Já perdeu muito tempo a pensar no que
fazer com este amigo demasiado autocentrado que lhe telefona a toda a
hora mas que nunca está disponível para ouvir o que ele tem para contar.
Acha que não tem de suportar o egoísmo dele para o resto da vida só
porque quando tinham dez anos jogavam ténis de mesa na casa dele. Enfim,
Jerry Seinfeld está sentado num café à frente deste amigo de infância,
com quem não tem nada em comum a não ser esse passado longínquo, e tomou
uma decisão: vai acabar com ele. Como? Da única forma que sabe acabar.
Jerry: Ouve Joel... acho que não devemos continuar a encontrarmo-nos. Esta amizade... não está a funcionar.
Joel: Do que é que estás a falar?
Jerry: Não fomos feitos para ser amigos.
Joel: Como é que podes dizer uma coisa dessas?
Jerry: Ouve, tu és bom tipo...
Joel: Hei! O que foi que eu fiz? Diz-me, quero saber!
Jerry: Não fizeste nada. Não tem a ver contigo. Sou eu.
O episódio da série norte-americana
Seinfeld é recordado pelo
escritor e poeta Pedro Mexia. Sobre o "fim da amizade", já falou muitas
vezes, em crónicas, em poemas e no seu blogue. Porque já perdeu grandes
amigos, diz, em conversa com a
2, porque sentiu necessidade de
reflectir sobre essa experiência "tão desagradável" de que se "fala tão
pouco", porque é um "tema tabu".
Lembra o episódio de
Seinfeld para ilustrar como "não há um
código para acabar uma relação de amizade, não existe na sociedade, não
há um comportamento apropriado".
Nas relações amorosas há, quanto mais não seja, o "isto não está a
resultar", "não tem a ver contigo, o problema sou eu", "sinto falta de
estar com outras pessoas" e mais todos os
clichés repetidos
pelo comediante que já vimos e revimos nas séries, no cinema e
replicados na vida real. Mas uma amizade, uma amizade a sério, intensa,
íntima, não é suposto acabar. Ou é?
"Quando o amor acaba, a tragédia é minimizada porque já sabíamos que "o
amor acaba". O fim de uma amizade é uma surpresa mais chocante",
escreveu numa crónica para o PÚBLICO, em 2008, intitulada
Teoria geral do ex-amigo.
"A mitologia diz que os amigos são indestrutíveis e eternos. Há, por
isso, um grau de decepção no fim de uma amizade que cobre de vergonha os
envolvidos."
De um amor que desaparece pode dizer-se que se confundiu o amor com uns
olhos azuis, como ironizava Mexia na crónica. "Nunca mais me apaixono",
ouve-se tantas vezes. Vale o que vale, mas quem já não viu alguém mais
ou menos abalado fazer essa promessa?
Bem mais improvável será ter ouvido: "Nunca mais vou ser amigo." Em
suma, diz Mexia: "Nunca achei que a amizade fosse mais importante do que
o amor, nunca comprei essa tese, mas, curiosamente, do fim do amor pode
falar-se abertamente", as pessoas acham isso normal. Enquanto do fim da
amizade "tem-se pudor em falar". E talvez por isso, todos os homens e
mulheres junto de quem a
2 recolheu testemunhos pessoais pediram para que os seus nomes verdadeiros não fossem usados.
Já agora, para quem não viu o episódio: Joel desfez-se em lágrimas.
Seinfeld voltou atrás, inventou uma desculpa esfarrapada - "Ando sob
grande
stress, podemos esquecer isto? Continuamos amigos,
continuamos amigos..." - e convidou-o para ir ver um jogo de
basquetebol. O humor com o qual a
sitcom aborda o assunto não tem qualquer correspondência com a realidade. É pura ficção.
A verdade é que "muita gente procura apoio de um profissional para lidar
com a dor que o fim de uma amizade provoca", diz Gabriela Moita,
psicóloga e terapeuta familiar. "O fim de uma amizade pode doer tanto
como o fim de outras relações, como o fim de uma relação amorosa, que é
algo muito mais cantado."
Nas suas consultas, a psicóloga lida com casos em que a narrativa sobre a
amizade repete argumentos que associamos a outras relações. Pessoas que
sentem que uma amizade lhes faz mal (porque é demasiado exigente,
porque é demasiado frustrante...) - mas que acreditam que "é melhor
persistir nas coisas do que abandoná-las", como se "ir embora de uma
relação fosse um falhanço" (onde é que já ouvimos isto? Nas relações
amorosas marcadas pela violência doméstica, por exemplo, lembra).
Mas nas consultas aparecem, sobretudo, pessoas "devastadas" porque
perderam um amigo. O fim de uma amizade, garante, também pode tirar o
sono, o apetite, a autoconfiança e a confiança nos outros. Pode
igualmente ser a última gota que faz cair um edifício já frágil -
Claudio Moraes Sarmento, psiquiatra e grupanalista, conta como
recentemente recebeu na sua clínica alguém com um quadro depressivo
desencadeado "pela traição de um grande amigo, uma espécie de irmão".
A tristeza que fica perdura no tempo. "Uma tristeza mais suportável e
mais duradoura que a tristeza amorosa", nas palavras de Pedro Mexia. E
também nas de Maria, 47 anos, separada, uma filha e uma vida da qual,
diz, fazem parte muitos amigos.
Não é com prazer que aceita dar um testemunho. "Não me apetecia nada
falar disto hoje", diz sentada à mesa da cozinha onde, três, quatro dias
por semana, recebe os amigos - "A minha filha pergunta sempre: "Mãe,
quem janta esta noite?""
Um dos casos que recorda tem anos, mas ainda hoje a incomoda
profundamente. "A ressaca de uma amizade é enorme. Não é a vertigem da
ressaca amorosa, mas fica para sempre. A paixão é uma necessidade que
alguém preenche - uma paixão substitui outra, pelo menos é o que eu
sinto. A amizade não. A amizade com uma determinada pessoa é única,
junta-se a outras, mas é única, não é substituível e, ao desaparecer,
fica um vazio que não pode voltar a ser preenchido."
A história então: são três amigas, duas zangam-se, Maria fica no meio.
Sabe que uma está bastante desiludida com a outra, mas decide não tomar
partido. Quer manter as duas amizades e, na verdade, acha que os
comportamentos do ser humano nem sempre são facilmente classificáveis
como, simplesmente, bons ou maus. Não sente uma necessidade urgente de
expressar um juízo. Mas a amiga que se sente desiludida não compreende
essa posição. Provavelmente, irrita-a este pudor de Maria em criticar a
outra amiga. "Houve uma conversa, ela disse que não tinha gostado, eu
senti-me desconfortável" e acabou.
A amiga afastou-se. A outra permaneceu. Mas cá está: um amigo não ocupa o
lugar de outro. "Vivi um ano de absoluta perplexidade e de dor." Pelo
vazio. Mas não só. "A capacidade que aquela pessoa teve de desistir de
mim foi algo tão violento que eu sinto que, de alguma forma, simbolizo
algo de muito desagradável na vida dela. Reflecti bastante e não cheguei
a grande conclusão. Mas fica sempre a dúvida: o que é que aquela pessoa
viu em mim? Porque para acabar uma amizade é preciso identificar no
outro algo profundamente errado ou mau, e agora estou a ser muito
primária. Mas se desistimos de um amigo é porque ele nos faz mal;
desistir da amizade é um castigo."
A revista britânica
Sociological Review publicou, na sua edição
de Maio, um artigo sobre o assunto. Uma equipa de sociólogos da
Universidade de Manchester analisou as narrativas de cerca de 200
pessoas sobre os "altos e baixos da amizade" - homens e mulheres (a
maioria casados e de meia-idade) que fazem parte do painel do British
Mass Observation Project, que pretende retratar o quotidiano dos
britânicos pedindo-lhes periodicamente que escrevam sobre certos temas.
Na última década, o tema "amizade" tem despertado o interesse da
academia, recordam os autores (Carol Smart, Katherine Davies, Brian
Heaphy e Jennifer Mason). Nas sociedades contemporâneas, "onde cada vez
mais pessoas vivem sós", se debate cada vez mais as novas formas de
família e até "se discute se os amigos estão a substituir as relações
familiares", há quem se dedique a perceber qual o papel das relações
interpessoais que não as marcadas pelo parentesco, como as que se
estabelecem entre amigos.
Nesses estudos, as amizades tendem a ser valorizadas como relações
agradáveis, com benefícios para todos os envolvidos, no pressuposto de
que "escolhemos os amigos". Já a possibilidade da amizade poder ser
"difícil", "problemática", colocar "dilemas morais", é menos
equacionada. No artigo
Difficult Friendships and Ontological Insecurity os sociólogos centraram-se, por isso, nos "baixos da amizade" - uma espécie de viagem ao lado negro das relações entre amigos.
Em muitos depoimentos analisados repetem-se estas três ideias: mesmo
quando há uma desidentificação, é suposto manter uma amizade - "Não se
pode abandonar um velho amigo mesmo se ele se torna cansativo", lê-se
num dos testemunhos; os nossos amigos estão associados "à imagem que
construímos de nós próprios", funcionam como uma espécie de espelho, ao
ponto de muitas pessoas relatarem que não querem rever um velho amigo
porque eles lhes faz lembrar um "eu" ligado a certas circunstâncias da
sua vida no qual já não se revêem; por fim, quando as amizades se
desvanecem, ou se rompem abruptamente, muitas pessoas sentem-se
profundamente inseguras - se um amigo as afasta, o que é que isso revela
delas? Que características tão "desagradáveis" ou até "inaceitáveis"
descobriram esses amigos que se foram embora?
"Podia contar histórias até amanhã de manhã de pessoas que sofreram
genuinamente com desilusões com amigos", diz Margarida Cordo, psicóloga.
Tal como Gabriela Moita, também ela lida com estes casos no
consultório. "Quando nos dedicamos a alguém afectivamente é espontâneo e
natural que criemos expectativas. Expectativas de alguma
incondicionalidade que não contempla certos tipos de atitudes como a
traição, a competição desleal, a infidelidade, porque não é só no amor
que há infidelidade."
Noutros casos há um profundo desgosto por uma relação se revelar assimétrica. Uma das psicólogas com que a
2
falou recorda o caso de Ana, chamemos-lhe assim, uma mulher solteira,
sem qualquer relação amorosa. Ana tem muitas amigas e faz questão de
estar presente na vida delas. Manda-lhes mensagens diárias,
telefona-lhes. É o tipo de pessoa que adivinha as necessidades das
pessoas próximas para tentar satisfazê-las. "O problema é que exige na
proporção do que dá e frustra-se a toda a hora", até porque as amigas
têm menos disponibilidade, têm companheiros e maridos. "Estamos a falar
de alguém que sofre muito com tudo isto..." e que, ao mesmo tempo, faz
sofrer as amigas que não conseguem lidar com esta amizade. Neste
momento, Ana anda a tentar descobrir outra forma de "ser amiga".
Raramente o fim de uma amizade é provocado por divergência de opiniões -
a amizade é um espaço de liberdade, onde se aceita a diferença, nota
Teresa Freire, investigadora da Escola de Psicologia da Universidade do
Minho. Essa é, aliás, uma das suas características intrínsecas. Quando
uma amizade acaba há antes, frequentemente, uma dimensão de "erro de
avaliação do carácter" - "Perder aquela amizade afectou-me
profundamente, abalou a minha confiança e fez-me acreditar que avalio
mal o carácter das pessoas", escreveu uma das participantes no estudo
britânico.
Margarida Cordo reconhece o sentimento: "Há uma pessoa que acompanho em
terapia que me pediu ajuda e o que me disse foi: "Preciso de me
pacificar face a uma desilusão de amizade. Ficar com a amizade ou sem
ela já é para mim uma questão secundária. Preferia ficar com ela, mas
mais do que reparar a amizade quero reparar-me a mim mesmo. Porque eu
era uma pessoa atenta. Hoje, sou uma pessoa desconfiada"."
A psicóloga não revela pormenores sobre este homem que arranjou emprego
numa empresa para ele e para um amigo que vinha dos tempos de faculdade.
Mas, no essencial, a história é esta: a "ambição" foi mais forte do que
o companheirismo. "O amigo montou-lhe uma armadilha, este caiu na
esparrela, cometeu um erro, o outro podia tê-lo ajudado a corrigir mas,
antes que ele tivesse oportunidade de corrigir, denuncia-o à chefia,
dizendo que aquele indivíduo não estava em condições de trabalhar porque
até cometia erros daquele calibre. Este ficou completamente arrasado.
Nas sessões, à medida que temos avançado, percebemos que isto foi tão
avassalador que o fez perder a capacidade de confiar, de acreditar na
lealdade."
Histórias em que trabalho, negócios e amigos resultam num
cocktail
amargo são, de resto, comuns. Francisco, 36 anos, experimentou-o e está
ainda a digerir o resultado. Conheceu Rodrigo na escola, em plena
adolescência, quando os amigos, como diz Teresa Freire, têm um papel
crucial no crescimento do indivíduo.
Tornaram-se inseparáveis e assim foi até entrarem na universidade.
Seguiram caminhos distintos. E afastaram-se. Até que um dia se
reencontraram.
Em pouco tempo estavam tão próximos como sempre tinham estado. Tinham
interesses comuns, profissões que tocavam a mesma área e Rodrigo, que
estava a formar uma empresa, convidou Francisco a entrar no projecto e a
ser seu sócio. Francisco não hesitou. Largou o emprego que tinha,
juntou as poupanças, investiu. "Mas sabia que ao trabalhares com um
amigo estás a pôr a amizade num dos pratos da balança." Arriscou na
mesma.
No início correu bem, depois veio a crise. Os concursos começaram a
escassear, as encomendas também. E a empresa começou a ter dificuldades.
"Se estivéssemos ricos, provavelmente nada disto tinha acontecido, mas
em tempos de crise não é fácil." No início, Francisco tentava não entrar
em confronto directo com o amigo-sócio. "Guardava para mim o que
pensava, não falava, para não prejudicar a amizade."
Com o tempo, percebeu que não estava a fazer aquilo que acreditava que
tinha de ser feito - para bem do negócio e da amizade. Mais tarde veio a
desconfiança. E foi o fim. Francisco afastou-se da empresa, já não tem
nada a ver com as decisões que lá se tomam, não quer ter.
Espera conseguir recuperar o dinheiro que investiu. Talvez seja mais
fácil do que recuperar a relação com o amigo. Continuam a falar-se,
cordialmente, até porque há projectos comuns a concluir. Mas não se
imagina, por exemplo, a voltar a tomar um copo com ele. "Amizade e
negócios, nunca mais."
Quer acreditar, no entanto, que tudo isto não vai deixar marcas maiores.
"Se calhar isto vai tornar-me uma pessoa mais cautelosa... Desconfiado?
Vou tentar não ir por aí."
O artigo
Difficult Friendships... distingue diferentes tipos de
amizades. Não são as amizades "simples" (expressão usada pelos autores)
que colocam problemas - estas amizades são descritas como aquelas que
estão associadas, sobretudo, à diversão, ao lazer e, em relação a elas,
muitos entrevistados não têm dúvidas de que se a relação deixa de ser
"agradável", o melhor é "deixar cair".
O problema são as outras - as "complexas", as do tipo "alma gémea",
lê-se. Ou, como descreve Pedro Mexia num dos seus textos, os amigos "a
quem um dia entregamos as chaves todas que tínhamos", os amigos íntimos.
As reacções às notícias que foram sendo publicadas nos últimos dias a propósito do artigo da
Sociological Review,
que foi notícia em vários jornais do mundo, mostram como as pessoas se
dividem na hora de falar deste tema. De forma mais ou menos amarga: "A
amizade canina é para sempre", escreve uma leitora na página do PÚBLICO
no Facebook. "As amizades são transitórias e [para] viver enquanto
duram", comenta outro. "Quando era mais jovem e passei por um período
difícil a pessoa que eu achava que era a minha melhor amiga não esteve
lá e senti-me profundamente traída", escreve outra ainda, no fórum do
jornal britânico
The Guardian. "A amizade pode ser mais forte do que os laços de família e provocar 50 vezes mais dor quando acaba", acrescenta outro.
Uma desilusão com alguém que tem o papel de "melhor amigo" pode
acontecer em qualquer altura da vida, com grande impacto. Na idade
adulta ou na adolescência. "Aparecem-me muitos adolescentes", continua
Gabriela Moita. "Muitos e muito desestruturados pela desilusão com um
grande amigo que, simplesmente, deixou de estar presente." Um grande
amigo que arranja uma namorada, por exemplo, anda perdido de amores por
ela e lhe passa a prestar todas as atenções. "Os namoros roubam tempo e a
pessoa que tem mais tempo é a que vai sofrer mais porque sente muito a
perda, sente abandono, sente-se deixada para trás... e é isto que traz
as pessoas aqui, a consciência de que já não se tem aquela pessoa."
O psiquiatra Claudio Moraes Sarmento, de resto bastante crítico do
artigo da revista britânica, por o considerar "demasiado sociológico",
prefere descentrar as dores da amizade da relação de amizade em si.
Defende que os mecanismos que cada um tem para lidar com afastamentos e
rupturas, frustrações e perdas são iguais nas amizades como noutro tipo
de relações - "tem a ver com a nossa personalidade, com os nossos
mecanismos de defesa", as "vivências precoces" e "o meio em que fomos
criados".
É um facto, continua, que diferentes tipos de relações "satisfazem
diferentes tipos de necessidades, mas o modo como as pessoas se movem
nos vários núcleos é mais ou menos constante". Ou seja, alguém mais
intolerante à frustração reagirá de forma mais violenta à mesma numa
relação de amizade, de trabalho, familiar ou outra.
Mas não é esta a narrativa reproduzida por muitos testemunhos, não só nos analisados no artigo da
Sociological Review, como nos recolhidos pela
2.
Tal como Pedro Mexia, ou Maria, Paula, uma professora de 37 anos,
solteira, conta o que lhe aconteceu aos 20 e poucos anos com o maior
amigo e a comparação com outro tipo de relações volta a ser referida
nestes termos: "É muito parecido com o que se sente no fim de uma
relação amorosa, se calhar mais doloroso."
Carlos era o maior amigo dela desde a adolescência. Encontravam-se todos
os dias. Frequentavam a casa um do outro quase diariamente. "Ele era um
tipo muito inteligente, muito talentoso..."
Um dia, Carlos arranjou uma namorada de que Paula foi aprendendo a
gostar - a gostar tanto que hoje, essa rapariga, é uma das suas "maiores
amigas".
Naquela altura, contudo, Paula, estava ao lado de Carlos quando o namoro
acabou. E ele não se conformava com a ruptura. Mas não era só isso.
"Foi uma altura complicada para ele, a vida profissional não lhe estava a
correr bem, a ela sim, estava a correr melhor, pelo menos... e ele
começou a arranjar-lhe problemas. Creio que isso acontecia porque estava
inconformado com o fim da relação. Dizia mal dela, espalhava rumores no
trabalho dela." Procurava prejudicá-la.
Quando um dia arranjou forma de excluir a ex-namorada de um projecto,
Paula achou demais. "Já o tinha visto fazer certas coisas" que a faziam
duvidar se ele seria de facto boa pessoa. "Mas eram coisas que não me
tocavam directamente e, como éramos amigos, deixava passar, tentava
desculpabilizar. A verdade é que demorei muito tempo a assumir que ele
tinha mau carácter."
Falou com ele. Depois com ela. "Contei à ex-namorada dele o que ele
tinha feito para a prejudicar" profissionalmente. E ele, como seria de
esperar, reagiu mal. "Foi uma grande amizade que acabou de um dia para o
outro e sofri muito, muito, muito. Aquela pessoa fez-me uma falta
horrorosa e aquela perda foi muito sentida."
Muitos anos depois, Paula e Carlos reencontraram-se. Foram beber um
café. "Tinha saudades dele. Mas quando comecei a ouvi-lo falar da sua
carreira, dos colegas, percebi que ele falava da mesma maneira, que não
tinha mudado." O olhar benevolente com o qual lidara com o seu amigo,
durante anos, quando todos os dias estavam juntos e iam a casa um do
outro, desaparecera. Aquela amizade não podia ser resgatada.
Rosa, jornalista de 36 anos, casada, sem filhos, nunca reencontrou, ao
longo dos últimos 15 anos, uma amiga que perdeu por... enfim, nunca
soube porquê. "Conheci a minha amiga no primeiro ano de faculdade e
rapidamente nos tornámos inseparáveis. Tínhamos imenso em comum: o facto
de não termos família na cidade onde estudávamos, a música, o cinema, a
poesia, os sonhos. Não havia nada que me acontecesse na vida que não
lhe contasse. Ficávamos acordadas até altas horas da madrugada a
conversar, ora em casa dela ora na minha. Nesses quatro anos de amizade
não me lembro de termos uma grande discussão. Ela não era apenas uma
amiga, era a minha melhor amiga."
A certa altura decidiram partilhar casa. Os primeiros desentendimentos
surgiram por causa de coisas corriqueiras. "A louça por lavar, algum
objecto fora do sítio habitual, a partilha do comando da televisão..."
Mas falava-se pouco disso. "Eu percebia que ela estava amuada (digamos
que o clima lá em casa ficava pesado) mas nunca sabia porquê. Tinha de
insistir com ela para que ela me contasse o que se passava. "Ah, afinal
foi o copo que eu usei e não lavei logo a seguir, ok, desculpa"."
Com o tempo, as "birras" começaram a parecer-lhe disparatadas. Rosa não
acha que seja uma pessoa particularmente desarrumada. Mas estava em
casa, na sua casa, não na tropa. "Um dia cansei-me dos amuos. Decidi não
perguntar nada, não dizer nada. Se eu tinha feito algo que lhe
desagradou, então ela que tivesse a maturidade de dizer logo o que era!
Estava farta das birras. Os dias passaram e eu entrava em casa e era
aquele mau clima. Mas mantive-me teimosa: ao menos uma vez na vida não
ia andar atrás dela, a implorar, ela que desse o primeiro passo. As
semanas passaram e nada. Mais de um mês depois eu já não aguentava o
ambiente, detestava ir para casa, fazia tempo na rua. A situação chegou a
um ponto insuportável e decidi sair de casa. Aluguei um apartamento e
disse-lhe que me ia embora. Ela concordou que era melhor."
Passaram, portanto, 15 anos. "Nunca mais a vi. Nem nunca soube qual
tinha sido a minha falha." Um copo fora do lugar, uma vez mais? Admite
que sim, que tenha sido tão-só isso ou qualquer coisa com gravidade
idêntica. "Mas até hoje não sei. Fiquei imensamente magoada pelo sinal
que ela me dava: afinal, a nossa amizade valia tão pouco, não valia
nada."
Ana Roque Dantas é socióloga e assistente de investigação no Centro de
Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa. Escreveu um livro,
chamado
A Construção Social da Felicidade, que deverá ser publicado em breve pela Colibri.
Tal como os sociólogos que analisaram os relatos do Mass Observation, a
socióloga confirmou nas suas entrevistas a importância dos amigos "como
fonte de satisfação". Mas também constatou que a amizade não é algo de
estático. A entrada na universidade, o casamento, o nascimento do
primeiro filho são identificados pelos entrevistados como momentos
importantes de mudança - mudança também de amigos. "Não há
necessariamente rupturas, há afastamentos e a necessidade de criar novos
amigos. Fala-se disso com algum pesar, mas aceita-se."
Teresa Freire, que também está envolvida num projecto de investigação
que inquire uma amostra de pessoas ao longo do tempo e lhes coloca
questões sobre o seu quotidiano e o seu bem-estar, lembra aliás que "há
estudos que mostram que quando as pessoas percebem que em diferentes
contextos podem fazer novos amigos, isso é muito gratificante para elas"
- significa que uma grande amizade "pode ser construída em qualquer
momento da vida".
"Vamos mudando as nossas necessidades, os nossos gostos e mudamos as
pessoas com quem nos damos. E isso não tem de ser algo de mau: é a
evolução normal. Temos é de ter sempre amigos e alguns amigos íntimos",
afirma por seu lado Moraes Sarmento. Já a ideia de que "os amigos duram
para sempre" é tão verdadeira quanto a de que "os pais gostam sempre dos
filhos" ou a de que "temos de aceitar sempre a família que temos - é
mentira, há famílias muito boas e há famílias muito más e por vezes é
importante que haja mesmo uma separação, um corte".
Resumindo: na verdade, poucas pessoas parecem manter amigos a vida
inteira. E os especialistas acham que isso até tem um lado bom. Mas a
muitos assusta esta ideia de que até a amizade é a prazo. "Há uns anos,
um ministro, ou uma ministra, do Emprego, francês apresentou uma lei do
trabalho e alguém lhe perguntou: "Então e o trabalho precário?..." E ele
respondeu: "Mas se até o amor é precário, porque não o trabalho?" É uma
resposta um bocadinho cínica, vinda de um ministro, claro. Mas sim,
creio que as coisas são cada vez mais precárias", diz Pedro Mexia.
O mundo é mais veloz, viajamos mais, conhecemos mais pessoas e até
desamigamos no Facebook - "Chamarmos amigos a alguém que não
reconheceríamos na rua deu à palavra "amizade" uma conotação de
superficialidade que ela não tinha ou, pelo menos, que achávamos que não
tinha", continua o escritor. Não significa que não haja amizades
intensas. "Mas há 20 anos não ouvia com tanta frequência falar de tantas
amizades perdidas ou interrompidas, como ouço hoje (em privado, claro,
porque, como disse, as pessoas continuam a ter muito pudor de falar
disso). Sinto que até a amizade se tornou vítima da precarização das
relações sociais." O que é normal, porque a "amizade não vive numa
redoma e o ambiente social em que vivemos digamos que corrói todas as
relações humanas". Nada é para o resto da vida, nem o trabalho, nem o
amor. Nem os amigos. "É um dano colateral da mudança civilizacional."
"Há 20 anos, se queríamos telefonar a um amigo tínhamos de chegar a uma
cabine pública ou a casa, discar um número fixo, esperar que ele lá
estivesse e se não estivesse que alguém lhe desse o recado, e esperar",
ilustra Margarida Cordo. "Precisávamos de fazer esforço, de nos
empenharmos, para ter amigos. Hoje temos pessoas, pessoas, pessoas, e se
olharmos para a profundidade do que é a partilha, a confidência, o
interesse genuíno do outro por nós e de nós por outro... existe pouco."
Dias depois da conversa com a
2, Francisco, o rapaz que se
zangou com o amigo-sócio, envia-nos a digitalização de uma crónica
escrita no ano passado por Miguel Esteves Cardoso no PÚBLICO. Chama-se
Amigos para Sempre e
nela o autor conta: "Nesta semana, tenho almoçado com amigos meus
grandes, que, pela primeira vez nas nossas vidas, não vejo há muitos
anos. Cada um começa a falar comigo como se não tivéssemos passado um
único dia sem nos vermos. Nada falha."
"Nem a propósito" - escreve Francisco no
subject do
email através
do qual partilha a crónica. Sim, ele está a sentir neste momento como
uma amizade falha. E sim, acha que são coisas que acontecem... Mas é
muito mais agradável continuar a acreditar que algumas resultam e são
"para sempre".