Só agora tive oportunidade de ler José Maria, A Vida Privada de um Grande Escritor, de José Calvet de Magalhães, que comprei em 1994, data em que foi publicado. Após este livro sobre Eça de Queiroz, Calvet de Magalhães escreveria também um livro sobre Almeida Garrett, em 1996, e outro sobre Antero de Quental, em 1998.
Pelo título, pode pressupor-se que se trata de um livro relatando os aspectos mais íntimos da vida do grande romancista, mas não é o caso. Esta obra é na verdade uma biografia do escritor, embora em moldes diferentes das anteriormente, ou posteriormente, publicadas. O embaixador Calvet de Magalhães não segue os critérios usuais no estabelecimento de uma biografia, antes procede à descrição dos factos que se lhe afiguraram de maior importância na vida de Eça de Queiroz, quer no plano pessoal, quer no diplomático, quer como romancista.
Para minha admiração, e considerando que o embaixador Calvet de Magalhães foi um distinto diplomata, com vasto curriculum e autor de numerosas obras, este livro não se encontra particularmente bem escrito. É por vezes complexo na ordenação dos assuntos, confuso na designação das personagens, e servido por uma prosa banal a que não faltam erros de ortografia como, por exemplo, a utilização repetida de "dignatários" em vez de "dignitários".
Também a versão dos acontecimentos é sujeita a uma interpretação pouco coincidente com a consagrada nas biografias "oficiais", como as de João Gaspar Simões ou de Maria Filomena Mónica. Segundo o autor, as circunstâncias do nascimento de Eça são consideradas de forma muito "positiva", não tendo a "ilegitimidade" tido quaisquer consequências na sua vida e salientando mesmo uma profunda ligação à Mãe, com quem conviveria muito frequentemente na infância. Ora esta proximidade à família enquanto jovem não é atestada pelos demais biógrafos. Ao contrário do que escreve Calvet, Eça também não terá sido acompanhado de um profundo sentimento religioso ao longo da vida; os seus biógrafos tendem em concordar que Eça era realmente ateu, ainda que não dispensasse certos formalismos, como o facto de trazer algumas medalhas consigo. No que respeita aos amigos, as opiniões não são igualmente coincidentes: Eça era amigo de Ramalho, com certeza, mas este servia-lhe principalmente para se ocupar dos seus assuntos em Lisboa quando ele se encontrava no estrangeiro; quanto a Antero, as suas relações foram pautadas por alguma distância.
Numa coisa Calvet de Magalhães corrige os biógrafos anteriores e vindouros: na sua viagem ao Egipto, na companhia de Luís Resende, Eça de Queiroz utilizou um passaporte diplomático com a indicação de "encarregado de despachos", o que é totalmente diferente de "encarregado de negócios", designação utilizada por Maria Filomena Mónica e outros biógrafos. Relativamente às terras do Egipto, Calvet não escreve os nomes faraónicos e árabes correctamente, escreve mesmo pior do que o próprio Eça de Queiroz. Mas onde os nomes se transformam numa imensa confusão, devido a uma transliteração arbitrária, é no livro de ensaios de Maria Filomena Mónica sobre Eça de Queiroz, em que no capítulo I descreve a viagem que fez ao Egipto, "na peugada de Eça", em 2006. Não custa nada aprender as regras oficiais de transliteração, que os ingleses usam correctamente, os franceses nem tanto.
Não vamos descrever aqui o percurso de Eça, descrito nas várias biografias, mas importa salientar a ênfase prestada por Calvet às numerosas viagens do escritor, quer em Portugal, quer de Havana para os Estados Unidos, quer em Inglaterra (a partir de Newcastle e de Bristol, internamente, e para França), quer no interior de França (aquando de férias), quer de Inglaterra e de França para Portugal. Eça de Queiroz vivia confortavelmente mas não era rico. Todas estas viagens, só ou com a mulher e os filhos, seriam certamente dispendiosas. Talvez por isso Eça se queixasse constantemente de falta de dinheiro e por vezes o pedisse emprestado aos amigos ou adiantado aos editores.
Também é conferida particular importância aos problemas de saúde. Desde os seus 20 anos que Eça se queixava de problemas intestinais, a que raramente chamava pelo nome, e que amiúde o retinham em casa. O escritor possuía uma constituição frágil, e na juventude cometera alguns exageros de alimentação. E teria, desde a infância, alguns resquícios de tuberculose pulmonar, circunstâncias a que nunca aludia. A conjunção destas situações terá ditado a sua partida prematura aos 54 anos.
Ao longo do livro são mencionadas algumas das contradições que acompanharam Eça de Queiroz ao longo da vida, como a sua atracção pela família real (todavia, nunca quis parecer um áulico) e pela nobreza (tornara-se amigo de alguns dos fidalgos mais importantes do Reino, como a Duquesa de Palmela, Ficalho, Sabugosa, Arnoso, Soveral, Valbom, para não falar na família da mulher, os Condes de Resende), embora descartasse quaisquer pretensões nobiliárquicas. Disse mal dos portugueses, a quem (com D. Carlos) chamava a choldra. Mas também dos franceses, a partir de certa altura da vida. Note-se que durante a sua permanência em Neuilly nunca conviveu com franceses, nem mesmo com escritores, e só uma vez falou com Zola. E sobretudo disse mal dos ingleses, com algumas excepções. O infame ataque da esquadra britânica a Alexandria em 1882 é soberbamente retratado nas Cartas de Inglaterra.
Autor de vasta obra, Os Maias são o seu principal romance, embora o maior êxito, aquando da publicação, tenha sido O Primo Basílio. O primeiro romance, O Crime do Padre Amaro, pela delicadeza do tema para a época, foi recebido com reservas. A Cidade e as Serras foi já publicado postumamente.
Os seus papéis particulares e a biblioteca perderam-se quando naufragou o navio que transportava o seu espólio de França para Portugal. Felizmente que alguns dos textos não publicados se encontravam em posse de amigos.
Foi de certa maneira um pessimista, como o seu amigo Oliveira Martins, ainda que pretendesse resgatar o país da sua menoridade intelectual.
E não esteve isento de defeitos, mesmo de manias. Todavia, foi um grande cultor das letras pátrias.
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