Pela sua importância, transcrevo, com autorização do autor, a primeira parte do esclarecedor artigo do meu amigo António Rodrigues, publicado no "Jornal do Exército".
Médio Oriente - Síria – Ocidente: entre o Sabre e o dedo no Gatilho
Publicado no Jornal do Exército, edição nº 657, Abril de 2016)
I Parte
“Are you confused by what is going on in the Middle East? Let me explain. We support the Iraqi government in the fight against Islamic State. We don’t like IS, but IS is supported by Saudi Arabia whom we do like. We don’t like President Assad in Syria. We support the fight against him but not IS, which is also fighting against him. We don’t like Iran, but Iran supports the Iraqi government against IS. So, some of our friends support our enemies and some of our enemies are our friends, and some of our enemies are fighting against our other enemies, whom we want to lose, but we don’t want our enemies who are fighting our enemies to win. If the people we want to defeat are defeated they may be replaced by people we like even less. And all this was started by us invading a country to drive out terrorists who weren’t actually there until we went in to drive them out. Do you understand now?”
~ Aubrey Bailey in “Clear as Mud” (Daily Mail; 26/9/14)
Introdução
No pretérito dia 16 de Fevereiro, a estação emissora “al-jazira” - também conhecida pela transliteração anglo-saxónica “al-jazeera” (“A Península”) -, sediada em Doha, capital do Qatar, abria os seus serviços noticiosos com a informação de que a Arábia Saudita tinha posicionado aviões de combate na base aérea turca de Incirlik Hava Üssü (situada a 56 Km da costa do Mar Mediterrâneo e de grande importância para o eixo sul da NATO pela relativa proximidade de locais com elevado potencial de conflitos), acrescentando a mesma fonte que poderia estar a ser preparada uma ofensiva terrestre saudita na Síria, juntamente com forças militares turcas.
Na reportagem aludia-se ainda à concentração de cerca de 150 mil soldados, 20 mil carros de combate, 2.450 aviões e 460 helicópteros militares na zona militar de King Khalid Hafr Al-Batin, a nordeste da Arábia Saudita (localizada a 430 Km a norte da capital, Riyadh, e a sensivelmente 94 Km da fronteira com o Kuwait ), a fim de participarem, supostamente durante 18 dias, no exercício “North Thunder” (“Al-ra’d ash-shamal”, em árabe), tendo o espaço aéreo sobre o norte da Arábia Saudita sido, durante este período, interdito a todo o tráfego.
Nesse exercício militar, considerado já o maior verificado na história da região, participam igualmente, entre outras, forças dos Emirados Árabes Unidos, Egipto, Jordânia, Bahrain, Senegal, República do Sudão, Kuwait, Marrocos, Paquistão, Tunísia, Chade, Oman, Qatar, Djibouti, Mauritânia e Malásia. Na véspera, tinha sido o canal de televisão “Al-Alam” (“o Mundo”) a emitir, desde Teerão, declarações por parte de altos responsáveis do regime iraniano advertindo os sauditas para uma eventual retaliação caso as suas tropas entrassem em território sírio. O próprio ministro das Relações Exteriores da Síria surgia, peremptório, a ameaçar qualquer tentativa de ataque ou de violação da soberania da sua nação, assegurando que qualquer agressor regressaria ao seu país “num caixão de madeira”.
Em rodapé, podia ler-se que Ankara prometia continuar a bombardear os curdos e que, no que concernia ao combate ao “Daesh” (ou “da‘ish”, na sua forma em árabe - acrónimo em língua árabe para Ad-Dawlah al-Islāmiyah fīl-Irāq ua Shām; na transliteração da língua árabe para português seria “Estado Islâmico do Iraque e Levante” ou “Estado Islâmico do Iraque e Síria”; essencialmente, é o mesmo que o mais conhecido acrónimo da transliteração árabe para língua inglesa: ISIS, “Islamic State in Iraq and Syria” ou ISIL, “Islamic State in Iraq and the Levant” ou, apenas, Estado Islâmico, “Islamic State”), Putin e Obama tinham acordado numa maior cooperação entre os ministérios da Defesa da Rússia e dos EUA. Sobre esta matéria, a Rússia alertava igualmente para o risco de uma guerra total e prolongada na Síria.
Numa altura em que o conflito (que vai entrar no seu sexto ano consecutivo) fez já perto de 470 mil mortos, vítimas directas de actos de violência, e em que outros 70 mil pereceram devido à falta de alimentos, água potável, saneamento e habitação (no total, a guerra já afectou, por morte ou ferimentos, 11,5% da população síria. O número de feridos chega a 1 milhão e 900 mil pessoas. A expectativa de vida no país caiu de 70 anos, em 2010, para 55, em 2015. O conflito obrigou ainda 45% da população a deslocar-se. As perdas na economia são estimadas em cerca de 255 biliões de dólares), a Síria é hoje o epicentro de uma batalha que reúne vários atores e protagonistas, desde milícias radicais a grupos rivais – de variadas correntes ideológicas e inspirações diversas – que se formaram no país em oposição ao presidente Bashar al-Assad (Al-Assad ou al-Asad (“leão”, em árabe), às grandes potências regionais inimigas e aos aliados históricos.
Recados, avisos e ameaças, tem sido o timbre das declarações trocadas nas últimas semanas por altos responsáveis internacionais sobre o conflito sírio. Permanecendo o Médio Oriente à mercê das metástases de uma guerra que, a acontecer, será interminável no tempo e desastrosa nas consequências. E que, ademais, poderá estender os seus insidiosos tentáculos alastrando além-região, uma vez que o conflito possui, outrossim, todos os ingredientes passíveis de reacender contendas antigas.
À medida que os interesses geopolíticos e a vontade de hegemonia das partes envolvidas se vão afirmando, os entendimentos tornam-se cada vez mais difíceis. Não estamos ainda em condições de esboçar uma previsão das rupturas que as actuais convulsões originarão, mas poderá bem ser o desaferrolhar da caixa de Pandora (o termo “Caixa de Pandora” tem origem na mitologia grega. De acordo com o mito, a primeira mulher criada por Zeus, Pandora, recebeu uma caixa que continha todos os males da humanidade. Devido à sua curiosidade, Pandora abre a caixa e, com isso, permite que quase todos os males invadam o mundo. Assustada, Pandora fecha a caixa, evitando que o último dos males escapasse. Aquele que destruiria a esperança).
O Médio Oriente novamente a mover-se perigosamente sob o ovo da serpente, entre o volátil balançar do sabre e a instável fragilidade do dedo no gatilho. Um “acidente” que, em certa medida, seria o que Epicuro chamava “o acidente dos acidentes”. O mundo a tocar o seu próprio inferno.
Caracterização
Se há lugares predestinados a influenciar profundamente a evolução da humanidade, um deles é, sem dúvida, a região geoestratégica onde se inserem a Península Arábica e o Golfo Pérsico. Berço de civilizações, origem de religiões universais, são o elo de ligação e simultaneamente encruzilhada de três continentes. É ali que se encontram as maiores reservas de petróleo do mundo – líquido a que os beduínos apelidam, com realista sabedoria, “urina do diabo” –, o poderoso “deus” do mundo atual que continua a legitimar propósitos. É ali que o fluir das paixões facilmente se pode plasmar, fundir e confundir nas mais brilhantes e prolongadas deduções lógicas. Ali, onde Maquiavel muito teria que aprender, tudo é possível...
O Médio Oriente é hoje uma região pautada pela instabilidade como consequência de um conjunto de acontecimentos militares e políticos, mormente a invasão do Iraque, em 2003, e a chamada “Primavera Árabe”, em finais de 2010. Em pouco mais de uma década os países da região assistiram a profundas mudanças instauradoras de instabilidade e de violência.
Sopesando certos dados de carácter mais geral, lembremo-nos de que a Península Arábica começou a conhecer, no primeiro milénio antes de Cristo, uma longa história de conquistas e uma brilhante civilização, baseada na agricultura e num comércio activo favorecido pela posição limítrofe entre o Extremo Oriente e o mundo mediterrânico. Inclusivamente atraídos por esta uberdade, os romanos enviaram, em 24 a.C., uma expedição chefiada por Élio Galo, governador do Egipto durante o reinado de Augusto, que nunca chegou a atingir o seu objectivo, perdida que ficou na enormidade do deserto. E depois desta, tantas outras odisseias, aventuras, conquistas e conquistadores – Assurbanípal, Dario, Alexandre, César –, e outros tamanhos e perenes factores que imprimiram à História uma dinâmica universal e inextinguível que, apesar de todas as lamentáveis convulsões, soube consubstanciar elementos civilizacionais de referência e uma cultura única, específica, de refinada riqueza, deixando quase intactas as amostras vitais de um povo com o recanto remoto dos seus segredos milenares, onde a vivacidade pitoresca do passado e o quadro expressivo do presente ainda se cortejam e completam.
Sequentemente também a história da Síria está intimamente ligada aos processos de expansão das grandes civilizações antigas e das potências modernas. Pesquisas arqueológicas recentes revelam que a ocupação da região que actualmente corresponde a este país, terá ocorrido há mais de 5 mil anos. Esse fato proporcionou ao país uma série de fantásticos elementos históricos, como sítios arqueológicos, ruínas romanas na cidade de Palmira (ou Palmyra), castelos medievais da época das Cruzadas (como o célebre “Krak des Chevaliers”) e construções de inspiração islâmica na cidade de Damasco. “Krak des Chevaliers”, em árabe “Qala’at al-Husn”.
A expressão “Krak” ou “Karak” designa um tipo de fortificação erguida no século XII e no século XIII pelos cruzados, para assegurar a defesa dos chamados “Reinos Latinos do Oriente”. Erguido sob um esporão rochoso do deserto sírio, a pouco mais de 40 km a oeste de Homs, possui a forma e a função mais que perfeitas para uma defesa contra cercos, alojamento de tropas e guarda de arsenal. O “Krak des Chevaliers” é classificado pela UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization/ Organizacao das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura) como Património Mundial desde 2006.
Devido à sua localização no mediterrâneo oriental, com uma área a rondar os 185.180 km² e em função da presença de grandes rios com terras cultiváveis, a posição geográfica da Síria foi sempre um ponto importante na ligação entre as potências ocidentais e a Ásia. Já o império romano havia utilizado os oásis de Palmira a fim de estabelecer as suas rotas de comércio entre o Crescente Fértil e a Ásia Central. A batalha por Damasco, na “Revolta Árabe” (“At’thawra al-‘Arabiya”), de 1916 a 1918, liderada por Sayyid Husseyn bin Ali, “sharif” (líder religioso) e “amir” (ministro) de Meca, da família Hashemita (a dinastia hashemita tem origem no Hejaz, no actual Reino da Arábia Saudita.
Os hashemitas traçam a sua descendência de Hashim ibn ‘Abd al-Manaf, bisavô do profeta Muhammad), que procurava a criação de um grande Estado Árabe unificado, que se estenderia do Iraque ao Líbano, e da Península Arábica até a fronteira norte com a Turquia, foi crucial para desarticular o já combalido Império Turco Otomano no Médio Oriente. O apoio dado aos ingleses na I Guerra Mundial, com o intuito de expulsar as forças turcas da região, teria como objectivo a criação desse grande Estado Árabe. Porém, em função dos acordos secretos de Sykes-Picot, entre o Reino Unido e a França, a região tornar-se-ia uma zona de influência de britânicos e franceses.
Com o fim da “Revolta Árabe” e o fim da I Guerra Mundial, a promessa feita a Husseyn e a seus filhos pelos britânicos quanto à criação do tal “Estado Árabe” unificado não foi cumprida. Os franceses receberam da Liga das Nações, em 1920, o mandato dos atuais Estados do Líbano e da Síria, enquanto os britânicos tornaram-se, por assim dizer, “mandatários” da Palestina, do Iraque e da Transjordânia. A “Grande Síria” de incumbência francesa nesse momento histórico era formada pelos atuais Líbano, Síria e a província Turca de Hatay, sendo importante salientar que tanto o Líbano como a Síria são sociedades marcadas pela presença de minorias étnicas e religiosas consideráveis, elemento fundamental para o entendimento dos problemas que a região vivencia.
Em 1920, a França elaborou um censo demográfico da região, a fim de dividir as terras sob o seu controle, prenunciando uma futura fragmentação do território em pequenas repúblicas, enquanto os britânicos privilegiaram a criação de monarquias constitucionais sob as suas possessões. O resultado do censo francês levou à criação de seis províncias na “Grande Síria”, onde o aspecto confessional seria nuclear para a criação dos futuros “Estados”, mormente o Estado de Aleppo, o Estado de Damasco, o Estado de “Jabal Druze” (“Jabal Druze” é uma transliteração do árabe que significa “montanha Drusa” ou “montanha dos Drusos”. Esta minoria religiosa ocupou áreas montanhosas do Líbano e da Síria, em função das perseguições que sofreu de outras ramificações do Islão, semelhante ao caso dos alauítas na Síria e dos Cristãos maronitas no Líbano, que também se caracterizaram por ocupar áreas montanhosas), o Estado Alauíta (os alauítas são uma minoria religiosa muçulmana, ligada ao ramo shi’ita, com forte devoção a ‘Ali, genro do profeta Maomé, considerado pelos shi’itas como o primeiro califa “Rashidun”, ou seja “O Bem Guiado”. A sua maior expressividade é na Síria e são conhecidos por celebrar um calendário de festividades religiosas que mistura datas muçulmanas e cristãs. Não devem ser confundidos com os Alevitas, minoria religiosa da Turquia, nem com a dinastia alauíta que governa o Reino de Marrocos), a Província de Alexandreta (Hatay) e o “Grande Líbano” (o termo “Grande Líbano” foi cunhado em função da anexação de parte do território Sírio no período do mandato Francês. O “pequeno Líbano” tinha como limite oriental o Monte Líbano.
Com o mandato francês proclamado em 1 de Setembro de 1920 pelo general francês Henri Gouraud, este limite estendeu-se até à cordilheira do Antilíbano, englobando todo o Vale do Bekka. A parte sul e norte também foram incluídas, integrando as cidades de Saída e Tiro ao sul, e Trípoli, a norte. Esta configuração territorial será a fronteira oficial da República do Líbano, formalmente reconhecida pelas Nações Unidas em 1946). Cada um destes Estados estaria sob a responsabilidade de uma elite confessional, tutelada pela França. Desde a sua independência, em 17 de abril de 1946, a história política da Síria tem sido marcada por vincados eventos.
A disputa de poder pelo domínio do país gerou, até 1971, uma série de golpes de estado. De 1946 a 1958, a Síria foi governada por dez presidentes. O egípcio Gamal Abdel Nasser foi presidente da República Árabe Unida (“Al-Jumhuriyah al-Arabiyah al-Muttahidah”) durante a existência desta, de 1 de Fevereiro de 1958 a 1961, resultado da união entre o Egipto e a Síria. Com o fim da RAU em 1961, na sequência de um golpe de estado, o partido Baath (o Partido Socialista Baath ou Ba’ath, forma abreviada de “Hizb Al-Ba’ath Al-‘Arabi Al-Ishtiraki” (“Partido da Ressurreição”) pedia a unificação do mundo árabe num único estado, defendendo a mistura ideológica do nacionalismo árabe, do pan-arabismo, o socialismo árabe e o anti-imperialismo) sírio teve um papel fundamental para a transformação política da Síria, sendo que em dois anos toma efectivamente a soberania do país, reforçando o seu carácter Pan-arabista e socialista.
De 1961 a 1970, sete presidentes ocuparam o cargo mais alto do executivo do país (Maamun al-Kuzbari, Izzat al-Nuss, Nazim al-Kudsi, Lu’ay Al-Atassi, Amin al-Hafiz, Nureddin al-Atassi e Ahmad al-Khatib) até que, em 22 de Fevereiro de 1971, o oficial da Força Aérea com fortes laços à União Soviética, Hafiz al-Assad, toma o poder através de um golpe militar. Contudo, ao contrário dos seus antecessores, consegue manter-se no governo até 2000, ano da sua morte. A transição política do seu governo foi feita através do seu filho, Bashar al-Assad, nesse mesmo ano, permanecendo este no poder até aos dias de hoje.
Hafiz al-Assad era de uma família modesta e fazia parte de uma minoria religiosa na Síria, os alauítas. Este carácter minoritário sempre esteve presente no seu governo, pois procurava frequentemente formas de governabilidade que permitissem a ascensão socioeconómica e política da sua minoria, bem como dos cristãos e drusos, muitas das vezes em detrimento da maioria sunita. Este sucinto retracto das sucessões presidenciais na Síria revela a complexidade da composição política no país, sendo que, somente a partir de 1971, o presidente Hafiz al-Assad cria as condições para controlar mais firmemente as Forças Armadas e os principais grupos político-confessionais do país. A maior presença das minorias nas Forças Armadas, bem como em cargos políticos e na burocracia síria, criou um grupo altamente fiel ao presidente e à sua família, o que pode ser constatado claramente na guerra civil iniciada em 2011.
Após a morte de Hafiz al-Assad, em 10 de junho de 2000, foi feito um referendo popular para legitimar a condução do seu filho, Bashar, ao poder, com apenas 34 anos de idade. Para isso, a própria constituição síria teve de ser alterada para diminuir a idade mínima permitida para ocupar o cargo de presidente. Bashar manteve as suas alianças locais como no período de seu pai, suportado principalmente no conjunto de acordos com as minorias. Num primeiro momento parecia que o novo presidente poderia trazer mudanças reais ao regime sírio em função da sua formação europeia (especializado em oftalmologista em Londres, Inglaterra) e em virtude da sua jovialidade.
Se bem que, nos primeiros anos, tenham sido efectuadas transformações esporádicas como, por exemplo, medidas de revitalização da economia, reforma das instituições de ensino, maior liberdade no acesso à informação (nomeadamente à internet) e outras tentativas de retirar a Síria do seu isolamento político, fomentando reformas no sistema fiscal com o objectivo de atrair investimentos e aumentar a competitividade das empresas nacionais, com o tempo, porém, começou a ser evidente que as forças políticas que sustentavam o governo sírio não permitiriam uma mudança mais profunda no status quo do regime.
Banhada pelo Mar Mediterrâneo, a Síria faz fronteiras com a Turquia (a norte), o Iraque (a leste), o Reino da Jordânia (a sul), Israel (a sudoeste; os dois países mantêm um diferendo relativamente aos limites das suas fronteiras comuns) e Líbano (a oeste). A maior parte do território é coberta por desertos, sendo que apenas uma planície estreita segue ao longo da costa oeste do país. O sudoeste é pródigo em montanhas que separam o restante território precisamente dessa franja de deserto que detém a particularidade de ser constituído por rochas e cascalho, ao invés da normal areia. Os principais rios do país são o Orontes (ou ‘Asi), com 571 km de comprimento, e o Eufrates (al-Furat), com 2.800 km, e em cujas margens proliferam as tamareiras.
Relativamente ao clima, a maior parte da Síria experimenta um clima seco, com invernos frios e verões muito quentes. Já a zona litoral é mais chuvosa e de temperaturas amenas. A capital da Síria, Damasco, que hoje atravessa uma dramática situação, é uma das mais antigas cidades habitadas do mundo, com uma história mais que decemilenar, tendo as prospecções arqueológicas revelado que a ocupação humana do lugar remonta ao período Neolítico.
Fundada por volta do século VII a.C., teve várias ocupações que foram alterando a sua fisionomia e funcionalidade. O nome desta cidade omíada já aparece atestado na documentação cuneiforme de Ebla e na documentação egípcia do século XII a. C. grafado como “Dimashqi”. Quando a família dos Banu Umayya, do clã quraysh (tribo do profeta Maomé) de Meca, tomou o poder califal islâmico em 661 (ano 41 da era islâmica), transferiu a sede do novel império árabe de Madinah para Damasco, conquistada aos bizantinos em 635. Fazia já duas décadas que o general fundador desta primeira dinastia califal apelidada de Umayyad (661-750), Mu’awiya Abu Sufyan, reinava nesse centro nevrálgico do Crescente Fértil – a região siro-palestina em sentido amplo – em nome do 3º califa ou sucessor do Profeta, ‘Uthman Ibn ‘Affan, conhecido como “ad-dhur an-nurain” (“o detentor de duas luzes”), devido ao privilégio de ter tido como esposas duas filhas do profeta Maomé, respectivamente Ruqayyah e Kulssum.
Nota: nas palavras árabes, cuja transliteração e fonética aqui são simplificadas, a acentuação gráfica visa garantir uma pronuncia que respeite tanto quanto possível a fonologia original das mesmas. Na maioria das vezes, corresponde a um alongamento vocálico. Por outro lado, lembremos que a repetição duma consoante aponta para uma intensidade fonética. O digrama th está para uma interdental à semelhança da pronuncia inglesa em thing, enquanto o dh é sonoro, como em this. O apóstrofe nessas palavras indica um golpe glotal no fim da palavra ou um hiato intervocálico ao cair entre duas vogais. Quanto ao apóstrofe invertido, ele indica uma fricativa gutural sonora bem típica do árabe. Típica também é a contracção gutural produzindo um som surdo áspero, parecido com o som dos gansos, e que se transcreve com o haga.
A autoridade árabe instalada em Damasco conseguiu, desde o princípio, atrair os favores da população cristã local, mantendo o essencial das estruturas civis e eclesiásticas então estabelecidas. O general conquistador Khalid Ibn Al-Walid confiara a Mansur ibn Sarjún (Vítor, filho de Sérgio), o representante da população então cristã que tinha negociado os termos da capitulação, a máquina administrativa e financeira. Com o decorrer do tempo, reforçava-se o entendimento entre os novos invasores vindos do deserto arábico e a população greco-aramaica de Damasco.
Nas altas esferas do poder, havia até uma certa convivência pessoal que se estendia aos salões palatinos, quer na capital, quer nos “castelos de lazer” construídos nas franjas do deserto envolvente. A isso faria eco, quatro séculos mais tarde, o famoso antologista literário de Baghdad, Abul-Faraj al-Isfahani. Referia ele as sessões de poesia e música, regadas com bom vinho, que Yazid, o filho de Mu’awiya e seu sucessor no califado (680-683 d.C.), promovia com a presença do celebrado poeta árabe cristão al-Akhtal e o já mencionado Sarjún.
Damasco e a sua região envolvente beneficiaram desde sempre pelo facto de se situarem numa planície muito fértil irrigada pelo rio Barada (ou Abana), com os seus 84 km de comprimento, além de outros cursos de água como o Rio Pharpar, formando um amplo oásis hoje conhecido pelo nome de Ghuta, que foi sempre um pólo de atracção para diversas populações das estepes desérticas que a envolviam e que se foram acolhendo junto às faldas orientais das montanhas do Líbano, de onde provinha a indispensável madeira de cedro e a pedra para as construções.
A região foi valorizada ao longo dos séculos pelos seus habitantes, de origem amorrita (povos semitas vindos do deserto sírio-árabe), com um diversificado sistema de irrigação que a tornou ainda mais próspera, o que contribuiu para um maior desenvolvimento urbano ao longo do II milénio a.C., embora nestes tempos recuados o nome de Damasco ainda não constasse nos textos. Sabe-se, sim, que durante algum tempo a cidade esteve subordinada ao poder de Mari, sendo a sua região conhecida como “país de Apum”, situada ao sul do reino de Qatna, também este vassalo daquela grande cidade do Eufrates.
As fontes para o conhecimento da história pré-clássica de Damasco provêm em grande parte de textos externos porque da própria capital pouco ou nada existe, tendo-se perdido para sempre os documentos aramaicos de origem damascena. Analisando certos dados de carácter mais geral, de timbre religioso e cultural, que são comuns ao vasto espaço geográfico onde Damasco se inseria, conclui-se que era então muito venerado Adad, deus da tempestade (correspondente ao sumério Iskur), que entre os Arameus foi designado por Hadad, nome divino que surge integrado na onomástica de vários reis da Damasco aramaica no I milénio a.C.
Nos povos semitas do Ocidente levantino Adad foi designado por Baal, um bem conhecido termo que tem o significado de “senhor” e que em Damasco correspondia à forma de Bel – o poderoso Adad era designado como Bel Purussi ou Bel Biri, isto é, o “senhor da decisão”. Entre os reis de Damasco que nos seus nomes teóforos integravam o nome do deus Adad (na sua versão de Hadad), conhecem-se para o I milénio, antes dos ataques assírios à cidade, o eficaz Ben-Hahad, que obteve vitórias contra o vizinho rei de Israel, e Hadadezer.
O nome da cidade também consta em textos egípcios datados do reinado de Tutmés III (1479-1425), nomeadamente numa lista de cidades cananaicas que aquele faraó subjugou e de quem recebia tributo. Damasco oscilou numa política dúbia entre os interesses do Egipto e os do reino do Mitanni, situado no Alto Eufrates, que na altura subsidiava a resistência de algumas cidades renitentes ao domínio egípcio, como Hamat e Kadech. Com a desagregação do reino do Mitanni, um novo poder despontou na região, também ele de origem indo-europeia, o reino do Hatti, cujo centro nevrálgico se situava na Anatólia, com a capital em Hatucha. Embora pressionada pelos Hititas, a cidade de Damasco manteve-se aparentemente fiel à aliança com o Egito e no reinado do famoso rei Akhenaton (1353-1336) as “Cartas de Amarna” mencionam que “Dimasku” na região de Upi pertencia ao Egito, desconhecendo-se no entanto se tinha uma guarnição egípcia.
A cidade é ainda referida no texto das campanhas do grande rei hitita Supiluliuma, desconhecendo-se se ela chegou a ser ocupada. Quando no reinado de Ramsés II (1279-1213 a.C.) se dá a batalha de Kadech (1275) entre o exército hitita e seus aliados e o exército egípcio, entre os adversários do Egito não consta a cidade de Damasco, que se terá mantido afastada do conflito, embora na sequência daquela batalha as tropas hititas tenham estacionado perto dela. Entretanto, os Arameus chegam e ocupam o fértil oásis damasceno a partir do século XI, tornando a discreta Damasco na capital de um dos mais poderosos reinos da Síria do Norte.
Foi a partir de David, o seu herdeiro Salomão e com o rei Rezon que se iniciou o apogeu do reino de Damasco, que conheceu um período áureo, com as suas caravanas a percorrerem as diversas e distantes rotas que as levavam até ao Egipto, à Anatólia e à Mesopotâmia, além de que a cidade beneficiava também como ponto de passagem e de abastecimento dos grupos de comerciantes que circulavam pelas rotas caravaneiras e ali faziam escala entre as estepes áridas de leste e a costa mediterrânica, onde se situava o seu principal parceiro comercial, a rica cidade de Tiro.
Entretanto o avanço assírio continuou durante o século VIII a. C. e a pressão da Assíria culminou na batalha de Karkar, em que o reino de Damasco viu o seu exército ser derrotado juntamente com outros reinos coligados, entre os quais o de Israel. Ainda assim, Damasco recuperou da derrota e continuou a desempenhar um importante papel na resistência tenaz que opôs, liderando coligações de cidades da Síria do Norte. Finalmente a cidade cai sob Tiglate-Pileser III em 732, perdendo a independência e tornando-se a capital de uma província do império assírio, para depois no século VI cair sob a alçada de Nabucudonosor da Babilonia.
A dinastia dos Selêucidas (Estado helenista que existiu após a morte de Alexandre Magno, o Grande da Macedónia (em 323 a.C.). Entre 323 e 64 a.C. existiram mais de trinta reis desta dinastia. O ano geralmente usado para definir a data da fundação do Império Selêucida é o de 312 a.C., estabelecido na Babilónia pelo general Seleuco I Nicator), herdeiros do grande império de Alexandre Magno que ficaram com a zona da Síria e Mesopotâmia, dominaram a região de Damasco, tendo aí instalado uma colónia greco-macedónia que se desenvolveu rapidamente, sendo no entanto a milenar cidade ultrapassada por Antioquia, fundada junto ao Mediterrâneo.
A partir do século I da era cristã, já sob domínio romano, Damasco tornou-se um empório comercial que se dedicava à tecelagem do linho e ao artesanato e à produção de instrumentos de metais nomeadamente de armas, até porque nas proximidades estacionavam várias legiões na instável fronteira com os Partos. Tendo embora uma longa história que recupera vários milénios, da antiga cidade de Damasco pré-clássica e clássica, que foi a capital de um dos mais poderosos reinos aramaicos, pouco resta. Os principais vestígios da velha urbe estão hoje inacessíveis já que se encontram precisamente no local onde agora se ergue a grande mesquita de Damasco, a qual recobre vários edifícios antigos de cariz religioso: romanos, selêucidas, aramaicos, até ao templo do deus Bel, que deveria ter sido no seu tempo de apogeu dos séculos X-VIII a. C. um notável edifício e um exemplo da arquitectura da Síria.
(continua na próxima edição)
1 comentário:
Excelente. Parabens.
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