Enquanto se aguarda um ataque americano (e de mais alguns satélites) à Síria, transcrevemos o post do Prof. Raul Braga Pires no seu blogue Maghreb/Machrek:
«Como não tenho muito tempo, lembrei-me do Ahmed Reda Benchemsi
e do mote do seu blogue "2, 3 trucs que je tiens à dire sur 4, 5 sujets".
É desta forma condensada, que tentarei abordar o regresso da Síria às
capas e às aberturas dos telejornais, em substituição do Egipto. Para
este, quando se quiser que volte a destaque, certamente que se começará
pela destruição de parte de um qualquer monumento de dimensões faraónicas, já que a morte de pessoas é uma cena que já não nos assiste!
ATAQUE QUIMICO
Já não há dúvidas. Houve mesmo. Mas nós também já
sabiamos, basta ver as pessoas a espumar pela boca e outras com os
braços firmes e hírtos, suspensos e sem os conseguirem recolher no
sentido do corpo. A dúvida é sobre quem efectuou o ataque.
É possível que estejamos perante mais um daqueles gigantescos embustes, já que não seria racional o regime efectuar este tipo de ataque, muito menos após a chegada de 20 inspectores das Nações Unidas,
precisamente para investigarem o uso anterior do mesmo tipo de
armamento. Ora, precisamente, quando ele foi usado anteriormente pelo
regime (também o foi pelos "rebeldes") e numa escala muito inferior, o
que se passou é que Bashar Al-Assad estava a tentar perceber quais eram os limites que a chamada Comunidade Internacional lhe impunha.
Isto, após já ter abatido em Junho do ano passado, um caça bombardeiro
turco e das suas tropas terem disparado, em ocasiões distintas, para o
interior de campos de refugiados sitos no lado turco da fronteira. A
Turquia é um Estado NATO e a não invocação do artigo 5º do Tratado de
Washington* após estas escaramuças, significou para Damasco que os
"Aliados" não estavam na disposição de intervir na Síria, o que lhe deu
carta branca para chegarmos até aqui. Claro que os sucessivos vetos dos russos e do chineses no Conselho de Segurança, também foram fundamentais. O pacote é vasto.
Logo, o factor racionalidade está colocado de lado, embora se possa sempre considerar que um qualquer General descontente, contrariado, comprado, cansado
(certamente que haverá muita gente que há 2 anos e meio que não dorme 1
única noite tranquila), tenha dado a ordem para o ataque!
Há, uma vez mais uma guerra de números. Fala-se em 1500 mortos na media, mas as listas na posse das "oposições" não chegam a ter 500 nomes! As armas quimicas utilizadas no ataque eram artesanais! Há videos e fotos do ataque, colocadas na internet, antes mesmo deste ter acontecido! (Aceder AQUI
a entrevista com Haytham Manna, do Comité Nacional para a Mudança Democrática).
É claro que do lado oposto se diz exactamente o
contrário e até há provas de telefonemas interceptados que ligam o
regime sírio ao ataque (ver AQUI
). Mas não foi exactamente isso que nos disseram aquando da 2ª invasão do Iraque?
A POSIÇÃO AMERICANA
Os americanos já disseram que não consideram, com o
mais que certo ataque, uma mudança de regime, o que significa que não
vão atacar palácios, nem andar atrás de Al-Assad. Fala-se em 3 dias
de ataques a partir do mar e do ar, os quais poderão começar já amanhã,
quinta-feira e, ter como objectivo instalações militares, depósitos de
combustivel, de armas (excluindo as quimicas), numa resposta limitada de
1ª fase e talvez aeroportos, pistas de aviação, auto-estradas,
pontes e viadutos, etc, numa hipotética 2ª fase. No evoluir da situação
no terreno, este tipo de ataque não deverá alterar as dinâmicas
existêntes até agora, pelo que esta "contenção", é sobretudo um
reconhecimento de que o momento Snowden fez recuar as relações entre americanos e russos, para os melhores momentos da Guerra Fria.
Esta intervenção, a acontecer, também tem duas outras razões que ultrapassam em muito a dimensão quimica do ataque. Obama
começava a ser considerado uma anedota a todos os níveis, pois já tinha
traçado a utilização das armas quimicas como a "linha vermelha"
intransponivel, numa conferência de imprensa realizada na Casa Branca a
21 de Agosto do ano passado e, estas foram posteriormente utilizadas e
ainda nada tinha sido feito. Por outro lado, este "puxão de orelhas" a
Assad, também permite desviar as atenções do falhanço na gestão e na falta de posição americana durante os recentes acontecimentos no Egipto.
Reparem que Obama tem delegado as aparições e declarações públicas
sobre o assunto, sobretudo no seu Secretário de Estado, no
Vice-Presidente e até no seu Secretário para a Imprensa.
AS NAÇÕES UNIDAS
Se quanto ao ataque quimico já se definiu quem o
efectuou e quem se tem que castigar, o debate move-se agora no sentido
da legalidade na aplicação da pena e os Estados Unidos estão a
constituir com o Reino Unido, França e demais Estados NATO e Liga Árabe,
uma coligação de voluntários, a qual baseada no número, na
consensualidade e utilizando o argumento moral, não apresentará qualquer
tipo de moção no Conselho de Segurança, pois é mais que certo que
esbarraria de novo com os vetos russos e chineses, como já aconteceu por
duas vezes, salvo erro, nos últimos 2 anos.
A solução, baseada nos 3 argumentos apresentados, número alargado de Estados, consensualidade e sobretudo o argumento moral, visará invocar directamente o artigo 51º** da Carta das Nações Unidas,
o que não é a mesma coisa que obter um mandato claro do Conselho de
Segurança, o que já é o argumento invocado pela Russia e pelo Irão
(curiosamente a China tem mantido o silêncio), quanto à violação do
Direito Internacional que tal intervenção irá provocar.
Sejamos claros e objectivos, qualquer solução intervencionista, ou passiva, é péssima na questão síria e, por isso mesmo, este
ataque americano será mais uma reprimenda pública ao regime Assad, para
lavar a cara da Administração Obama, do que para inverter os pólos e
acelerar uma verdadeira mudança na Síria. O problema é exactamente esse, já que o que vier a seguir, não tem que ser obrigatóriamente melhor!
Por outro lado, não foi por justificações quimicas e
falsas, sabe-se hoje, que os americanos se atolaram no Iraque? Porque
razão iriam repetir o número? Se falta uma justificação racional para
o regime sírio ter efectuado este ataque, porque razão haveria
racionalidade por parte dos americanos em cometerem erros passados?
* Artigo 5º do Tratado do Atântico Norte, também chamado de Tratado de Washington, pois foi aí assinado a 04 de Abril de 1949.
As Partes concordam em que um ataque armado contra
uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um
ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se um tal ataque
armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima
defesa, individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51.° da Carta
das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim
atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as
restantes Partes, a acção que considerar necessária, inclusive o emprego
da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do
Atlântico Norte.
Qualquer ataque armado desta natureza e todas mais providências tomadas
em consequência desse ataque são imediatamente comunicados ao Conselho
de Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho de
Segurança tiver tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a
paz e a segurança internacionais.
** Artigo 51.° da Carta das Nações Unidas.
Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente
de legítima defesa individual ou colectiva, no caso de ocorrer um
ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de
Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e
da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no
exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas
imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum,
atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui
ao Conselho para levar a efeito, em qualquer momento, a acção que julgar
necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança
internacionais.»
Voltaremos ao assunto.
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