terça-feira, 18 de novembro de 2014

OS VISTOS DOURADOS





O recentíssimo escândalo que envolve a atribuição de "vistos dourados", ou mais precisamente a presumível ocorrência de situações de corrupção na concessão desses vistos, ofusca um problema muito mais delicado e que o ruído da comunicação social impede de analisar convenientemente.

Se, naturalmente, toda a corrupção deve ser castigada, o que importa verdadeiramente discutir, aqui e agora, mais ainda do que as oportunidades que tal procedimento faculta a eventuais lavagens de dinheiro e branqueamento de capitais, é a própria existência dos referidos vistos.

Trata-se de uma questão de princípio, e de princípios, coisa hoje infelizmente tão arredada do espírito dos nossos governantes.

É certo que a concessão destes vistos milionários não é exclusiva de Portugal. Vários outros países europeus criaram este mecanismo expedito de arrecadar fundos, com despiciendos resultados no desenvolvimento das nações mas bastante atractivo para operações de carácter eventualmente menos lícito.

O que realmente se afigura obsceno é a possibilidade de mercadejar a instalação num país, e quiçá mesmo a obtenção de uma nacionalidade, a troco não direi de trinta dinheiros (embora a simbologia permaneça) mas de astronómicas quantias que um cidadão normal jamais auferirá em toda a sua vida.

Sabemos todos que a concessão de vistos "normais" é objecto do mais rigoroso escrutínio e implica a ultrapassagem dos mais inusitados obstáculos e o preenchimento das mais inconcebíveis  formalidades quando os requerentes são de modesta condição e mais não aspiram do que a trabalhar honestamente num país de acolhimento, tantos deles que são fugidos de guerras e guerrilhas para as quais nada contribuíram e pelas quais é grande a responsabilidade do mundo ocidental.

As hordas de imigrantes ilegais que atravessam o Mediterrâneo, com o risco da própria vida, em busca de uma existência melhor e, principalmente, mais segura, são rechaçadas e devolvidas, sempre que identificadas, aos países de origem.

O Velho Continente, apesar da procela que o assola, é considerado ainda por muitos (por aqueles que fogem do Médio Oriente, do Norte de África, da África Sub-Sahariana, da Ásia) o único destino que julgam capaz de os abrigar da miséria, da fome, da violência, da morte.

Há tempos, o Papa Francisco deslocou-se a Lampedusa, porto tradicional de chegada de milhares de clandestinos, pelo menos daqueles que não sucumbem nas águas revoltas do Mare Nostrum, e, num grito de alma, apelou aos líderes ocidentais para providenciarem ao acolhimento de tão infelizes criaturas. Foi, então, politicamente muito aplaudido mas o resultado desta sua inédita diligência foi nenhum.

Argumenta-se que não é possível receber mais imigrantes em período de crise sistémica tão aguda como aquela que atravessamos. Mas devemos olhar não só para o presente mas para o passado e para o futuro.

Registei aqui a declaração de Umberto Eco, em 23 de Janeiro de 1997, num convénio organizado pelo município de Valência sobre as perspectivas do terceiro milénio: «Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com o chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem "colorido". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma.»

Registei também aqui a necessidade evocada pelo Papa de "chorar os mortos" que ninguém chora. Mas para além de chorar os mortos há também que cuidar dos vivos. Toda ou pelo menos muita desta gente poderia ingressar ordeiramente na Europa através de um sistema de vistos racional que permitisse utilizar o seu trabalho no desenvolvimento dos países a que se dirigem. Exactamente o contrário daquilo que se obtêm com os golden visa, que mais não são do que um processo discriminatório e, realmente, no limite, de casos de "imigração ilegal".

A permissão de entrada aos multimilionários, cuja fortuna terá muitas vezes as mais duvidosas origens, e a negação dessa entrada a quem mais não pretende que o direito ao trabalho é um atentado aos princípios éticos sistematicamente proclamados pela União Europeia.

A concessão de vistos dourados é, sem dúvida, um dos sintomas da profunda decadência moral da Europa.


1 comentário:

Anónimo disse...

Sem dúvida que estes vistos devem ser abolidos o mais rapidamente possível, se não em toda a Europa que os concede pelo menos em Portugal.