dia entregamos as chaves todas que tínhamos", os amigos íntimos.

As reacções às notícias que foram sendo publicadas nos últimos dias a propósito do artigo da Sociological Review, que foi notícia em vários jornais do mundo, mostram como as pessoas se dividem na hora de falar deste tema. De forma mais ou menos amarga: "A amizade canina é para sempre", escreve uma leitora na página do PÚBLICO no Facebook. "As amizades são transitórias e [para] viver enquanto duram", comenta outro. "Quando era mais jovem e passei por um período difícil a pessoa que eu achava que era a minha melhor amiga não esteve lá e senti-me profundamente traída", escreve outra ainda, no fórum do jornal britânico The Guardian. "A amizade pode ser mais forte do que os laços de família e provocar 50 vezes mais dor quando acaba", acrescenta outro.

Uma desilusão com alguém que tem o papel de "melhor amigo" pode acontecer em qualquer altura da vida, com grande impacto. Na idade adulta ou na adolescência. "Aparecem-me muitos adolescentes", continua Gabriela Moita. "Muitos e muito desestruturados pela desilusão com um grande amigo que, simplesmente, deixou de estar presente." Um grande amigo que arranja uma namorada, por exemplo, anda perdido de amores por ela e lhe passa a prestar todas as atenções. "Os namoros roubam tempo e a pessoa que tem mais tempo é a que vai sofrer mais porque sente muito a perda, sente abandono, sente-se deixada para trás... e é isto que traz as pessoas aqui, a consciência de que já não se tem aquela pessoa."

O psiquiatra Claudio Moraes Sarmento, de resto bastante crítico do artigo da revista britânica, por o considerar "demasiado sociológico", prefere descentrar as dores da amizade da relação de amizade em si. Defende que os mecanismos que cada um tem para lidar com afastamentos e rupturas, frustrações e perdas são iguais nas amizades como noutro tipo de relações - "tem a ver com a nossa personalidade, com os nossos mecanismos de defesa", as "vivências precoces" e "o meio em que fomos criados".

É um facto, continua, que diferentes tipos de relações "satisfazem diferentes tipos de necessidades, mas o modo como as pessoas se movem nos vários núcleos é mais ou menos constante". Ou seja, alguém mais intolerante à frustração reagirá de forma mais violenta à mesma numa relação de amizade, de trabalho, familiar ou outra.

Mas não é esta a narrativa reproduzida por muitos testemunhos, não só nos analisados no artigo da Sociological Review, como nos recolhidos pela 2. Tal como Pedro Mexia, ou Maria, Paula, uma professora de 37 anos, solteira, conta o que lhe aconteceu aos 20 e poucos anos com o maior amigo e a comparação com outro tipo de relações volta a ser referida nestes termos: "É muito parecido com o que se sente no fim de uma relação amorosa, se calhar mais doloroso."

Carlos era o maior amigo dela desde a adolescência. Encontravam-se todos os dias. Frequentavam a casa um do outro quase diariamente. "Ele era um tipo muito inteligente, muito talentoso..."

Um dia, Carlos arranjou uma namorada de que Paula foi aprendendo a gostar - a gostar tanto que hoje, essa rapariga, é uma das suas "maiores amigas".

Naquela altura, contudo, Paula, estava ao lado de Carlos quando o namoro acabou. E ele não se conformava com a ruptura. Mas não era só isso. "Foi uma altura complicada para ele, a vida profissional não lhe estava a correr bem, a ela sim, estava a correr melhor, pelo menos... e ele começou a arranjar-lhe problemas. Creio que isso acontecia porque estava inconformado com o fim da relação. Dizia mal dela, espalhava rumores no trabalho dela." Procurava prejudicá-la.

Quando um dia arranjou forma de excluir a ex-namorada de um projecto, Paula achou demais. "Já o tinha visto fazer certas coisas" que a faziam duvidar se ele seria de facto boa pessoa. "Mas eram coisas que não me tocavam directamente e, como éramos amigos, deixava passar, tentava desculpabilizar. A verdade é que demorei muito tempo a assumir que ele tinha mau carácter."

Falou com ele. Depois com ela. "Contei à ex-namorada dele o que ele tinha feito para a prejudicar" profissionalmente. E ele, como seria de esperar, reagiu mal. "Foi uma grande amizade que acabou de um dia para o outro e sofri muito, muito, muito. Aquela pessoa fez-me uma falta horrorosa e aquela perda foi muito sentida."

Muitos anos depois, Paula e Carlos reencontraram-se. Foram beber um café. "Tinha saudades dele. Mas quando comecei a ouvi-lo falar da sua carreira, dos colegas, percebi que ele falava da mesma maneira, que não tinha mudado." O olhar benevolente com o qual lidara com o seu amigo, durante anos, quando todos os dias estavam juntos e iam a casa um do outro, desaparecera. Aquela amizade não podia ser resgatada.

Rosa, jornalista de 36 anos, casada, sem filhos, nunca reencontrou, ao longo dos últimos 15 anos, uma amiga que perdeu por... enfim, nunca soube porquê. "Conheci a minha amiga no primeiro ano de faculdade e rapidamente nos tornámos inseparáveis. Tínhamos imenso em comum: o facto de não termos família na cidade onde estudávamos, a música, o cinema, a poesia, os sonhos. Não havia nada que me acontecesse na vida que não lhe contasse. Ficávamos acordadas até altas horas da madrugada a conversar, ora em casa dela ora na minha. Nesses quatro anos de amizade não me lembro de termos uma grande discussão. Ela não era apenas uma amiga, era a minha melhor amiga."

A certa altura decidiram partilhar casa. Os primeiros desentendimentos surgiram por causa de coisas corriqueiras. "A louça por lavar, algum objecto fora do sítio habitual, a partilha do comando da televisão..." Mas falava-se pouco disso. "Eu percebia que ela estava amuada (digamos que o clima lá em casa ficava pesado) mas nunca sabia porquê. Tinha de insistir com ela para que ela me contasse o que se passava. "Ah, afinal foi o copo que eu usei e não lavei logo a seguir, ok, desculpa"."

Com o tempo, as "birras" começaram a parecer-lhe disparatadas. Rosa não acha que seja uma pessoa particularmente desarrumada. Mas estava em casa, na sua casa, não na tropa. "Um dia cansei-me dos amuos. Decidi não perguntar nada, não dizer nada. Se eu tinha feito algo que lhe desagradou, então ela que tivesse a maturidade de dizer logo o que era! Estava farta das birras. Os dias passaram e eu entrava em casa e era aquele mau clima. Mas mantive-me teimosa: ao menos uma vez na vida não ia andar atrás dela, a implorar, ela que desse o primeiro passo. As semanas passaram e nada. Mais de um mês depois eu já não aguentava o ambiente, detestava ir para casa, fazia tempo na rua. A situação chegou a um ponto insuportável e decidi sair de casa. Aluguei um apartamento e disse-lhe que me ia embora. Ela concordou que era melhor."

Passaram, portanto, 15 anos. "Nunca mais a vi. Nem nunca soube qual tinha sido a minha falha." Um copo fora do lugar, uma vez mais? Admite que sim, que tenha sido tão-só isso ou qualquer coisa com gravidade idêntica. "Mas até hoje não sei. Fiquei imensamente magoada pelo sinal que ela me dava: afinal, a nossa amizade valia tão pouco, não valia nada."

Ana Roque Dantas é socióloga e assistente de investigação no Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa. Escreveu um livro, chamado A Construção Social da Felicidade, que deverá ser publicado em breve pela Colibri.

Tal como os sociólogos que analisaram os relatos do Mass Observation, a socióloga confirmou nas suas entrevistas a importância dos amigos "como fonte de satisfação". Mas também constatou que a amizade não é algo de estático. A entrada na universidade, o casamento, o nascimento do primeiro filho são identificados pelos entrevistados como momentos importantes de mudança - mudança também de amigos. "Não há necessariamente rupturas, há afastamentos e a necessidade de criar novos amigos. Fala-se disso com algum pesar, mas aceita-se."

Teresa Freire, que também está envolvida num projecto de investigação que inquire uma amostra de pessoas ao longo do tempo e lhes coloca questões sobre o seu quotidiano e o seu bem-estar, lembra aliás que "há estudos que mostram que quando as pessoas percebem que em diferentes contextos podem fazer novos amigos, isso é muito gratificante para elas" - significa que uma grande amizade "pode ser construída em qualquer momento da vida".

"Vamos mudando as nossas necessidades, os nossos gostos e mudamos as pessoas com quem nos damos. E isso não tem de ser algo de mau: é a evolução normal. Temos é de ter sempre amigos e alguns amigos íntimos", afirma por seu lado Moraes Sarmento. Já a ideia de que "os amigos duram para sempre" é tão verdadeira quanto a de que "os pais gostam sempre dos filhos" ou a de que "temos de aceitar sempre a família que temos - é mentira, há famílias muito boas e há famílias muito más e por vezes é importante que haja mesmo uma separação, um corte".

Resumindo: na verdade, poucas pessoas parecem manter amigos a vida inteira. E os especialistas acham que isso até tem um lado bom. Mas a muitos assusta esta ideia de que até a amizade é a prazo. "Há uns anos, um ministro, ou uma ministra, do Emprego, francês apresentou uma lei do trabalho e alguém lhe perguntou: "Então e o trabalho precário?..." E ele respondeu: "Mas se até o amor é precário, porque não o trabalho?" É uma resposta um bocadinho cínica, vinda de um ministro, claro. Mas sim, creio que as coisas são cada vez mais precárias", diz Pedro Mexia.

O mundo é mais veloz, viajamos mais, conhecemos mais pessoas e até desamigamos no Facebook - "Chamarmos amigos a alguém que não reconheceríamos na rua deu à palavra "amizade" uma conotação de superficialidade que ela não tinha ou, pelo menos, que achávamos que não tinha", continua o escritor. Não significa que não haja amizades intensas. "Mas há 20 anos não ouvia com tanta frequência falar de tantas amizades perdidas ou interrompidas, como ouço hoje (em privado, claro, porque, como disse, as pessoas continuam a ter muito pudor de falar disso). Sinto que até a amizade se tornou vítima da precarização das relações sociais." O que é normal, porque a "amizade não vive numa redoma e o ambiente social em que vivemos digamos que corrói todas as relações humanas". Nada é para o resto da vida, nem o trabalho, nem o amor. Nem os amigos. "É um dano colateral da mudança civilizacional."

"Há 20 anos, se queríamos telefonar a um amigo tínhamos de chegar a uma cabine pública ou a casa, discar um número fixo, esperar que ele lá estivesse e se não estivesse que alguém lhe desse o recado, e esperar", ilustra Margarida Cordo. "Precisávamos de fazer esforço, de nos empenharmos, para ter amigos. Hoje temos pessoas, pessoas, pessoas, e se olharmos para a profundidade do que é a partilha, a confidência, o interesse genuíno do outro por nós e de nós por outro... existe pouco."

Dias depois da conversa com a 2, Francisco, o rapaz que se zangou com o amigo-sócio, envia-nos a digitalização de uma crónica escrita no ano passado por Miguel Esteves Cardoso no PÚBLICO. Chama-se Amigos para Sempre e nela o autor conta: "Nesta semana, tenho almoçado com amigos meus grandes, que, pela primeira vez nas nossas vidas, não vejo há muitos anos. Cada um começa a falar comigo como se não tivéssemos passado um único dia sem nos vermos. Nada falha."

"Nem a propósito" - escreve Francisco no subject do email através do qual partilha a crónica. Sim, ele está a sentir neste momento como uma amizade falha. E sim, acha que são coisas que acontecem... Mas é muito mais agradável continuar a acreditar que algumas resultam e são "para sempre".

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