Foi recentemente publicada a tradução portuguesa de Mein Kampf - Histoire d'un livre, de Antoine Vitkine, escritor e jornalista francês que se tem debruçado sobre as teorias da conspiração (Les Nouveaux Imposteurs), ao que parece para denunciá-las, muito embora existam reservas sobre as verdadeiras intenções do autor.
Escreve Vitkine, e é verdade, que a prática política de Hitler estava já, toda, contida em Mein Kampf: a luta contra o judaísmo internacional, a luta contra o marxismo e a luta pela aquisição de um espaço vital. Ainda que, à época, as ideias do futuro Führer fossem diferentemente interpretadas consoante os leitores, o que então lhe valeu o apoio de um vasto público, de categorias potencialmente antagonistas. De facto, é diferente a leitura de Mein Kampf em 1925 ou depois do colapso da Alemanha, no fim da Segunda Guerra Mundial. Sem esquecer que, devido ao fracasso da República de Weimar, e face a uma dramática situação económica e social, o NSDAP, era um partido nacionalista mas também socialista (embora o socialismo fosse precocemente metido na gaveta), o que potenciava as maiores esperanças a uma classe trabalhadora sem trabalho, num país submetido às exigências financeiras dos Aliados, depois da catástrofe da Grande Guerra.
Refere igualmente o autor que o acolhimento que Mein Kampf recebeu de uma parte da população alemã, nomeadamente no que respeita ao anti-semitismo, se deveu ao facto da animosidade ancestral existente no mundo ocidental contra os judeus, um anti-semitismo clássico, enraizado na Europa, forjado ao longo dos séculos pelo cristianismo e pelos monarcas. Escreve Vitkine: «Mein Kampf n'est donc pas seulement le livre du IIIe Reich: c'est un bréviaire de la haine, issu de la face sombre de l'Occident.».
O autor fornece detalhados elementos quanto à génese de Mein Kampf, à sua recepção na Alemanha, antes, durante e depois de Hitler, à sua difusão na Europa, nos Estados Unidos, e por todo mundo, com especial ênfase no mundo árabe, por razões não difíceis de descortinar.
Salienta Vitkine que Hitler, curiosamente, se opôs à tradução do livro no estrangeiro, especialmente em França, devido às teses que nele sustentava. Enquanto na Alemanha do Führer Mein Kampf se tonou na "bíblia" do III Reich, no estrangeiro só foram autorizadas traduções especiais, e de acordo com os países que a solicitaram. Contudo, o livro, mais tarde ou mais cedo, acabou por ser traduzido em todas as línguas europeias, primeiro em edições truncadas e depois em edições integrais. Entretanto foram publicados vários excertos da obra, por vezes com comentários.
A história das edições de Mein Kampf e dos respectivos direitos de autor é apaixonante mas não cabe nos limites deste post. Refira-se apenas que o actual detentor dos direitos é o ministério das Finanças do Estado da Baviera e que está proibida na Alemanha a venda de qualquer edição posterior a 1945. Aguarda-se a reacção das autoridades germânicas quando, em 2015, segundo a legislação em vigor, o livro cair no domínio público. Também a Baviera, através das embaixadas alemãs, se opõe à venda do livro no estrangeiro (têm sido publicadas milhares de edições desde o fim da Guerra), mas as suas diligências nem sempre são coroadas de êxito; o livro foi retirado de venda na Rússia (1992), em Portugal (1998), na República Checa (2000), na Polónia (2005). A Suécia recusou-se e na Itália o livro circula livremente. Mesmo nos países que ordenaram a sua retirada ele continua a ser periodicamente editado e vendido. Na Índia, encontra-se por toda a parte, bem como nos Estados Unidos e em Inglaterra. De resto, é possível descarregá-lo na "net" na maior parte dos idiomas ou encomendá-lo via Amazon, onde constitui um dos títulos mais procurados. A sua presença é também bem visível na Ásia, na América Latina e em África.
Porém, é no mundo árabe, e em geral no mundo muçulmano, que Mein Kampf tem tido mais edições. Desde 1930, e por motivos óbvios, já que o nazismo e o nacionalismo árabe tinham inimigos comuns: a Inglaterra, a França, os judeus, a quem os ingleses haviam prometido um lar nacional na Palestina, e mais tarde, por arrastamento, os Estados Unidos da América. Mesmo hoje, se os Protocolos dos Sábios de Sião são o maior best-seller dos países árabes, Mein Kampf continua a ter as suas tiragens significativas de Argel ao Cairo, de Tunis a Teerão, de Trípoli a Damasco, de Beirute a Islamabad, de Bagdad a Djacarta.
O seu sucesso foi tão grande na Palestina que na sua edição de 13 de Março de 1939, o Times, de Londres, revelava que os maiores compradores fora da Alemanha eram os árabes vivendo naquele território.
Mas é na Turquia que a bíblia do nazismo, por razões que também se prendem com o nacionalismo turco, atingiu a maior difusão. O livro, Kavgam em turco, está à venda em todas as cidades turcas, das livrarias mais respeitáveis às bancadas de rua. Para lá das razões árabes, o crescente sentimento anti-americano que se vive no país justifica o interesse pela obra. De resto, como escreve o autor, a execração da América foi tão longe que em 2005 muitas lojas de Ankara começaram a afixar nas suas montras "Interdito aos americanos", dísticos que só foram retirados após um protesto formal da embaixada dos Estados Unidos. O que não impediu a imprensa turca de denunciar as origens judaicas do então embaixador americano Eric Edelman.
Adenda: Sem pretender estabelecer paralelismos, o sucesso editorial de Mein Kampf, especialmente a partir de 1930, em plena crise financeira mundial, numa Alemanha sem esperança, com uma inflação galopante e receosa dos bolcheviques, recorda-me o entusiasmo com que foi recebido entre nós, em 1974, o livro Portugal e o Futuro, de António de Spínola, num país a braços com uma interminável guerra colonial, bloqueado internacionalmente e sem perspectivas de futuro. Livros muito diferentes mas surgidos em épocas de grande inquietação. Devemos por isso recordar que os acontecimentos se repetem na História, como escreveu Hegel. Primeiro como tragédia e depois como farsa, como acrescentou Marx. Todavia, em períodos de grande angústia, a exemplo do se vive hoje no mundo, a repetição, ao contrário do pensamento do autor de O Capital, nem sempre é necessariamente uma farsa, às vezes a tragédia repete-se.