O Governo aprovou hoje a proposta de lei que permite o casamento de pessoas do mesmo sexo, incorrectamente chamado por muitos de casamento homossexual. Se é verdade que este instituto jurídico era reclamado especialmente por pessoas de orientação homossexual, nada impede que pessoas de orientação heterossexual ou bissexual ou até assexuadas possam utilizá-lo se lhes aprouver. Embora sejam certamente os homossexuais quem mais poderá aproveitar das novas disposições.
O diploma tem aprovação garantida na Assembleia da República já que não só o PS mas igualmente o PCP e o Bloco de Esquerda votarão a favor. Espera-se também que o presidente da República proceda à sua promulgação ou, no máximo, que o remeta ao Tribunal Constitucional. Não creio que o presidente utilize o direito de veto, pois tal atitude comprometeria a sua reeleição no caso de se apresentar novamente ao sufrágio dos eleitores. Porque se trata de uma matéria dita “fracturante”, um veto alienaria os votos da maioria do “povo de esquerda” e de muitos votantes de partidos da “direita” que, homossexuais ou não, entendem dever ser consagrada na nossa ordem jurídica uma disposição que já existe em muitos países da Europa.
Têm-se levantado vozes contra este tipo de casamento, invocando que ele constitui um atentado ao casamento tradicional e que contribuirá para a desintegração da família. E exige-se, no mínimo, um referendo. Penso que não. Em primeiro lugar porque não se referendam direitos das minorias, a menos que os que invocam essa razão admitam que os homossexuais são maioritários na sociedade portuguesa (se calhar, bem feitas as contas a todos os que escondem ou renegam a sua homossexualidade, talvez não se enganem, mas isso são outros contos). Em segundo lugar, porque a família tradicional está em lenta mas progressiva desagregação. E por uma razão simples mas a que raras vezes se alude, porque soa a politicamente incorrecta: a emancipação das mulheres. Durante séculos, ou milénios, a mulher desempenhou o “seu” papel na instituição casamento. Tal como o homem tinha também o “seu” papel. E era desta complementaridade que se alimentava o casamento. Estava a mulher relegada para segundo plano? Em alguns aspectos, sim, mas isso fazia parte das “regras do jogo”. E já nem recuo ao tempo conciliar, quando se discutiu se as mulheres tinham ou não alma. De facto, teoricamente, os direitos das mulheres eram limitados, embora elas se tenham distinguido muitas vezes ao longo da história. Mesmo muito antes da civilização ocidental. E se analisarmos o tempo dos nossos pais ou avós, e não é preciso ir mais longe, vemos como as mulheres, mesmo nos pequenos assuntos da vida quotidiana, exerceram por vezes uma indiscutível primazia. Mas chegou a hora das reivindicações e da igualdade de direitos. A mulher pretendeu a sua emancipação e adquirir todos os direitos do homem. E conseguiu-o, ou quase, pelo menos no Ocidente. Dizia um grande historiador francês – Georges Duby, se a memória não me falha – que a grande revolução do século XX não fora a revolução marxista mas a emancipação da mulher. Ao tornar-se “igual” ao homem, o antigo “chefe da família”, ao passar a ter um emprego fora do lar, ao deixar de cuidar da casa e dos filhos, a mulher adquiriu um novo estatuto, mas comprometeu irremediavelmente o “equilíbrio” que garantia a estabilidade da família. Passou a haver dois cônjuges em igualdade de deveres e direitos, quando antes os direitos e os deveres estavam, melhor ou pior, repartidos por ambos. O processo de globalização, que se estende rapidamente a todo o mundo, e que tende a uniformizar os comportamentos independentemente de latitudes ou longitudes, está a difundir esta realidade pelos quatro cantos do globo. Não é só a Ocidente que a família está em crise. Ela está também, embora de forma menos visível, no Mundo Islâmico, na África sub-sahariana, na Índia ou na China, ainda que assumindo contornos diferentes, já que aí a instituição casamento se rege por normas diferentes.
Mas voltemos aos casamentos “same-sex”. Nem sequer constituem uma novidade. Em 1994, o falecido professor John Boswell, da universidade de Yale, publicou um livro, Same-Sex Unions in Premodern Europe, em que refere as uniões de pessoas do mesmo sexo na Europa antiga e medieval e as cerimónias em que essas uniões se formalizavam, por vezes com a bênção da Igreja. A obra de Boswell provocou, como não poderia deixar de ser, alguma controvérsia, mais quanto à forma de que quanto ao fundo, já que lhe censuravam certas traduções do latim e do grego relativas às cerimónias, que ele teria efectuado de maneira menos correcta. Boswell, que era católico, empenhara-se em demonstrar como a religião católica, em tempos idos, não condenava o relacionamento homossexual, e até o abençoava. Cita o autor numerosos exemplos, de que retemos o caso de um par de militares romanos, Sérgio e Baco, convertidos ao cristianismo no século III e por isso martirizados. Em sua honra foram construídas por todo o mundo muitas igrejas, incluindo Roma e Constantinopla, e ainda hoje se pode visitar em Maalula, na Síria, um dos últimos lugares onde se fala o aramaico, o Convento de São Sérgio e São Baco.
Escrevi o mês passado sobre os casamentos “same-sex”. Não penso que a sua introdução na nossa ordem jurídica constitua premente necessidade. Mormente quando se assiste ao disparar do número de divórcios dos casamentos tradicionais e quando a instituição família navega em mar de procela. Mas concedo que é um direito que assiste aos cidadãos confrontados com as profundas mutações da sociedade nos últimos anos. E se a consagração desse instituto contribuir para contrariar a homofobia que ainda se verifica nos nossos dias, então tudo bem.
4 comentários:
«uma disposição que já existe em muitos países da Europa.»
Em 5 países europeus (Holanda, Noruega, Suécia, Bélgica e agora a Espanha. O que não pode nunca ser descritoo como «muitos países da europa».
E exsite em mais 2 ou 3 fora da Europa, tendo sido recentemente revogado (há menos de 2 meses) em 2 estados dos EUA.
Não fica mal a precisão ao lado da erudição.
Sobre o não se referendarem direitos das minorias, seria preciso saber se existem tais direitos, nos termos em que são reivindicados.
É verdade que Boswell tem sido muito criticado pelas suas interpretações homófilas da vida religiosa no primeiro Cristianismo,mas tambem não se pode desmentir que a sua obra fundamental,"Christianity,Social Tolerance and Homosexuality",de 1980,que li na altura com surpresa e aprazimento,marcou uma viragem na visão tradicional dessa época,e talvez tenha contribuido para o "abrandamento" que se veio a verificar lentamente na óptica da Igreja nestas matérias. A obra mais recente que o autor do blogue cita,que não conheço,tem efectivamente sido criticada por algum desvio interpretativo,nomeadamente quanto à celebração de "uniões de irmandade",que podiam não ter a conotação actual. De qualquer modo,a primeira Igreja debatia-se quanto a esse problema com a presença de tradições de liberalismo sexual em cidades helenistico-romanas como Alexandria e Corinto e por outro lado o severo magistério de S.Paulo,por exemplo na Epístola aos Romanos e não só. Como noutros aspectos,como se sabe,Paulo triunfou.
Quanto ao caso de hoje,não concordo com os malefícios da emancipação feminina que o autor descreve,mas esse debate pode ficar para outra ocasião. Um dos seus comentadores do "contra",refere que a medida casamenteira foi anulada em dois estados americanos. Esqueceu-se de observar que foi há dois ou três dias aprovada pelas primeiras autoridades competentes para Washigton(D.C.) faltando só a aprovação do Congresso. Se for aprovada a esse nível terá uma repercussão óbvia. Esta notícia foi dada na imprensa internacional,mas cá não convinha. Pelo menos nada vi. Valha-nos SS.Sérgio e Baco...
Só ràpidamente para completar o meu post anterior :
1)Creio que a cidade helenistico-romana que mais problemas provocou nesse processo de adaptação ao Cristianismo Paulino foi Antioquia,então centro importante de reflexão filosófica e teológica.Até já se escreveram teses académicas sobre os conflitos teóricos e práticos pela relutância de algum clero. Uma dessa teses faz evidentemente parte do grande túmulo dos livros emprestados e /ou desaparecidos.
2)Faltou-me tambem aplaudir a última frase do post,chamando a atenção do principal mérito desta medida,que é a de ajudar a combater a homofobia ainda inegàvelmente dominante no paìs,pela "dignificação institucional" da Homossexualidade. É dos casos de escola em que a lei pode fazer avançar a Sociedade. Tambem parece que a nossa Igreja institucional não vai promover manifestções de rua nem programas histéricos,como os que o terrivel Rouco Vsrela semeou sem sucesso pela Espanha fora ,sobretudo em Madrid. Nalguma coisa estaremos melhor do que os vizinhos...
Enviar um comentário