quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
A EUROPA VISTA PELOS PORTUGUESES
Neste ano prestes a findar, a Europa esteve, pelas melhores e pelas piores razões, no centro das preocupações dos portugueses. E, como sempre, vozes se ergueram a favor e contra a pertença do nosso país não ao Velho Continente, que geograficamente integramos, mas à instituição que, progressivamente, o vem representando.
É, por isso, interessante, determo-nos um pouco sobre uma pequena obra, editada recentemente, e que se debruça sobre a ideia que os portugueses tiveram da Europa desde que o seu nome entrou na nossa literatura.
Refiro-me ao texto do prof. Martim de Albuquerque, A ideia de Europa no pensamento português, publicado originalmente em 1981, com o título "Primeiro Ensaio Sobre a História da 'Ideia da Europa' no Pensamento Português", no In Memoriam de Ruben Andresen Leitão e incluído depois nos Estudos de Cultura Portuguesa, vol. I (1984), daquele historiador e jurista. A presente reedição, mais de 30 anos depois do seu aparecimento, justifica-se pela actualidade que conserva.
Dissertando sobre a realidade geográfica, histórica, psicológica, política, religiosa, económica e jurídica da Europa, o autor recorda-nos que é difícil precisar a entrada da palavra Europa na nossa literatura, mas que alguns textos e a história comparada permitem determinar com segurança o sentido prístino que alcançou entre nós e que foi, prima facie, um sentido geográfico. Nese sentido, a palavra é mencionada na Crónica Geral de Espanha de 1344.
Na sua viagem pelo tempo, Martim de Albuquerque fala-nos da cultura greco-latina dos humanistas, e da revolução cultural dos descobrimentos, que são as duas linhas de força na construção da ideia de Europa. Refere-se a Erasmo, o "humanista dos humanistas" e alude às utopias ao gosto de Thomas Morus. Camões, n'Os Lusíadas, reconduzindo a Europa à ideia de cristandade, configura-a como uma realidade no campo dos valores.
Em menos de cem páginas, encontramos, entre muitos outros, António de Sousa de Macedo, autor de Flores de España, Excelencias de Portugal (1631), o Padre Raphael Bluteau, Vocabulario Portuguez e Latino (1728), Garrett, Portugal na Balança da Europa (1830), Solano Constâncio, O Observador Lusitano em Paris (1815), José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, Projecto de Guerra Contra as Guerras, ou da Paz Permanente Offerecido aos Chefes das Nações Europeias (1821), Vicente Ferrer Neto de Paiva, Elementos de Direito das Gentes (1857) e Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (1871) incluído em Prosas (1926).
Também a noção de Europa (e a própria Europa) sofre no século XIX uma das suas grandes crises. Sobre o tema se debruça também Eça de Queiroz, Prosas Bárbaras (1903) e Notas Contemporâneas (1908). Já Magalhães Lima havia traduzido, em 1874, Os Estados Unidos da Europa, de Charles Lemmonier, que Martim de Albuquerque publica em apêndice à obra em apreço. Na luta pela ideia de Europa, são ainda mencionados, no século passado, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Afonso Duarte, Adolfo Casais Monteiro, Agostinho da Silva, etc.
Conclui Martim de Albuquerque: «O Ensaio permanece em aberto, à espera de oportunidade para se desenvolverem as pistas indiciadas e para se explorar, nomeadamente, a Literatura Contemporânea. No entanto, aqui fica já delineado o processo cultural português de uma temática fundamental na história da civilização: o conceito de Europa. Da mais embrionária e linear concepção - mitológica-físico-geográfica-material - à última perspectiva aqui por nós abordada, de tipo abstracto e espiritualista, a ideia de Europa vai desenvolvendo um longo percurso, diferentemente concebido, segundo as marcas culturais e ideológicas de cada época. Mas sempre como uma constante do ideário português.»
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
A PAZ PERPÉTUA E A GUERRA SEM FIM
Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados desde 2005 |
Preconizava Kant a paz perpétua mas entrámos tragicamente numa guerra sem fim. É já superior a 50 milhões o número de refugiados no mundo actual, como revela António Guterres em entrevista ao PÚBLICO, conduzida por Teresa de Sousa, e que pelo seu interesse transcrevemos:
O ano visto por António Guterres: Todos perdemos
Do seu posto de liderança do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres tem uma visão global e real da desordem que impera no mundo. O ACNUR tem hoje a seu cargo o maior número de refugiados e deslocados desde a II Guerra Mundial.
Há um dado que nos choca particularmente: o número de refugiados e deslocados em 2014 é o maior desde o fim da II Guerra.
É verdade. No final de 2013 tínhamos mais de 51 milhões de pessoas internamente deslocadas ou refugiadas por causa de conflitos, o que aconteceu pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. Só que 2014 não vai ser melhor. Vou dar-lhe apenas uma breve descrição de alguns dos acontecimentos que tivemos de enfrentar no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Logo no princípio do ano houve o agravamento dramático da situação na República Centro-africana e no Sudão do Sul. Na RCA a explosão de violência resultou até hoje em meio milhão de pessoas internamente deslocadas e mais de 200 mil novos refugiados nos quatro países à volta. E isto, não contando com os mais de 200 mil que já lá estavam de crises anteriores. No Sudão do Sul, a erupção de violência começou a 15 de Dezembro e já levou a 1,4 milhões de pessoas internamente deslocadas e a cerca de meio milhão de novos refugiados na Etiópia, Quénia, Uganda e Sudão.
Esses são aqueles a quem muitas vezes quase não prestamos atenção.
Essas são as crises de alguma forma negligenciadas pela comunidade internacional, uma vez que as atenções estão essencialmente concentradas no Médio Oriente e, em particular, a crise sírio-iraquiana.
Que aumentou muito o número de refugiados a que tem de responder.
Entre Síria e Iraque temos cerca de 13 milhões de pessoas deslocadas internamente ou refugiadas nos países vizinhos. Logo em Janeiro, tivemos a violência em Anbar (Iraque, na fronteira com a Síria), que originou cerca de 600 mil pessoas deslocadas no interior do Iraque. Depois, em Fevereiro, houve a evacuação de Homs e a complexidade da situação da Síria. Logo em Abril o número de refugiados sírios no Líbano atinge um milhão e podemos imaginar o impacte que teve num país que está, ele próprio, em crise política e com uma situação de segurança extremamente precária. Um terço da sua população é hoje composto por sírios e palestinianos. Ainda em Abril, no Líbano, ocorreu o rapto de vários soldados libaneses na região de Arsal, que têm vindo a ser horrivelmente degolados pelo Estado Islâmico.
Esse é o novo método de terror dos fundamentalistas
Embora com muito menos publicidade do que os ocidentais que tiveram o mesmo destino. Tudo somado, temos hoje 3,3 milhões de refugiados sírios e 7,6 milhões de pessoas internamente deslocadas. Nessa altura, tivemos de enfrentar a crise aguda de falta de financiamento do Programa Alimentar Mundial (PAM), que fornece a alimentação aos campos de refugiados e que, por falta de fundos, anunciou que iria reduzir a alimentação a cerca de 800 mil refugiados em vários países africanos. Foi um momento extremamente dramático como pode calcular.
E conseguiram resolvê-lo?
Foi parcialmente colmatado. Vai-se resolvendo mês a mês de uma forma precária e preocupante. Em Junho, começa a ofensiva do Estado Islâmico no Iraque, que tomou Mossul e Tikrit. Já temos no Iraque 2,1 milhões de pessoas internamente deslocadas. Agosto, além do Iraque, é também o mês em que um maior número de pessoas morre no Mediterrâneo: apenas em cinco dias morrem trezentas e o maior número de pessoas que hoje cruzam o Mediterrâneo têm problemas de protecção, porque são sírios e eritreus. Não são, como no passado, imigrantes económicos. Em Agosto o número de refugiados sírios atinge os três milhões, transformando a população refugiada síria no maior grupo a cargo do ACNUR. Em Setembro dá-se o ataque a Kobani [cidade curda na fronteira com a Turquia tomada pelo Estado Islâmico]. Há que sublinhar o facto de a Turquia ter aberto imediatamente a sua fronteira, acolhendo 190 mil pessoas que cruzaram essa fronteira em apenas duas semanas.
Em Outubro temos um marco importante na crise nigeriana, ultrapassando-se os 100 mil refugiados nos países limítrofes, já sem falar dos 650 mil deslocados só durante este ano. Em Novembro, lançámos a nossa campanha global visando acabar com o estatuto de apátrida em 2024. Finalmente, este mês foi particularmente difícil quando o PAM voltou a anunciar que já não tinha verbas, mas que felizmente se pode resolver rapidamente.
Como explica esta situação de desordem internacional que mesmo os mais pessimistas não conseguiam prever? É apenas a ausência americana?
Se olharmos para o carácter da desordem mundial no que nos diz respeito, ela resulta de uma megacrise na Síria e no Iraque e de uma série de novos conflitos na RCA, Sudão do Sul, Ucrânia, Nigéria, sendo que, ao mesmo tempo, parece que as velhas crises não morrem. O Afeganistão continua a ter 2,6 milhões de refugiados, a Somália um milhão, a República Democrática do Congo cerca de 500 mil.
Recordo-me que, quando estudava história no liceu, as guerras tinham normalmente um vencedor e um vencido. Agora, nas guerras ninguém ganha, todos perdem. A guerra vai-se eternizando e não há capacidade para a terminar. É isso que é diferente.
As consequências do fim da Guerra Fria só agora é que nos estão a chegar?
Quando estava no Governo, vivemos o período unipolar da hegemonia norte-americana. Houve uma primeira fase complexa, com os Balcãs e o Cáucaso, mas era evidente que havia uma grande concentração de poder nos Estados Unidos. Nunca houve um sistema de governança eficaz a nível mundial, mas havia relações de poder claras. Lembro-me que, na crise de Timor, a questão decisiva era convencer o Presidente Clinton de que alguma coisa tinha de ser feita. No momento em que Clinton disse que era preciso intervir, imediatamente a Indonésia aceitou, o Conselho de Segurança votou unanimemente, a Austrália já tinha forças preparadas e o problema resolveu-se. Estou convencido de que, se o problema de Timor fosse hoje, nada disto seria possível. O que acontece é que hoje não vivemos num mundo bipolar, não vivemos num mundo unipolar, mas também não vivemos num mundo multipolar. Vivemos num mundo relativamente caótico em que, continuando a não haver um sistema de governança a nível mundial, as relações de poder deixaram de ser claras e, quando isso acontece, cria-se uma situação de imprevisibilidade e de impunidade.
Isso acontece pela perda de influência do mundo ocidental, ou a sua falta de vontade, que está a ser posta à prova pelo resto do mundo?
As relações de poder no tempo da crise de Timor eram claras. Deixaram de o ser. A influência dos EUA é hoje menor. Há novas potências emergentes, embora nem sempre seja clara a sua estratégia. A Rússia vive hoje uma situação muito complexa, que gera uma enorme imprevisibilidade. Em todas as questões decisivas, o Conselho de Segurança foi incapaz de agir e isso é particularmente preocupante. Recentemente, ouvi uma dos meus colegas comentar que ainda não tinha percebido se estávamos em transição para um mundo com uma nova estrutura ou se, pelo contrário, este já era o novo estado do mundo - de caos nas relações internacionais.
Só no Iraque, a ofensiva do Estado Islâmico já fez mais de dois milhões de deslocados |
Para que lado se inclina?
Penso que a tendência, até pela evolução da economia dos diferentes actores, será para que se evolua para uma multipolaridade. Mas convém recordar que um mundo multipolar sem estruturas multilaterais fortes pode ser extremamente perigoso. A Europa era assim antes da I Guerra Mundial.
Nesse mundo, aliás, a moeda corrente volta a ser o nacionalismo. Na Rússia como na China e até na Europa. A nossa crença na interdependência da globalização afinal está a alimentar o nacionalismo.
Em relação às grandes potências, esse regresso seria facilmente previsível. Após o fim abrupto da União Soviética e até de algum sentimento de humilhação sentido pela Rússia, seria previsível uma tentativa de reafirmação nacional – independentemente da forma como está a ser feita. Da mesma forma que, sempre que um país emerge como potência económica, mais tarde ou mais cedo quer afirmar-se como uma potência política. Era também previsível que isso acabasse por acontecer na China. A questão é saber se é ou não é possível criar formas multilaterais de governance que possam enquadrar esses nacionalismos num sistema de cooperação internacional que seja eficaz.
Mas creio que enfrentamos um conjunto de outras situações que tornam mais difícil a capacidade da comunidade internacional para enfrentar os desafios do nosso tempo.
Quais são eles?
Primeiro, fala-se muito de falta de liderança e, muitas vezes, essa falta é apresentada em termos pessoais: que saudades temos de Willy Brandt, de Olof Palme, de Bruno Kraisky, para falar apenas do socialismo. Como se o problema fosse de falta dessas pessoas excepcionais. Creio que a questão é bastante mais funda. Por um lado, a forma como a vida política tem evoluído com uma crescente promiscuidade com os media transformou a política numa actividade muito pouco atractiva para as pessoas de grande qualidade. E, por outro lado, há um divórcio crescente entre estruturas políticas e a opinião pública, embora tenhamos à nossa disposição uma panóplia de novas tecnologias que poderiam ajudar a organizar de uma forma mais moderna as relações entre poder político e cidadania. O projecto europeu é de alguma forma vítima de tudo isso. E a ausência de uma Europa forte e politicamente unida em todas estas crises internacionais é um factor particularmente grave.
Obama tentou mudar a relação dos EUA com o mundo, de acordo com as transformações mundiais. Tentou durante quatro anos oferecer uma forma de cooperação com a Rússia que não resultou. Tem pela frente um movimento fundamentalista islâmico ainda mais aterrador. Conseguiu sentar os iranianos à mesa das negociações. Intervém, tarde e a más horas, na Síria…
Mas tudo o que disse apenas reforça a ideia de que a capacidade americana de influenciar é hoje muito menor. Quando olhamos para a presidência de Obama, ela também foi vítima daquilo a que eu chamaria uma vingança do passado. No início da sua presidência era muito clara uma estratégia centrada na ideia de que o futuro centro das relações internacionais era o Pacífico e que a relação crucial seria entre os Estados Unidos e a China.
Não estou a dizer o contrário. Penso que esta visão de futuro faz sentido. Acontece que Obama acabou por ser vítima, não da incapacidade de responder aos desafios do futuro, mas da vingança dos problemas do passado. Não foi possível libertar-se da questão do Iraque. O problema palestiniano continua a corroer as relações entre o mundo ocidental e o mundo islâmico. Portanto, esta questão tem hoje uma centralidade ainda maior do que o início da sua presidência. E mesmo que as relações de reset com a Rússia fossem um esforço notável, de repente temos na Ucrânia a vingança de uma Guerra Fria mal acabada, de um certo excesso de optimismo em relação ao facto de o fim da União Soviética não ter sido visto com suficiente atenção De alguma forma, temos um Presidente cuja estratégia virada para o futuro é permanentemente posta em causa pelo regresso dos problemas do passado.
Mas creio que o tempo presente é marcado por uma outra série de questões para as quais ainda não foi encontrada uma resposta. Se alguma contribuição deu a civilização europeia à civilização universal, ela tem muito a ver com os valores do Iluminismo – a tolerância e o primado da razão. Ora, esses valores que tínhamos como adquiridos deixaram de existir. E há três factores que os contrariam. Em primeiro lugar, os nacionalismos agressivos; em segundo lugar, os fundamentalismos religiosos que não são apenas o fundamentalismo islâmico; e finalmente os conflitos étnicos que não têm justificação nos tempos modernos mas que estamos a ver multiplicar-se de uma forma particularmente agressiva, com o afloramento de formas de racismo e xenofobia, mesmos nas sociedades mais desenvolvidas.
Muita gente pensou que a crise financeira que se abateu sobre os EUA e, depois, sobre o resto do mundo iria acelerar o declínio americano. Hoje, a economia americana está a recuperar e são alguns desses países que estão com problemas económicos. Há aqui um factor que pode reequilibrar as coisas?
Acho que o grande erro dos analistas é pegar nas circunstâncias do momento e tentar extrapolá-las para a eternidade. É verdade que a influência relativa dos EUA no mundo diminuiu em relação ao que era há 20 anos. Mas é também verdade que os Estados Unidos continuam a ter uma capacidade económica e um dinamismo absolutamente notáveis. As duas coisas são verdade. Não se pode pensar que poderemos regressar ao período de hegemonia americana no passado, mas também não se pode pensar que os EUA deixam de ser o país mais importante na economia mundial e ainda a força militar mais significativa.
Fazendo que os outros tenham de levar em consideração de novo a sua capacidade económica e política.
Hoje é evidente que nada se pode fazer sem os EUA, mas que os EUA já não podem fazer nada sozinhos. Não há forma de combater as alterações climáticas sem envolver a China que já é o maior poluidor. O mais preocupante é a incapacidade dos países indispensáveis a um novo consenso mundial de conseguirem ultrapassar as desconfianças para se juntarem de uma forma positiva face aos grandes desafios do tempo presente, sejam eles os conflitos, as alterações climáticas, as pandemias ou a pobreza.
Mas a minha esperança é que isso, mais cedo ou mais tarde, acabe por acontecer porque hoje estão em causa questões verdadeiramente dilemáticas em relação ao futuro da humanidade. A minha visão é que, para o fazer, é necessário liderança e espírito de compromisso mas seria bom também olhar para a possibilidade de fazer algumas reformas que levassem a um multilateralismo mais efectivo.
António Guterres com refugiados sírios numa visita a Sófia, Bulgária, em Novembro de 2013 |
E nós vimos isso na própria União Europeia: o enfraquecimento das instituições europeias não ajudou à resolução dos problemas europeus.
Mas quando olhamos para o mundo é muito difícil sermos optimistas. Mesmo na Europa não
há grandes razões para optimismo.
É um caso muito particular. Primeiro, porque é o continente onde, mesmo que em termos relativos, se vive uma certa decadência, quer em relação às novas potências emergentes, quer em relação aos próprios Estados Unidos. Há um sentimento de frustração evidente. Por outro lado, vivemos numa situação paradoxal: os problemas europeus obviamente não podem abdicar de um forte contributo nacional de cada país, que tem de assumir as suas responsabilidade e fazer o que lhe é devido para as soluções dos problemas que são colectivos. Mas também é óbvio que não há resposta aos problemas da Europa que não seja europeia. Infelizmente, a evolução política, a credibilidade das suas instituições e o próprio divórcio entre as elites políticas e a cidadania têm levado a que cada vez mais europeus sejam contrários ao grau acrescido de integração que seria necessário para resolver os seus problemas. Esperamos que este paradoxo se resolva, mas neste momento, a Europa enfrenta uma crise grave.
O que se vê hoje, mesmo com este crescimento dos que precisam de protecção, é uma vaga de xenofobia que varre a Europa desde a Suécia à Alemanha, que não tem a ver directamente com as dificuldades sociais e que condicionam os governos europeus.
Apesar de tudo, esses fenómenos são minoritários. O que tem havido é falta de coragem dos partidos que governam a Europa para os combater em nome de valores e de princípios. Há um tacticismo político que só tem favorecido o crescimento dessas forças. Pense num jovem na França de ascendência argelina que não teve sucesso na sua formação, que vive num bairro relativamente degradado da periferia de uma grande cidade, que não tem emprego e que está revoltado. Há 20, 30 anos, havia uma série de ofertas ideológicas para exprimir a sua revolta. Hoje não há. Para este jovem a única coisa que está disponível é o Islão radical. Da mesma forma, para um outro jovem de outra étnica que não tem emprego, que vê o seu futuro sem esperança, que sente a insegurança, a única forma de exprimir a sua revolta é o nacionalismo xenófobo. Há aqui um combate por valores e princípios que as forças políticas nacionais têm de assumir sob pena de perderem a capacidade de enquadrar positivamente as suas sociedades.
O que vemos é que as coisas não vão nesse sentido.
Mas também há exemplos positivos. Justamente nos países que mencionou: a Alemanha e a Suécia. Cerca de metade dos pedidos de asilo na Europa foram feitos nesses dois países. A Alemanha tem uma atitude muito generosa em relação aos sírios.
E começa também a ter as manifestações de segunda-feira em relação à imigração islâmica.
Isso pode ser verdade mas também tem uma enorme pressão da sua opinião pública para receber os sírios. O que é preciso é que as forças políticas centrais não deixem perder os valores da solidariedade e da generosidade. Mas se esses valores não se afirmam, se ninguém os corporiza, a única coisa que fica disponível são as respostas irracionais e de revolta.
Isso só revela que não há respostas tácticas para um problema estratégico. O euro foi concebido como o final a integração. Ora, era apenas um passo para cujo êxito era necessária mais integração. A minha esperança é que o que tem de ser tem muita força e que, um dia, as pessoas percebam que o caminho não é a renacionalização das políticas, que não leva a coisa nenhuma e que a maneira de resolver o problema é resolve-lo conjuntamente.
Mas a hegemonia alemã é um factor novo. Os interesses dos outros países têm de ser levados em conta.
Mas isso exige também que os outros países compreendam a necessidade de assumir as suas responsabilidades a todos os níveis. E isto é verdade para a economia como é verdade para o asilo. O exemplo do asilo é o contrário: a Alemanha recebe o maior número de requerentes de asilo em todo o mundo. E temos países europeus a fechar as suas fronteiras. É preciso que cada país assuma as suas responsabilidades.
Acreditar na Europa passou a ser uma matéria de fé?
A Europa, em termos relativos, vai viver uma progressiva perda de influência à escala mundial. Pode fazê-lo de forma desordenada e com um preço muitíssimo mais elevado para os europeus, ou pode fazê-lo assumindo colectivamente os seus valores e assumindo uma estratégia comum para aproveitar ao máximo o que é ainda hoje um extraordinário património europeu. Com tudo o que se possa dizer acerca da relativa decadência europeia ou da relativa ascensão de outros países, eu continuo a preferir ser europeu e viver na Europa.
A Europa teve um ano muito particular. Enfrenta a crise na Ucrânia para a qual não estava preparada, porque não tinha uma estratégia para a Rússia. Conseguiu por enquanto manter-se unida e soube coordenar-se com os EUA. Merkel foi aí fundamental. Tem o Mediterrâneo transformado em cemitério, como disse o Papa, e está rodeada por um arco de crise e de instabilidade no seu flanco sul e sudeste. Tem a Turquia perdida. Há 10 anos era o modelo para o mundo, hoje não sabe como lidar com ele.
Se há uma coisa que é evidente é a ausência de Europa política no mundo enquanto tal. Há uma presença francesa, uma presença inglesa, não há uma presença europeia. Mas é também verdade que essa política europeia teria que enfrentar um conjunto de situações muito complexas e que também elas se traduzem em heranças não resolvidas. A herança de uma Guerra Fria que não foi completamente resolvida. A herança de uma forma de tratar a Turquia que, na minha opinião, foi completamente errada. À Turquia devia ter sido dada no momento próprio a garantia de que entraria se cumprisse os critérios de Copenhaga. Isso não aconteceu e entregou-se a Turquia à possibilidade de escolher outros caminhos. E agora pagam-se as consequências disso. E também em relação à Primavera Árabe não foi feito o suficiente.
Lembro-me que, no início da nossa democracia, tivemos um apoio maciço da Europa, incluindo financeiro. A Tunísia, o Egipto não tiveram o mesmo apoio. Não houve a visão para compreender que essas jovens democracias eram muito frágeis e precisavam de uma solidariedade maciça. E quando se é egoísta nas relações internacionais, isso normalmente dá muito mau resultado.
Voltando um pouco atrás, a Europa tenta fechar as suas portas, enquanto, como já referiu várias vezes, os países mais pobres são muito mais generosos. O Líbano, a Jordânia, a Turquia estão a receber milhares e milhares de refugiados da Síria e do Iraque.
Oitenta e sete por cento dos refugiados estão no mundo em desenvolvimento. Eram apenas 70% há 15 anos atrás. O que revela que a tendência não é um afluxo de refugiados para os países desenvolvidos. Pelo contrário, é para os países em desenvolvimento, que são países muito frágeis e alguns com problemas dramáticos.
É por isso que está a tentar ligar a ajuda humanitária à ajuda ao desenvolvimento para esses países?
Estamos a fazer um grande esforço para que se compreenda que as políticas de cooperação para o desenvolvimento têm de ser revistas tendo em conta a nova realidade. Em primeiro lugar, as necessidades do ponto de vista humanitário estão a crescer exponencialmente. E os orçamentos humanitários não acompanham esse crescimento. Vou dar três números. Em 2011, por causa de situações de conflito, 14 mil pessoas eram deslocadas por dia. Em 2012, 23 mil. Em 2013 trinta e dois mil. Só nos casos de conflito. Por outro lado, as políticas de cooperação para o desenvolvimento representam oito vezes os valores da ajuda humanitária. Simplesmente, essas políticas não têm em conta a mobilidade humana e é fundamental que a passem a ter. O Líbano ou a Jordânia situam-se num estado intermédio de desenvolvimento, os chamados “países de rendimento médio”, e por isso não têm acesso a mecanismo de ajuda à cooperação. Isto não faz qualquer sentido. É fundamental rever as políticas de ajuda ao desenvolvimento no sentido de integrar nessas políticas o apoio à estabilização daqueles países que estão na primeira linha de defesa, não só em relação aos refugiados mas na primeira linha de defesa da nossa segurança colectiva.
A falta de liderança internacional, que sentimos tanto, fez do Papa o grande herói de crentes e não crentes, mostrando que as pessoas são sensíveis aos valores.
Independentemente da falta de outros líderes, há que reconhecer que este Papa foi uma lufada de ar fresco não apenas na vida da Igreja mas nas relações internacionais. É uma voz que beneficia de dois factores: da sua própria força e capacidade de surpreender e de mobilizar e também de alguma falta de outras vozes capazes de desencadear nas pessoas os mesmos efeitos. Mas não menosprezemos o seu próprio valor. O Papa Francisco é um dos sinais de esperança que apesar de tudo nos faz pensar que a humanidade pode dar a volta a muitos dos problemas que hoje não consegue resolver.
As palavras do Papa são entendidas na própria Europa, com todo o seu cepticismo.
O que significa que as opiniões públicas são sensíveis a valores. Se os valores não forem afirmados, as pessoas irão atrás dos interesses, dos receios, da insegurança… Por isso, creio que é essencial restabelecer linhas ideológicas e lutar por valores e princípios sob pena de só facilitarmos a vida às posições extremas.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
JOÃO ROSA LÃ - (IN)CONFIDÊNCIAS DIPLOMÁTICAS)
O embaixador João Rosa Lã publicou muito recentemente um interessante livro de memórias, Do Outro Lado das Coisas - In(Confidências Diplomáticas), onde regista a sua actividade como diplomata ao longo dos 43 anos em que esteve ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Neste livro de memórias, prefaciado pelo prof. Adriano Moreira, Rosa Lã não só dá conta da sua evolução na Carreira, como fornece um panorama da posição de Portugal no quadro internacional, através dos postos em que serviu, anotando também diversos episódios curiosos ocorridos no desempenho das suas funções, normalmente ignorados do grande público e que, por isso, constituem sempre motivo de interesse.
Trata-se de um livro muito bem escrito, na forma e no conteúdo, e ainda que dando dos acontecimentos a perspectiva do autor, que é por natureza subjectiva, procura reunir elementos bastantes para que o leitor possa, também ele, ajuizar da realidade dos factos.
João Rosa Lã começou por desempenhar funções em Genève (OSCE), Marrocos, Venezuela, Bruxelas e Washington e foi embaixador de Portugal na Guiné-Bissau (1993 a 1994), Países Baixos (1996-1999), Áustria (1999-2001), igualmente acreditado na Eslovénia e na Eslováquia, Espanha (2002 a 2004), França (2004 a 2006) e Marrocos (2006 a 2011). Foi ainda Director-Geral dos Assuntos Multilaterais do MNE (2001 a 2002), assessor diplomático do ministro da República para os Açores, general Rocha Vieira (1987 a 1988) e assessor diplomático do primeiro-ministro Cavaco Silva (1994 a 1995).
O livro de Rosa Lã (RL) é uma obra volumosa (mais de 600 páginas), declarando o autor que, por razões editoriais, ainda teve de reduzir muito as suas memórias. Nem poderia ser mais breve, já que além dos factos pessoais Rosa Lã tece largas considerações sobre política internacional, revelando aspectos mais do conhecimento das chancelarias do que da comunicação social e que, por essa razão, não chegam habitualmente ao conhecimento da opinião pública.
Não sendo possível, nos limites de um post, tecer considerações de fundo sobre a obra, limitar-me-ei a assinalar alguns episódios que pelo pitoresco ou pelo insólito mais despertaram o meu interesse.
- Estando RL em Caracas, estabeleceu uma relação de amizade com o engº Santos e Castro, antigo governador-geral de Angola, que ali se encontrava exilado depois do 25 de Abril. Numa das muitas conversas que mantiveram, este ter-lhe-á confidenciado que Marcelo Caetano, no início de 1974, o incumbira de preparar uma independência unilateral do território (p. 120)
- Aquando da realização da CIRCA 1492, comemorativa dos 500 anos da descoberta da América, organizada em 1992 pela National Gallery of Art, de Washington, o director desta instituição, o influente Carter Brown, ficou encantado com o nosso acervo de tesouros artísticos, cujo empréstimo solicitou para a exposição. Apos longas negociações, foi decidido ceder o "Painel do Infante", atribuído a Nuno Gonçalves, as "Tentações de Santo Antão", de Bosch, o medalhão de terracota com as armas portuguesas, de Andrea della Robbia, a tapeçaria de Pastrana evocativa da tomada de Tânger, etc., ficando os americanos com a responsabilidade da embalagem e do transporte, enquanto os portugueses pagariam os respectivos seguros. Como estes eram elevadíssimos, e não havia verba disponível no Orçamento, a decisão do envio das peças foi sucessivamente protelada para grande irritação da direcção da National Gallery. Finalmente, já no fim do prazo admissível, o secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes, autorizou a saída das famosas obras, que foram embarcadas sob rigorosas medidas de segurança. Tendo curiosidade de saber como haviam sido conseguidas as verbas do seguro, RL colocou a questão ao embaixador Bouza Serrano, então chefe de gabinete de Santana Lopes, tendo-lhe este respondido que se tratara de um "seguro político". RL nem queria acreditar. As obras haviam viajado para Washington e regressado a Portugal pura e simplesmente sem qualquer seguro (p. 230)
- Estando em curso a campanha para conquistar o voto americano para a candidatura portuguesa à Exposição Mundial de Lisboa a realizar em 1998 o presidente da República, Mário Soares deslocou-se a Washington para tentar convencer os congressistas a apoiar a escolha de Lisboa, já que Toronto também se havia candidatado e era uma séria concorrente. O embaixador de Portugal na capital americana, Francisco Knopfli, ofereceu um grande banquete na Residência, aos congressistas mais influentes e considerados amigos de Portugal, entre os quais o democrata Barney Frank, do Connecticut, uma figura cujo voto seria decisivo para as nossas intenções. Muito instado por RL, Frank mandou dizer que só aceitaria o convite se o seu jovem motorista e amante e por quem estava apaixonado fosse igualmente convidado. Como Frank fora um dos primeiros congressistas a declarar a sua opção homossexual e que, por isso, gozava de uma certa fama, a Embaixada acabou por aceder àquela pretensão. O jantar, com 50 convidados de primeira linha, foi um êxito, mas aconteceu que Frank, que se sentava imediatamente à esquerda do Presidente, levantou-se por três vezes do seu lugar para acariciar a cabeça do amigo e lhe segredar ao ouvido. Esta atitude, segundo RL, agastou visivelmente Mário Soares (suponho eu que pela infracção protocolar, já que Soares foi sempre aberto em matéria de costumes) que depois do jantar não queria dialogar com o congressista, o que frustraria o objectivo do convite, condescendendo todavia a trocar algumas palavras com o mesmo no final do repasto (p. 227)
- Ainda a propósito de banquetes, quando Jorge Sampaio visitou oficialmente a Holanda foi convidado pela rainha Beatriz para um jantar de gala no Palácio de Haia. Um dos convidados era o presidente da instituição equivalente ao nosso Tribunal Constitucional que vivia maritalmente com um amigo e que, naturalmente, também foi incluído na lista de convidados do jantar de retribuição oferecido pelo nosso presidente da República. Quando RL procurou saber, junto do Chamberlain da rainha, qual o lugar que protocolarmente cabia ao parceiro do referido alto magistrado foi-lhe primeiro respondido "nenhum", e depois "ao pé dos criados" (p. 379)
- Durante o período que passou em Bruxelas, na Missão Portuguesa junto das Comunidades Económicas Europeias, RL alude a um episódio ocorrido com o então ministro dos Negócios Estrangeiros, engº Pires de Miranda. E escreve: «Depois de uma séria e desagradável conversa com o Ministro, já seguramente inquinado com a boataria e as críticas soezes, percebi que o meu futuro estava fixado e que maus dias me aguardavam. Segundo Pires de Miranda me disse nessa troca de palavras, ele estaria habituado à selva dos petróleos que era muito pior do que a "selva dos diplomatas" e, por isso, não descansaria enquanto não nos pusesse na ordem, nem que para isso fosse preciso dar cabo da maior parte de nós e acabar com "esta" Carreira. "Conheço-vos bem!", concluiu ele. Com estes preconceitos e esta disposição de espírito, o Ministro não me parecia, claramente, a pessoa indicada para chefiar um corpo de profissionais que sempre cumprira, desde início da sua fundação havia dois séculos e meio, o melhor que podia a sua missão e que era responsável, em grande parte, pela nossa existência como país soberano. Não seria Portugal, acima de tudo, uma obra de militares e de diplomatas? Mas para saber isto e outras coisas importantes, seria necessário conhecer a nossa História e não ter do mundo uma visão redutora e meramente contabilística limitada a barris de petróleo!». (pp 163-164)
Em abono desta opinião de RL devo dizer que sempre ouvi as piores referências a respeito de Pires de Miranda, não só quanto ao seu péssimo feitio como à sua propalada competência como gestor e nomeadamente como especialista de petróleos. Terá sido hábil, isso sim, na construção da sua própria reputação.
- Tendo o presidente Jorge Sampaio efectuado em 2005 uma visita de Estado a França, uma das cerimónias foi a condecoração de várias personalidades franceses pelo chefe de Estado português. Abordado o assunto dos nomes com a Presidência da República, uma das pessoas que mereceu desde logo a unanimidade foi a actriz francesa Catherine Deneuve, protagonista de muitos filmes de Manoel de Oliveira e visita assídua de Portugal. Tentou RL obter os contactos da senhora para lhe falar pessoalmente. Não o tendo conseguido e sabendo que esta se encontrava em Los Angeles acompanhada pela sua secretária acabou por telefonar-lhe. Transcrevo: «Num diálogo a três, fui informado de que a Senhora não estava interessada em receber qualquer distinção, nem se encontrava com quem tão generosamente se propunha honrá-la em nome do seu País onde ela tanto trabalhara. Anos mais tarde, encontrámo-nos no Festival de Cinema de Marraquexe. Ficámos sentados lado a lado. Tentei conversar com ela e contar-lhe que já lhe havia falado para Los Angeles. Nem se dignou olhar para mim... Já não conseguindo esconder as maldades que a idade lhe fizera no seu belo rosto, foi meia cambaleante para o palco para a entrega dos prémios, mas só o fez depois das câmaras de televisão que ali estavam serem desmontadas pois prejudicavam-na e aborreciam-na. Nunca encontrei criatura tão absurdamente parva... (pp 557-558)
- Enquanto assessor diplomático de Cavaco Silva, RL descreve um episódio sintomático da arrogância, da grosseria e do novo-riquismo dos norte-americanos, a propósito da nomeação de Elizabeth Bagley para embaixadora dos EUA em Portugal. Transcrevo:
«À chegada ao nosso país, Bagley não tinha gostado do estado da residência da Embaixada e decidiu fazer nela obras de remodelação importantes, tendo alugado uma casa, enquanto duraram os trabalhos. Contrariamente aos usos e regras protocolares em vigor relativamente às residências oficiais dos Embaixadores acreditados em Portugal, que obrigam a que a mesma esteja situada no concelho de Lisboa, a Embaixadora dos Estados Unidos alugou uma casa em Sintra. Esta regra surgira da necessidade de impedir que a maioria dos Embaixadores fossem residir na chamada linha Estoril-Cascais, não respeitando, assim, a regra protocolar básica de as Embaixadas estarem sempre situadas na capital do país onde estão acreditadas.
Por razões de segurança, os responsáveis americanos decidiram fechar ao trânsito algumas das ruas que davam acesso à nova residência em Sintra, o que levantou enorme celeuma entre os vizinhos prejudicados. Creio que foi com cedências deste género por parte da nossa administração, que a Senhora Embaixadora dos Estados Unidos acreditou que podia forçar a satisfação de todos os seus desejos. Um mês depois da visita do Secretário de Estado Christopher, celebrou-se o 4 de Julho, a festa nacional americana. Como não dispunha de espaço suficiente na sua nova residência e por não querer fazer como todas as outras Embaixadas, alugar os salões de um hotel ou de outro local apropriado, Bagley decidiu festejar à beira Tejo, num local central da zona ribeirinha, logo a seguir às docas, ocupando os espaços que estão disponíveis para o lazer e desporto dos lisboetas. Obtida a cedência do local, a Embaixada armou, naqueles enormes relvados dando directamente para o rio, uma gigantesca tenda, com outras mais pequenas para albergar os pavilhões das firmas que financiavam o evento, como a Coca-Cola, a McDonald's, etc. Sempre invocando razões de segurança, a embaixada erigiu vedações provisórias em toda a volta do referido recinto, para impedir o acesso ao interior. Não satisfeitos com todos estes atropelos à ordem pública do país onde a sua missão diplomática estava acreditada, os serviços de segurança americanos fecharam igualmente o trânsito nos arruamentos que davam acesso às outras zonas não ocupadas, na margem ribeirinha. Eu próprio, passando por mero acaso por aquela zona, vi com espanto até onde ia o à vontade e o descaramento dos marines americanos e comuniquei ao Comandante da PSP de Lisboa o que se passava. Alguns minutos mais tarde, os locais públicos foram evacuados, o trânsito restabelecido e a acção dos militares da embaixada confinada ao interior do recinto.
Se a Embaixadora em questão não era muito dada às sensibilidades diplomáticas, mostrando uma arrogância pouco própria do seu estatuto, já o seu marido era inenarrável. Um dia propôs ao governo português (a que título?) a cedência da exploração das Pousadas de Portugal à cadeia Hilton (de que ele era accionista, creio), "dada a incapacidade dos portugueses se ocuparem com eficácia da mesma e a vantagem em internacionalizar o seu serviço". Noutra ocasião, durante um jantar no Palácio da Ajuda, estando nós, a minha Mulher e eu, em amena cavaqueira com os Embaixadores Knopfli, aproximou-se a Embaixadora Bagley e o marido, que nos foi apresentado. Ao saber que estava diante do Secretário-Geral do MNE e antigo Embaixador nos Estados Unidos, o dito marido perguntou-lhe se era ele o mesmo que não tinha querido pagar o visto diplomático americano, solicitado havia pouco tempo. Referia-se o homem a uma desagradável história passada com a Embaixada americana, por esta se ter recusado a dar um visto de cortesia (gratuito) ao funcionário mais importante do Ministério dos Negócios Estrangeiros e, além disso, ex-chefe de Missão em Washington, como, aliás, é regra protocolar em todos os países. Depois da secretária do Embaixador Knopfli ter sido informada de que os Estados Unidos tinham acabado com os vistos de cortesia em todo o mundo, procedeu ao seu pagamento sem delongas, não deixando de manifestar a sua estranheza pela decisão. Ora, o Sr. Bagley, com a sensibilidade a e a boa educação que o identificavam, depois de ter relembrado o incidente, puxou de uma nota de cinco mil escudos e quis dá-la ao Embaixador "para o compensar da despesa". Escusado será dizer que todos ficámos gelados, sem acreditarmos no que tínhamos ouvido. O Embaixador Knopfli, retendo a enorme vontade, igual à nossa, de o mandar para outro sítio, virou-lhe as costas, mostrando a sua indignação por tão soez atitude. Seria razão para o considerar persona non grata, se não fôssemos um país de brandos costumes.» (pp. 330-333)
Esta atitude não me causa admiração. Dos americanos há a esperar tudo, normalmente o pior.
- Em 2004, RL foi designado embaixador em Paris, em substituição do embaixador António Monteiro que havia sido nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Santana Lopes. Como este governo cessou funções em Março de 2005, tendo sido substituído pelo governo de José Sócrates, pretendeu António Monteiro, que havia ficado "pendurado", regressar ao seu antigo posto, o que implicaria a remoção de Rl, apenas com um ano de missão naquela capital. Foi, por isso, com espanto, que Rosa Lã escutou o telefonema do novo MNE, o prof. Freitas do Amaral. Transcrevo: «Era o Ministro Freitas do Amaral informando-me, no tom majestático e enfatuado com que gostava de impressionar os funcionários dele dependentes, que a situação em França era "muito grave", após a recusa popular da Constituição Europeia e que ele, Ministro, precisava de ter em Paris um Embaixador com muito maior "peso" do que eu, para fazer face ao que se iria passar em França nos próximos tempos. Tinha, por isso, decidido nomear para me substituir, um "peso pesado" do Ministério, que tinha acabado de ser Ministro dos Negócios Estrangeiros, que, como eu sabia, "constituía a função mais importante que se podia ocupar no aparelho do Estado". "O Senhor, em contrapartida, não passa de um mero funcionário diplomático" (sic). (p. 571)
Não é possível, mesmo tratando-se de faits divers em que o livro é fértil, alongar-me nas citações. Por isso, mais não salientarei do que as muitas referências de RL às intrigas e invejas na Carreira, de que todos estamos cientes, e a um lapso num livro conceptualmente tão rigoroso. Escreve RL a p. 75: «Estando as forças políticas espanholas totalmente envolvidas na luta pela sucessão e na disputa entre os palácios do Prado e da Zarzuela, não quiseram, ou não puderam, opor-se aos movimentos estrategicamente feitos por Hassan II...». Ora se João Carlos habitava o Palácio da Zarzuela, o generalíssimo Franco habitava não o Prado (que é o Museu) mas o Palácio do Pardo. Todavia, pode tratar-se de uma mera gralha tipográfica.
Pelo muito que revela da Carreira e de episódios menos conhecidos da vida política nacional e internacional, o livro do embaixador Rosa Lã é um valioso contributo para a história da diplomacia portuguesa. Pena é que esteja praticamente esgotado.
domingo, 28 de dezembro de 2014
SEXUALIDADE AFEGÃ
A partir de "THE DISORDER OF THINGS", por sugestão da profª Maria João Tomás:
What We Talked About At ISA: ‘Afghan Masculinities': The Construction of the Taliban as Sexually Deviant
The paper I presented earlier this month
at the International Studies Annual Conference held in San Francisco
looks at how Afghan masculinities have been represented in and by
Anglo-American media. The words ‘Afghan man’ conjure up a certain image,
a pathologised figure that is now associated with most males in
Afghanistan. The paper analyses this figure of the ‘militant’ Afghan
man, most strikingly captured by descriptions of the Taliban and
juxtaposes it with the less popular, though still familiar trope of the
‘damned’ Afghan man, embodied in the figure of the Afghan President,
Hamid Karzai. But here I focus on a particular construction of the
Taliban as sexually deviant, (improperly) homosexual men.
Jasbir Puar, in her trenchant appraisal of today’s war machine and the politics of knowledge that sustains it argues that the depictions of masculinity most widely disseminated in the post 9/11 world are terrorist masculinities:
failed and perverse, these emasculated bodies always have femininity as their reference point of malfunction and are metonymically tied to all sorts of pathologies of the mind and the body – homosexuality, incest, pedophilia, madness and disease.
Whilst representations of al-Qaeda as
pathologically perverse have permeated the Western mainstream, the
Taliban because of its historically low international profile has
escaped that level of media frenzy. The attention it does get, however,
is almost always mired in Orientalist fantasies of Eastern men as
pathologically disturbed sodomisers. The ‘high jack this fags’ scrawled
on a bomb attached to the wing of an attack plane bound for Afghanistan
by a USS Enterprise Navy officer, while in no way ubiquitous, is
certainly an edifying example of our image of the Taliban as perverse
and not quite “normal”.
This perversity of the Taliban has been
largely attributed to their madrassa upbringing, an all-male
environment and their concomitant attitude towards women. Echoing
anthropologist Lionel Tiger’s concerns that “it is in the crucible of
all‐male intensity that the bonds of terrorist commitment and
self‐denial are formed”, Ahmed Rashid claims
that the members of the Taliban had been brought up in a “totally male
society”, in the “madrassa milieu”, where “control over women and their
virtual exclusion was a powerful symbol of manhood and a reaffirmation
of the students’ commitment to Jihad. Indeed, “denying a role for women
gave the Taliban a kind of false legitimacy rooted in the political
beliefs and ideologies”. Tiger focusing on al Qaeda offers the
conventional and over-stated male-bonding thesis as an explanation for
their failed masculinity and sexual perversity. In this imaginary, a
lethal mix of male homosociality, the segregation of male and female
populations and Islamic ideology carves out a space for terrorism,
illicit sex and paedophilia. Both al‐Qaeda and Taliban are used as
examples of this dangerous concoction.
The Talib is at once “too masculine” and
repulsively effeminate. As a Pashtun, he belongs to the “martial races” –
a designation invented by the British in the 19th century and is
proclaimed to be inherently “warrior‐like”. These qualities once used
to extol the virtues of Afghans as a “noble” “fighting-people” are now
used to denounce them as products of a culture of nasty fighting.
Indeed, as with all discursive regimes, the question of power (as
knowledge) is of paramount importance: we see the culturally sanctioned
“hegemonic masculinity” of the 20th century Pashtuns morph into a
widely-reviled, failed masculinity of the Taliban in the 21st century.
Sensationalist reportage on paedophilia
among so-called terrorist populations has become pedestrian after 9/11
and Pashtun Afghans have been painted, on more than one occasion, as
queer sodomisers. The collection of photographs that Thomas Dworzak
recovered in 2001 from dusty photographic studios in Kandahar capture a
different side of the Taliban – dressed in colourful clothes, reading
books and often with kohl applied to their eyes. However, as Faisal
Devji notes in his introduction to The Poetry of the Taliban
“these images are seen and described as ‘foreign’ or ‘other’”. Dworzak’s
explicit aim in his work was to portray the Talibs as “human” and
perhaps even “normal” in their complexity, not the one-dimensional
monstrous figures they are conventionally depicted as, however, the
photographs have been appropriated and interpreted as evidence of a
pathological Pashtun tendency towards “queerness”.
Although Pashtun men are not authentically “homosexual” they are, so this story goes, “culturally” paedophiles. A Telegraph headline opines rather forcefully: ‘Paedophilia Culturally Accepted in South Afghanistan’ and the sentiments are echoed by the Examiner.com which cites U.S. soldiers and Reuters journalists as saying Paedophilia is a “way of life” in Afghanistan. The New York Times contends that paedophilia is the “curse” of “male-dominated Pashtun culture. Tim Reid of The Times writes
of the “Pashtun obsession with sodomy”, “the Taliban’s disdain for
women” and “the bizarre penchant of many for eyeliner”. In this
environment of degeneracy and deviance, the construal of Pashtun men as
not quite homosexual but still engaging sexually with other men (or
boys) is a profoundly political act. It lets us, as Western observers,
bemoan the “state of affairs” in Afghanistan, but it allows us to hope
for a brighter future post- intervention. By “saving Afghan women” from
Afghan men, we are therefore, also saving Afghan men from themselves in
this liberal humanitarian narrative.
However, with both homosexuality (or its
lack thereof) and paedophilia it is almost as though the issue at stake
here is solely the discomfort experienced by the foreign troops
stationed in Afghanistan. In spite of its tongue-in-cheek tone, an article by The Scotsman published in 2002
gets to the heart of the matter. “In Bagram British marines returning
from an operation deep in the Afghan mountains spoke last night of an
alarming new threat—being propositioned by swarms of gay local farmers.”
The reactions of the marines, even if not entirely serious, are
telling: An Arbraoth marine, James Fletcher exclaims: “They were more
terrifying than the al-Qaeda [sic]. One bloke who had painted toenails
was offering to paint ours. They go about hand in hand, mincing around
the village”. In the words of Corporal Paul Richard, the experience was
“hell”: “Every village we went into we got a group of men wearing
make-up coming up, stroking our hair and cheeks and making kissing
noises”.
The inevitable pop-psychologising
follows. The author Chris Stephen offers: “The Afghan hill tribes live
in some of the most isolated communities in the country”. And one of his
interlocutors, a marine Vaz Pickles adds: “I think a lot of the problem
is that they don’t have the women around a lot… We only saw about two
women in the whole six days. It was all very disconcerting.” In spite of
its jocose tone, the deep-seated homophobia and racism of these
soldiers is notable – a band of effeminate Afghan men are labelled as
“more terrifying than al‐Qaeda”.
The San Francisco Chronicle makes the point patently clear:
“Western forces fighting in southern Afghanistan had a problem. Too
often, soldiers on patrol passed an older walking hand‐in‐hand with a
pretty young boy”. The choice of words is instructive: it is Western
forces who “had a problem”.
And so, visibly perturbed and laden with
suspicions about the perverse sexual tendencies and inclinations of the
Pashtun people, the US military decided to conduct an academic enquiry
into the ways of the Afghan people. The result: a Human Terrain report
conducted by the US army on “Pashtun Sexuality”. Ostensibly, to help
American soldiers fight better and be more culturally sensitive, the
report essentially turned out to be an exercise in sensitising Western
fighters to the devious ways of the Other. The report written by Anna
Maria Cardanalli, a social scientist (of sorts), claims to draw on
ethnographic studies and anthropological expertise argues:
Military cultural awareness training for Afghanistan often emphasizes that the effeminate characteristics of male Pashtun interaction are to considered “normal” and no indicator of a prevalence of homosexuality. This training is intended to prevent servicemembers from reacting with typically western shock or aversion to such displays. However, slightly more in‐depth research points to the presence of a culturally-‐dependent homosexuality appearing to affect a far greater population base then [sic] some researchers would argue is attributable to natural inclination.
The source of the discomfort, in line
with the report on Pashtun sexuality, is that homosexuality in southern
Afghanistan, is a) “culturally-‐dependent” and b) affects a greater
number of people than is deemed “natural”. Since the report makes a case
for “Pashtun sexuality” as neither “natural” nor “normal”, but as
culturally-‐sanctioned debauchery it becomes easy to label their
homosexual interactions as “inauthentic”.
The argument is that “statistically” gay
men are supposed to be a minority and given the high incidence of
homosexuality in Afghanistan, there is something “deviant” and
“unnatural” about this. Indeed, numerous commentaries point out that
homosexuality is something “they do” and not something “they are”.
Inasmuch as gay men are not a minority in Afghanistan, they are not
really homosexual, they are merely deprived – of female intimacy.
Similarly, paedophilia is a cultural “norm” in Afghanistan because of
the lack of “freely available” women. In accordance with this reasoning,
most same‐sex relationships have been reduced to a “Pashtun obsession
with sodomy”. Not only does this play into a strange identity politics,
whereby we decide what they are and how this makes them different from
us, it also often functions in accordance with a reductive causation
according to which effeminacy is equated with homosexuality. “Hugging
doesn’t mean sex locals tell us, and neither does wearing kohl or
colourful sandals.”
The tension in Anglophone reporting about
Afghanistan surfaces yet again when grappling with the openness with
which men enter into relationships with other men. On the one hand,
given the ease with which male-male relationships are discussed in
Kandahar one may be forgiven for thinking that Kandahar is exceptionally
tolerant, on the other hand the language used by the reporters hints
that these relationships are not consensual and even if they are, there
is always an undertone of coercion. Indeed, while Tim Reid notes that
there seems to be no “shame” or “furtiveness” about their conduct, and
others are baffled by the forwardness with which marines are being
propositioned, he also says that these young boys are “marked for life”.
The contradiction and paradoxes are rife; Reid’s piece is titled
“Kandahar comes out of the Closet” although Michael Griffins, also of The Times avers:
“in Pashtun society, man‐woman love was the one that dared not speak
its name: boy courtesans conducted their affairs openly.”
In another instance, faced with estimates
from her informants that “between 18% and 45% of men [in Kandahar]
engage in homosexual sex,” an LA Times reporter Maura Reynolds observed dryly
that this is “significantly higher than the 3% to 7% of American men
who, according to studies identify themselves as homosexual”. Indeed
this “excess” homosexuality makes Afghans suspect and much more likely
to be called queer “paedophiles” and “sodomizers” as opposed to gay men
or homosexuals. It is telling that the term “bisexual” is not once used
to describe these men who often have wives and themselves admit that
they like both men and women. As Reynolds’ local contact, Daud himself
tells her: “I like men but I like girls better”.
In the final analysis, the (western)
assumption that homosexuality is a “minority identity” and therefore
must be connected with secrecy is challenged in the Afghan context. The
openness and lack of secrecy surrounding same sex relationships in
Afghanistan is what confounds most Western observers. Yet again, it is
the desire to make sense of, to make legible, these foreign practices
that leads to a series of stereotypes and contradictions. That Afghan
men may have polymorphous sexual desires or engage in polyamorous
relationships is a possibility that lies beyond the purview of the
average Anglophone reporter. The messy complexities of a repressive
society with its members participating in fluid sexual relationships are
too great to comprehend – they are written off as unnatural aberrations
in a culture characterized by (in the words of one reporter)
“gynaeophobia”.
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
MAURICE DUVERGER
Morreu no passado dia 16 (ou 17) deste mês, com 97 anos, o famoso jurista, político, sucessivamente professor das Faculdades de Direito de Poitiers, de Bordéus e da Sorbonne e grande constitucionalista francês, Maurice Duverger.
Militante da extrema direita desde os 15 anos (do Partido Popular Francês, de Doriot),apoiou o marechal Pétain e o Regime de Vichy mas veio a juntar-se à Resistência e a posições mais próximas da esquerda. Aliás, de 1989 a 1994, foi deputado ao Parlamento Europeu, eleito como independente na lista do Partido Comunista Italiano.
Deve-se a Maurice Duverger, autor de numerosas obras, muitas das quais traduzidas em português ou em brasileiro, o famoso ensaio, tornado clássico, Les Partis politiques (1951), onde elabora sobre o escrutínio proporcional e o escrutínio maioritário. Foi também o criador do conceito de regime semi-presidencialista, uma terceira categoria agrupando características dos regimes presidencialistas e parlamentares.
Maurice Duverger teve uma grande audição em Portugal no pós-Revolução de Abril, e na elaboração da Constituição Política da República Portuguesa de 1976. A sua voz foi então escutada, como uma espécie de oráculo, por políticos de todos os quadrantes da nossa sociedade.
AS JÓIAS DA ÍNDIA
Foi inaugurada há algumas semanas no Museu do Oriente, e estará patente ao público até ao próximo dia 26 de Abril, a exposição "Jóias da Carreira da Índia", onde se poderão observar dezenas de peças de ouro e prata delicadamente trabalhadas e enriquecidas com preciosas gemas e esmaltes de cores vibrantes.
A reunião destas preciosidades, pertencentes em grande parte a coleccionadores particulares e oriundas de mundos diferentes e longínquos como a Índia, a China e o Sudoeste Asiático, permite um novo olhar sobre os riquíssimos objectos resultantes dos contactos e da confluência artística daquelas regiões, percorridas por nobres, missionários e comerciantes portugueses.
A grande aventura do Oriente não se limitou, pois, à pimenta de Cochim, à canela de Ceilão ou ao cravinho das Molucas. Foram as pedras preciosas que cativaram, desde logo, os primeiros aventureiros que desembarcaram das naus da Carreira da Índia.
domingo, 21 de dezembro de 2014
RONALDO E A ESTÁTUA
Foi hoje inaugurada no Funchal uma estátua de Cristiano Ronaldo, em cerimónia a que estiveram presentes as autoridades regionais da Madeira.
No acto do descerramento, o jogador afirmou que a estátua «está mais bonita do que eu». Sem prejuízo da conhecida vaidade do futebolista, pode dizer-se, creio, que não tem razão. Ele ainda é mais bonito, apesar de começar a perder a frescura juvenil que nos habituámos a identificar no seu rosto.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
ONDE ESTÁ JORGE SAMPAIO?
Confesso que estou preocupado. Não se encontrando Jorge Sampaio ausente do país, que conste, só posso admitir a sua não visita a José Sócrates pelo facto de se encontrar gravemente doente.
É que, estando José Sócrates detido preventivamente no Estabelecimento Prisional de Évora (EPE) há cerca de um mês, e tendo recebido entretanto a vista de numerosas figuras públicas, nomeadamente do Partido Socialista, mas não só, o silêncio ensurdecedor de Jorge Sampaio só pode dever-se, penso eu, a impedimentos inultrapassáveis.
Recordo que Sócrates foi prontamente visitado por Mário Soares, fundador e primeiro secretário-geral do PS, antigo presidente da República e primeiro-ministro de Portugal; foi igualmente visitado por António Guterres, que também foi secretário-geral do PS e primeiro-ministro e é actual alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados; por Almeida Santos, que foi presidente nacional do PS; por Ferro Rodrigues, que foi secretário-geral do PS; e por outras figuras do primeiro plano do Partido Socialista.
Assim, não se compreende que Sampaio, que também foi secretário-geral do PS e presidente da República e em cujo mandato Sócrates foi primeiro-ministro, não se tenha deslocando ainda ao EPE, salvo, como referi acima, exclusivamente por motivos de força maior.
Que se saiba, José Sócrates não foi condenado nem sequer acusado de qualquer crime, existindo apenas indícios, segundo o Ministério Público, que poderão, ou não, constituí-lo como arguido.
Mesmo admitindo que Sócrates tivesse sido acusado formalmente de crimes, ou mesmo por eles condenado a prisão efectiva, nada impediria os seus camaradas e amigos de o visitarem na sua cela, pois, como sempre ouvi dizer, é nos hospitais e nas prisões que se conhecem os amigos.
Assim, aguardo também que António Costa, actual secretário-geral do PS e que foi ministro de Sócrates o visite (ele já o prometeu) o mais rapidamente possível; como seria desejável que outras figuras que exerceram funções de secretário-geral do PS, como, por exemplo, Vítor Constâncio, actual vice-governador do Banco Central Europeu, e cuja acção à frente do Banco de Portugal Sócrates sempre defendeu, pudesse deslocar-se de Frankfurt a Évora. Por razões compreensíveis, não me admira a atitude de António José Seguro, o penúltimo secretário-geral, mas não lhe ficaria mal uma visita.
E também estranho a ausência de figuras públicas de outros quadrantes, como é o caso de Pedro Santana Lopes, que foi longamente parceiro de José Sócrates num programa de televisão e seu antecessor como primeiro-ministro de Portugal.
E mais não me alongo em ausências estranhas.
Não faço a mínima ideia se José Sócrates é inocente ou culpado dos actos que lhe são diariamente imputados na comunicação social, designadamente em certos pasquins cujo nome, por uma questão higiénica, me abstenho de citar.
Mas, se mesmo os criminosos indubitáveis não devessem receber visitas, seria então inexplicável o acesso quotidiano de milhares de visitantes às cadeias de Portugal.
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
PENSAR COMO UM NAZI
Pela sua importância, transcrevemos o artigo que o eminente historiador e arabista e professor do Collège de France, Henry Laurens, escreveu no nº 102, de Dezembro corrente, no Suplemento Literário do jornal "L'Orient - Le Jour", a propósito do recente livro La loi du sang: Penser et agir en nazi, do historiador e professor da Sorbonne, Johann Chapoutot:
Penser comme un nazi
Comment s'explique la radicalisation qu’engendrent la guerre,
l’extermination des juifs et la mise en esclavage des peuples slaves ?
Johann Chapoutot entame une utile déconstruction de l'univers mental du
nazisme.
Johann Chapoutot est un historien reconnu du nazisme. Il nous livre ici
une effrayante description de l’univers mental du nazisme et des
terribles conséquences qui en découlent. Le point essentiel est de
prendre au sérieux le nazisme comme idéologie et à partir de là de sa
capacité de transformer les paroles en actes. Il en résulte que le
nazisme n’est pas seulement le produit de littérateurs de troisième
catégorie mais qu’il a aussi enrégimenter une bonne partie des
professions académiques, en particulier les juristes qui ont construit
un droit à partir de ce qui pourrait apparaître comme la négation du
droit. La dangerosité du nazisme réside dans la production de normes
immédiatement appliquées.
Bien sûr cette vision du monde n’est pas apparue du néant. Elle se
présente comme une radicalisation effective d’un certain nombre de
courants de pensée hérités du XIXe siècle qui pouvaient être considérés
éventuellement comme des excentricités ou en tout cas des opinions. Il
en est ainsi de l’apologie des identités ethniques de plus en plus
définies en termes raciaux, du rejet de la tradition judéo-chrétienne
(ce sont les adversaires du christianisme qui ont inventé ce terme tout à
fait discutable par ailleurs), de la définition de la lutte pour la vie
dans la perspective sociale darwinienne comme moteur de l’histoire, de
l’application du colonialisme et de l’eugénisme, etc. Bien sûr, on doit
aussi comprendre la culture de guerre engendrée par la Grande Guerre
comme facteur aggravant.
On doit bien admettre que le nazisme est une révolution culturelle qui
conduit à considérer des abominations comme des actes légaux d’où le
fait que les accusés des procès d’après-guerre comme ceux de Nuremberg
ou celui d’Eichmann se considèrent comme non-coupables parce qu’ils sont
convaincus d’avoir bien agi.
Le nazisme part en quelque sorte d’un temps immédiatement antérieur à
l’histoire où la race germanique ou nordique constituait un tout
biologique où le sentiment religieux foncièrement animiste perçoit et
révère le divin partout où se manifeste la vie. Cet immanentisme a été
ruiné par la transcendance du judéo-christianisme qui accouche d’un
matérialisme froid et brutal. Le nazisme est un naturalisme qui rejette
toute place privilégiée à l’individu (d’où le rejet du libéralisme) au
profit de la substance biologique qui est la race. La séparation du
corps et de l’esprit est une absurdité de même que toutes les
abstractions charriées par le judéo-christianisme.
La race germanique est la seule morale et ce qui est fait pour son bien
est bien. L’anti-naturalisme du judéo-christianisme doit être extirpé
pour que l’on puisse retrouver la pureté originelle du divin identifié à
la nature. L’universalisme est l’ennemi parce qu’il est contre la
nature. La prise du pouvoir en 1933 est une véritable révolution qui
vise à rétablir la nature dans ses droits. On rejette les dix
commandements et la devise républicaine française.
Il en est ainsi du droit : « Si la seule humanité qui soit et qui vaille
est l’humanité nordique, tout ce qui contribue à l’améliorer et à la
protéger peut revendiquer cette qualité. L’inhumain ou immoral n’est pas
ce que l’on croit : est immoral le contraire d’une action virile et
résolue, le laxisme reproductif, la négligence anti-eugénique qui
méconnaît et viole les lois de la nature. »
Ce qui est moral c’est ce qui bénéficie à la préservation raciale du
peuple allemand. On stérilise puis on élimine les handicapés mentaux et
avec les lois de Nuremberg on préserve la pureté de la race. Or il n’y a
pas de séparation entre nature et culture, les deux domaines sont régis
par la lutte pour la vie donc par la nécessité d’éliminer les ennemis
parce qu’ils constituent des dangers mortels. Le droit pénal est un
instrument de la guerre pour sauver la race.
On en arrive ainsi avec la radicalisation qu’engendre la guerre à
l’extermination des juifs et à la mise en esclavage des peuples slaves.
Le but ultime est la suppression du christianisme au moins dans le
peuple germanique et à la constitution d’un « espace vital » où le mot
vital est une référence vraiment biologique. On peut ainsi tuer
froidement, professionnellement des femmes et des enfants avec la
conscience du devoir accompli.
Les textes nazis montrent bien que ces programmes se sont heurtés à de
multiples résistances venues des anciens temps : il faut attendre que se
lèvent les blés nouveaux des générations qui n’auront connu que le
national-socialisme et ses enseignements. Ces générations seront
composées d’hommes non pas nouveaux, mais régénérés, retrempés dans
l’êthos de leur sang, familiarisés dès leur plus jeune âge, avec les
valeurs de leur race. De plus, l’intention éradicatrice et
exterminatrice du nazisme n’a pu se concrétiser que dans le contexte de
radicalisation accélérée qui suit la guerre mondiale (après tout, avant
1939 le nazisme n’a tué que quelques milliers d’individus, rien à voir
avec les millions de victimes du stalinisme déjà enregistrées à cette
époque). Quant à Hitler, il s’est montré logique avec lui-même en
considérant que la défaite de l’Allemagne est celle d’un peuple plus
faible que celui de l’Est à qui appartient l’avenir.
Ce livre, qu’il faut lire, doit inspirer aux lecteurs de sombres
réflexions sur la relation entre les idées et les normes qu’elles
produisent, aux dangers que peut véhiculer des pensées purement
naturalistes et biologiques. Après tout, beaucoup de nazis dont Hitler
lui-même étaient végétariens et rejetaient les violences faites aux
animaux… Mais il est vrai aussi que pour eux les chiens étaient plutôt
aryens et les chats orientaux, voire juifs…
domingo, 14 de dezembro de 2014
TESOUROS DE ESPANHA EM LISBOA
Foi inaugurada no passado dia 22 de Outubro e estará patente ao público até ao próximo dia 25 de Janeiro, na Fundação Calouste Gulbenkian, a exposição "A História Partilhada: Tesouros dos Palácios Reais de Espanha".
Trata-se de uma mostra de particular interesse e constitui uma oportunidade rara para muitos portugueses poderem apreciar algumas das obras mais notáveis das Colecções Reais espanholas, não se incluindo naturalmente neste conjunto, por exemplo, as pinturas que pertencem aos museus nacionais, designadamente ao Museu do Prado (salvo excepções de telas depositadas), e que são dos exemplares máximos da arte universal.
De qualquer forma, das cento e cinquenta e quatro mil obras de arte vinculadas à Casa Real, a exposição apresenta cento e quarenta e uma obras de arte que compõem uma mostra variada da qualidade e importância histórica da maior parte das colecções do Património Nacional espanhol, incluindo livros, pinturas, armaduras, ourivesaria, esculturas, têxteis, mobiliário e desenhos.
As peças apresentadas pertencem ao Monasterio de Las Descalzas Reales, de Madrid, ao Palacio Real de Madrid, aos Palacios Reales de El Pardo (Madrid), de La Granja de San Ildefonso (Segóvia) e de Aranjuez (Madrid), aos Palacetes de La Moncloa (Madrid) e de La Zarzuela (Madrid), aos Reales Monasterios de La Encarnación (Madrid), de San Lorenzo de El Escorial (Madrid) e de Santa Isabel (Madrid), aos Reales Alcázares, de Sevilha, à Colecção Masaveu, ao Fondo Cultural Villar Mir, de Madrid, ao Museo Arqueológico Nacional, de Madrid, ao Museo Nacional del Prado, de Madrid e ainda ao Museu Nacional de Arte Antiga, de Lisboa, além de alguns coleccionadores particulares que pretenderam reservar o anonimato.
O título da exposição, "A História Partilhada" - dá enfâse, através dos objectos seleccionados - às relações entre as Coroas de Espanha e de Portugal desde os fins da Idade Média até ao final da Idade Moderna. Cronologicamente, a exposição percorre o tempo decorrido desde o reinado dos Reis Católicos, Fernando e Isabel, até ao reinado de Fernando VII, quando por iniciativa de sua mulher, D. Isabel de Bragança, foi criado o Museu Nacional do Prado.
Na impossibilidade de aqui referir a totalidade das peças ora apresentadas, mencionaremos algumas que particularmente suscitaram a nossa admiração:
Isabel, a Católica (Artista desconhecido) - Palacio Real de El Pardo |
Cantigas de Santa Maria (Compilação de Afonso X, o Sábio) - Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
Palácio Real de El Pardo (Atribuído a Félix Castello) - Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
Palácio Real de Madrid, visto a partir do Rio Manzanares (Antonio Joli) - Fondo Cultural Villar Mir |
Carlos Quinto (Juan Pantoja de la Cruz) - Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
Armadura de aparato de Filipe II (Antón Peffenhauser) - Palacio Real de Madrid |
Queda a Caminho do Calvário (Bernard van Orley/Pieter de Pannemaker) - Palacio Real de La Granja, Segóvia |
D. Catarina de Áustria (Alonso Sánchez-Coello) - Monasterio de Las Descalzas Reales, Madrid |
D. Isabel de Portugal (Segundo Joos van Cleve) - Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa |
Filipe II (Oficina de Juan Pantoja de La Cruz) - Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
Real Mosteiro de São Lourenço do Escorial (Artista desconhecido) - Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
Relicário "Catedral de Milão" (Artista desconhecido) - Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
São Jerónimo Penitente (Ticiano) - Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
Enterro de Cristo (Tintoretto) -Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
A Adoração do Nome de Jesus (El Greco) _ Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
Santa Isabel de Portugal (Manuel Pereira) - Monasterio de Las Descalzas Reales, Madrid |
Imperatriz Maria de Áustria (Juan Pantoja de La Cruz) - Monasterio de Las Descalzas Reales, Madrid |
D, Joana de Áustria (Alonso Sánchez Coello) - Monasterio de Las Descalzas Reales, Madrid |
D. Sebastião de Portugal (Cristóvão de Morais) - Monasterio de Las Descalzas Reales, Madrid |
Arquiduquesa Isabel Clara Eugénia (Frans Pourbus, o Jovem) - Monasterio de Las Descalzas Reales, Madrid |
Salomé com a Cabeça de São João Baptista (Caravaggio) - Palacio Real de Madrid |
Filipe IV (Oficina de Rubens) - Palacio Real de Madrid |
A Morte de Jacinto (Jan Cossiers, segundo composição de Rubens) - Palacio Real de Madrid |
Cavalo Branco (Velázquez) - Palacio Real de Madrid |
São Fernando a Adorar a Imaculada Conceição (Luca Giordano) - Monasterio de San Lorenzo de El Escorial |
Filipe V (Hyacinthe Rigaud) - Palacio Real de Aranjuez |
A Família de Filipe V (Jean Ranc) - Museo Nacional del Prado |
D. Mariana Vitória de Bourbon (Nicolas de Largillierre) - Museo Nacional del Prado |
Fernando VI (Louis-Michel Van Loo) - Palacio Real de Madrid |
Carlos III (Anton Raphael Mengs) - Palacio Real de Madrid |
A Tarde ou Héspero (Anton Raphael Mengs) - Palacio Real de Aranjuez |
Carlos IV (Mariano Salvador Maella) - Real Monasterio de La Encarnación, Madrid |
D. Carlota Joaquina em Criança (Mariano Salvador Maella) - Palacio de La Moncloa, Madrid |
Fábrica de Pólvora (Goya) - Palacio de La Zarzuela, Madrid |
Fábrica de Balas (Goya) - Palacio de La Zarzuela, Madrid |
Caridade de Santa Isabel de Portugal (Goya) - Palacio Real de Madrid |
Alegoria da Doação do Casino à Rainha D. Isabel de Bragança pela Câmara de Madrid (Vicente López Portaña) - Colección Masaveu |
D. Maria Isabel de Bragança, Rainha de Espanha, como Fundadora do Museu do Prado (Bernardo López Piquer) - Colecção Particular, Madrid |
Vista do Museu Real de Pintura (Fernando Brambilla) - Reales Alcázares, Sevilha |
Fernando VII (Vicente López Portaña) - Palacio Real de Aranjuez |
Notável o Catálogo da Exposição, com o riquíssimo acervo de informação que habitualmente caracteriza os catálogos das exposições da Fundação Gulbenkian, e que muito oportunamente inclui - além de uma pormenorizada Cronologia da época em apreço e de uma extensa bibliografia - uma separata com a Genealogia simplificada das figuras reais das Casas de Espanha e de Portugal, com ligações familiares entre si.
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