O recentíssimo
escândalo que envolve a atribuição de "vistos dourados", ou mais
precisamente a presumível ocorrência de situações de corrupção na concessão desses
vistos, ofusca um problema muito mais delicado e que o ruído da comunicação
social impede de analisar convenientemente.
Se, naturalmente,
toda a corrupção deve ser castigada, o que importa verdadeiramente discutir,
aqui e agora, mais ainda do que as oportunidades que tal procedimento faculta a
eventuais lavagens de dinheiro e branqueamento de capitais, é a própria existência
dos referidos vistos.
Trata-se de uma
questão de princípio, e de princípios, coisa hoje infelizmente tão arredada do espírito
dos nossos governantes.
É certo que a
concessão destes vistos milionários não é exclusiva de Portugal. Vários outros
países europeus criaram este mecanismo expedito de arrecadar fundos, com despiciendos
resultados no desenvolvimento das nações mas bastante atractivo para operações
de carácter eventualmente menos lícito.
O que realmente se
afigura obsceno é a possibilidade de mercadejar a instalação num país, e quiçá
mesmo a obtenção de uma nacionalidade, a troco não direi de trinta dinheiros (embora
a simbologia permaneça) mas de astronómicas quantias que um cidadão normal
jamais auferirá em toda a sua vida.
Sabemos todos que a
concessão de vistos "normais" é objecto do mais rigoroso escrutínio e
implica a ultrapassagem dos mais inusitados obstáculos e o preenchimento das
mais inconcebíveis formalidades quando
os requerentes são de modesta condição e mais não aspiram do que a trabalhar
honestamente num país de acolhimento, tantos deles que são fugidos de guerras e
guerrilhas para as quais nada contribuíram e pelas quais é grande a
responsabilidade do mundo ocidental.
As hordas de
imigrantes ilegais que atravessam o Mediterrâneo, com o risco da própria vida,
em busca de uma existência melhor e, principalmente, mais segura, são
rechaçadas e devolvidas, sempre que identificadas, aos países de origem.
O Velho Continente,
apesar da procela que o assola, é considerado ainda por muitos (por aqueles que
fogem do Médio Oriente, do Norte de África, da África Sub-Sahariana, da Ásia) o
único destino que julgam capaz de os abrigar da miséria, da fome, da violência,
da morte.
Há tempos, o Papa
Francisco deslocou-se a Lampedusa, porto tradicional de chegada de milhares de
clandestinos, pelo menos daqueles que não sucumbem nas águas revoltas do Mare Nostrum, e, num grito de alma,
apelou aos líderes ocidentais para providenciarem ao acolhimento de tão
infelizes criaturas. Foi, então, politicamente muito aplaudido mas o resultado
desta sua inédita diligência foi nenhum.
Argumenta-se que não
é possível receber mais imigrantes em período de crise sistémica tão aguda como
aquela que atravessamos. Mas devemos olhar não só para o presente mas para o
passado e para o futuro.
Registei aqui a declaração
de Umberto Eco, em 23 de Janeiro de 1997, num convénio organizado pelo
município de Valência sobre as perspectivas do terceiro milénio: «Os fenómenos
que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário
casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra
mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os
políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com o chador
ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo
milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente
multirracial, ou se preferirem "colorido". Se lhes agradar, será
assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma.»
Registei também aqui
a necessidade evocada pelo Papa de "chorar os mortos" que ninguém
chora. Mas para além de chorar os mortos há também que cuidar dos vivos. Toda
ou pelo menos muita desta gente poderia ingressar ordeiramente na Europa
através de um sistema de vistos racional que permitisse utilizar o seu trabalho
no desenvolvimento dos países a que se dirigem. Exactamente o contrário daquilo
que se obtêm com os golden visa, que
mais não são do que um processo discriminatório e, realmente, no limite, de casos de
"imigração ilegal".
A permissão de
entrada aos multimilionários, cuja fortuna terá muitas vezes as mais duvidosas
origens, e a negação dessa entrada a quem mais não pretende que o direito ao
trabalho é um atentado aos princípios éticos sistematicamente proclamados pela
União Europeia.
A concessão de
vistos dourados é, sem dúvida, um dos sintomas da profunda decadência moral da
Europa.
1 comentário:
Sem dúvida que estes vistos devem ser abolidos o mais rapidamente possível, se não em toda a Europa que os concede pelo menos em Portugal.
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