terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

COURBET: AVISO POR CAUSA DA MORAL

Noticia a comunicação social que a PSP apreendeu alguns exemplares de um livro que ostentava na capa uma reprodução do célebre quadro "A Origem do Mundo", de Gustave Courbet, que se encontra exposto no Museu d'Orsay. Segundo fontes da Polícia, o acto resultaria da preocupação com a potencial agitação social, dado o local onde se encontrava a mostra de livros ser frequentado por crianças.

As crianças têm as costas largas e são pretexto para a cruzada fundamentalista que percorre o mundo globalizado. Nunca se define, exactamente, quem é uma criança, já que rapazes e raparigas de menor idade legal praticam, conscientemente, actos que muitos adultos, com experiência da vida, nem sequer imaginam. Portugal também não foge à regra e basta recordar o delírio da comunicação social nos primeiros tempos do processo Casa Pia (aliás, tendo na base motivos políticos, como afirmou publicamente na televisão o bastonário da Ordem dos Advogados António Marinho e Pinto) para confirmar a histeria (e oportunismo) com que os media, nomeadamente a televisão, trataram o assunto.

A matéria remete-nos para a difícil relação que as religiões monoteístas sempre mantiveram com o sexo. Lembremo-nos das declarações dos últimos dias, proferidas nas "novas conferências do Casino" pelo cardeal José Policarpo (alertando para o perigo dos casamentos de raparigas católicas com rapazes muçulmanos) ou pelo cardeal Saraiva Martins (considerando a homossexualidade uma anormalidade), sendo que as afirmações deste último, para além da irracionalidade da doutrina que defende, são uma tontice na sua formulação, o que leva a interrogarmo-nos como uma figura tão néscia tenha chegado á condição de eminente purpurado.

A cruzada fundamentalista não é um exclusivo da religião cristã (nas suas vertentes católica, protestante ou ortodoxa). Também o islão e o judaísmo perseguem objectivos idênticos e acabam, em muitos casos, por se tornarem aliados conjunturais. Por exemplo, os trabalhadores egípcios que passam alguns anos nos países do Golfo, ficando imbuídos da rígida doutrina wahhbita, quando regressam à pátria proíbem muitas vezes os filhos de falar com os seus compatriotas coptas, para não estabelecerem contactos com "infiéis" (cf. John R. Bradley, Inside Egypt, 2008) . Também os cristãos evangélicos americanos, nomeadamente as seitas born-again, a que pertence o homúnculo G. W. Bush, estão empenhadas no combate ao vício (leia-se, ao sexo) e na defesa da virtude (leia-se da hipocrisia do puritanismo), e para estenderem o Reino dos Céus apoiam, por exemplo, os israelitas no seu extermínio dos palestinianos, pois, segundo dizem, quando toda a Terra Santa se converter ao judaísmo, os judeus converter-se-ão ao cristianismo, e voltará o Messias, no fim dos tempos.

Não está, assim, a Terceira República imune às tentações censórias, como não estivera a Primeira República que, em 1923, proibiu a representação, por imoralidade, da peça Mar Alto, de António Ferro, o que motivou um veemente protesto subscrito por dezenas de intelectuais, entre os quais Fernando Pessoa, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, António Sérgio e Raul Proença.

Ainda em 1923, Fernando Pessoa publicara o Aviso por Causa da Moral, em defesa de António Botto e contra a cruzada moralista dos estudantes de Lisboa. E, em 1966, o Estado Novo apreenderia a obra Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia.

Vemos, agora, em plena democracia, que não só os escritos mas também as artes plásticas são objecto de uma tal tentação, recordando a época em que os papas mandavam tapar com parras os sexos generosos das estátuas do Vaticano ou cobri-los nas pinturas de Miguel Ângelo na Capela Sixtina.

Deseja-se, portanto, que haja bom senso e bom gosto, que cessem os atentados contra a arte, plástica ou poética, e que não se confunda o erotismo com a pornografia.

Valete, fratres.

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