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Imagem do editor: D. Sebastião adolescente, foto recriada em IA, a partir do retrato do Museu Nacional de Arte Antiga |
Leio agora D. Sebastião, O Regresso do Enigma, de Gisela Ildefonso, livro publicado em Dezembro de 2023 e reeditado o ano passado.
É crença pacificamente aceite que D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir. Todavia, não existe unanimidade, como o mito do Sebastianismo comprova. As obras históricas sobre o destino fatal do rei convergem naquele sentido, embora as obras literárias sejam menos assertivas. Dos livros que já comentámos, subsiste a dúvida no ensaio de António Belard da Fonseca e no romance de Aquilino Ribeiro.
O recente livro de Gisela Ildefonso, que passou praticamente despercebido, sustenta a tese de que D. Sebastião não morreu na batalha. Apresenta mais de cem documentos (especialmente cartas), encontrados no Arquivo da Casa dos Duques de Medina Sidónia, no Arquivo Geral de Simancas, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional de Portugal e em outros arquivos, relativos ao período de 1563 a 1603, abordando eventos desse tempo referentes a Portugal e a Espanha. A correspondência que especialmente nos interessa para o caso é a seguinte:
- A primeira carta (no Arquivo Ducal de Medina Sidónia) que dá conta da prisão de D. Sebastião é enviada em 8 de Agosto de 1578, de Sanlúcar de Barrameda, pelo feitor António Manso para Mateo Vasquez, secretário de Filipe II, dando conta que D. Sebastião se encontra cativo, segundo informação do alcaide de Tetuão. (p. 151)
- A carta de 9 de Agosto de 1578, enviada de Cádiz, por Pedro Salinas, tesoureiro do duque de Medina Sidónia para o licenciado Tebar, de Madrid, confirma que António Manso lhe disse que o alcaide de Tetuão escrevera ao alcaide de Arzila, referindo que tinha D. Sebastião cativo. (p. 153)
Segundo D. Luisa Isabel Álvarez de Toledo, 21ª duquesa de Medina Sidónia (1936-2008), no seu livro Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible -Tomo I, e baseada no biógrafo de Filipe II, Cabrera de Córdoba, o monarca espanhol recebeu em Madrid duas cartas enviadas pelo duque de Medina Sidónia: o pedido de resgate de D. Sebastião, escrito pelo alcaide de Tetuão e enviado por António Manso (que Filipe guardou consigo) e um pedido de ajuda escrito por D. Sebastião. (p. 157)
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Esta obra, editada pela Universidade de Cádiz em 1994, encontra-se hoje absolutamente esgotada |
A seguir, a autora menciona cartas sem respeitar a ordem cronológica, que aqui vamos restabelecer.
- Em 12 de Agosto, Filipe II, a partir do Escorial, comunica ao seu secretário António Pérez que recebeu um aviso secreto sobre o que aconteceu ao rei de Portugal e do qual o informará mais tarde. [Nesta carta, a autora faz uma chamada, em nota de rodapé, ao Marquês de Santa Cruz, D. Álvaro de Bazán, grande almirante de Espanha, sem que se perceba porquê].
- Ainda em 12 de Agosto, António Pérez responde a Filipe II, acusando o despacho acima e informando que falou com D. Cristóvão de Moura, o qual, em sua opinião, deveria ser enviado a Portugal, para demonstrar os sentimentos sobre o funesto acontecimento.
- Também em 12 de Agosto, o licenciado Ochoa de Villanueva, a partir de Sanlúcar de Barrameda, escreve a Filipe II, aludindo a que este já saberá da derrota do exército português que lhe terá sido transmitida pelo duque de Medina Sidónia, e pedindo instruções sobre os homens que se encontravam no porto a aguardar passagem para servir o rei de Portugal. (p. 159)
- Em 13 de Agosto, Filipe II escreve ao Duque de Medina Sidónia, agradecendo as informações já prestadas e pedindo-lhe que o avise se algo mais se passar. (p. 160)
- Em 13 de Agosto, Filipe II envia, do Escorial, uma carta ao seu secretário António Pérez, informando da carta do feitor sobre a prisão de D. Sebastião e dando instruções para que se adie a partida para Marrocos de D. Cristóvão de Moura. (p. 162)
- Em 14 de Agosto, Filipe II envia, de Madrid, uma carta ao Duque de Medina Sidónia, referindo que ordenou ao Marquês de Santa Cruz que fornecesse as praças do rei em Marrocos, para socorro e segurança delas. (p. 162)
«A 16 de Agosto Filipe encarrega o seus emissários de fazer chegar o pedido de ajuda ao Cardeal em Lisboa, estimando-se que tenha alcançado o seu destino quase ao mesmo tempo da armada que regressa de Alcácer-Quibir a 24 de Agosto, trazendo a correspondência de Belchior do Amaral. Neste interim, o número de pessoas a par da prisão de D. Sebastião continua a crescer, algo que escapa ao conhecimento de Filipe, aumentando o número a cada dia: 1) O mouro enviado pelo alcaide de Tetuão que transportava o bilhete de resgate e a nota de D. Sebastião; 2) O duque de Medina Sidónia, que manda prender este mouro para evitar a disseminação da notícia, enviando depois a carta através do mensageiro Ângelo Ruis. Este documento conserva-se nas contas da Tesouraria do Duque; 3) O feitor António Manso, que recebe a notícia do resgate; 4) O tesoureiro Pedro de Salinas em Cádiz, por onde passam os cavaleiros vindos da batalha; 5) O Licenciado Tebar, a quem Pedro de Salinas relata o sucedido; 6) O Cardeal, que recebe em Lisboa a carta de D. Sebastião a pedir ajuda; 7) Frei Roque do Espírito Santo, que se encontrava em Puerto de Santa Maria quando foi recebida a notícia.» (p. 157)
- Em 16 de Agosto, Filipe II escreve de Torrelodones (por mão de Mateo Vazquez) ao Duque de Medina Sidónia e informa que mandou se levasse a Portugal o mouro detido em Puerta de Santa Maria. (p. 163)
- Em 19 de Agosto, o Capitão Bastiano escreve, de Madrid, a Ptolomeu Galli [aliás Tolomeu Gallio, decano do Sacro Colégio, conhecido como Cardeal de Como] dizendo que D. Sebastião e o seu exército se perderam em África. (p. 164)
- Em 19 de Agosto, Filipe II envia de Madrid uma carta a seu meio-irmão D. João de Áustria, contando que o rei de Portugal está vivo e ferido, mas sem mais detalhes. (p. 166)
- Em 22 de Agosto, Filipe II, através do secretário Mateo Vazquez, escreve ao embaixador Francisco de Zúñiga, dando indicações para este se encontrar em Fez ou Marraquexe com o novo rei (o sultão Al-Mansur) a fim de saber quem morreu e quem está cativo. (p. 166)
Em 26 de Agosto, Cristóvão de Moura escreve de Lisboa a Filipe II dizendo, entre outras coisas, que falou com o Cardeal [D. Henrique] e também que "Um corregedor de Lisboa disse-lhe [ao Cardeal] que era melhor jurar-se por rei destes reinos, pois que assim lhe era de direito, e mostrando-se o Cardeal desapontado, lhe respondeu que a seu tempo trataria disso, se bem que todos concordam que não desgosta de tratar destas coisas, pela larga experiência que tem de governar. E a partir daqui começou a exercer o governo, dando sempre mostras que não tinha por certa a morte do rei. Sobre isto há opiniões tão diferentes que homens muito honrados afirmavam estar o rei vivo e neste reino, dado testemunho de quando o tinham visto. E por quanto é normal dar crédito a coisas semelhantes, nesta província predomina mais isto, que em todas no mundo. E neste encantamento se passaram alguns dias, até que ao amanhecer, que foi quando aqui entrei, se ouviu ter morrido o rei e se publicou em todo o reino. Antes disto, o Cardeal trazia luto e estava retirado, mas não deixava de negociar com todos, como faz agora." (p. 168)
Escreve a autora: «Neste ponto, citamos Álvaro Lobo, o cronista do Cardeal em Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura (1840):
O Cardeal, enquanto não tinha certeza da morte d'el-rei D. Sebastião, não tratou de fazer mudança alguma no Reino, até que veio D. Francisco de Souza, que trouxe a carta de Belchior do Amaral com a certeza da morte d'el-rei D. Sebastião, que afirmava, como testemunha de vista, que o sepultara.» (p. 170)
«Não obstante encontrar-se na posse do bilhete enviado por Filipe com o pedido de ajuda de D. Sebastião, o Cardeal é obrigado, face à carta de Belchior do Amaral, a assumir oficialmente a morte de D. Sebastião. É levantado rei a 28 de Agosto de 1578, não lhe restando por hora alternativa a não ser negociar o corpo, para legitimar a sua ascensão ao trono, evitando uma trama por parte de Filipe.» (p. 170)
«Em contraste com a versão oficial da morte que até hoje temos como a versão oficial dos eventos, deparamo-nos com os documentos anteriormente citados, descritos no livro publicado em 1992 por D. Isabel Álvarez de Toledo. Nascida em Portugal e descendente de D. Alonso de Guzmán, cujo casamento da filha Luísa de Gusmão com D. João IV possibilitou a Restauração de 1640, a sua contribuição foi recebida com indiferença. Não obstante ser proprietária do maior arquivo privado documental da Europa e descendente dos Medina Sidónia - além de possuir o título nobiliário hereditário mais antigo de Espanha -, a ausência de transcrição e tradução levou a que os documentos descobertos em 1955 passassem despercebidos.» (pp. 170-1)
«O Estado teve até agora a última palavra no que concerne ao domínio da História, como bastião defensivo para evitar a queda da versão burguesa. Contudo, será difícil negar a veracidade destes documentos, acessíveis a qualquer cidadão, por se articularem rigorosamente com a documentação privada de Filipe detida pelo governo espanhol no Arquivo de Simancas. Neste, guardam-se, até hoje, as cartas que Filipe recebia do Duque, do mesmo modo que o arquivo privado de Medina Sidónia guarda as cartas que o Duque recebia de Filipe, completando-se mutuamente.» (p. 171)
Menciona a seguir, e pertinentemente, a autora, a recusa de Filipe II em garantir o adiamento do repatriamento do Duque de Barcelos. Passo a explicar. Aquando da expedição de D. Sebastião a África, o monarca fez-se acompanhar pelos mais altos fidalgos do Reino. Ora a primeira posição era ocupada pelo Duque de Bragança, na ocasião D. João I, que não pôde embarcar por se encontrar doente. Resolveu enviar como representante seu filho D. Teodósio (que viria a ser D. Teodósio II, como Duque de Bragança), então com dez anos, isto contra a vontade da mãe a Duquesa D. Catarina, infanta de Portugal e filha do rei D. Manuel I. O rapazinho fora agraciado com o título de Duque de Barcelos por D. Sebastião, que gostava muito dele e a quem tinha feito seu pajem. Sabendo Filipe II da sobrevivência de D. Sebastião, mas dado que a morte deste tinha sido oficialmente declarada por Belchior do Amaral, não convinha o regresso do jovem a Portugal pois constituiria uma ameaça para as ambições do rei de Espanha. O próprio Duque D. João I, por morte do Cardeal D. Henrique, haveria de diligenciar para que fossem reconhecidos os direitos de sua mulher à Coroa mas acabou por aceitar as mercês de Filipe II que o fez Condestável de Portugal e lhe entregou o colar do Tosão de Ouro. Compreende-se pois a insistência junto de Al-Mansur a fim de que este protelasse a entrega do pequeno Duque de Barcelos.
A autora transcreve uma passagem da página 123 do Tomo I de Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible, obra que citámos acima, donde se conclui que o Cardeal D. Henrique sabia que D. Sebastião estava vivo: «As pretensões de Filipe, favorecidas pela passividade do Cardeal, tinham deixado de ser secretas. Ambicioso e intriguista, o velho Cardeal afeiçoou-se ao trono, e disposto a conservá-lo até ao fim dos seus dias, não moveu um dedo para salvar D. Sebastião.»
Também é referido um salvo-conduto emitido por Filipe II, a pedido do Cardeal D. Henrique, a favor do judeu Abraham Samuel, vivendo em Alcácer, no reino de Fez, e da sua família para se deslocarem a Cádiz. Admite-se que D. Sebastião, incógnito, pudesse figurar entre os retornados de África. (pp. 197-8-9)
É também mencionada (página 246) uma passagem da obra do Padre José Pereira Baião, o livro
No seu livro, Gisela Afonso reproduz muitos mais documentos, alguns de grande interesse, relativos quer ao período anterior quer ao período posterior à batalha de Alcácer Quibir, mas apenas mencionei os que considerei relevantes para sustentar a tese de que o rei D. Sebastião realmente não morreu naquela trágica batalha.
Mas permanece a interrogação. Qual foi então o destino do rei de Portugal?
* * * * *
NOTA: Considerando que o livro não apresenta o fac-simile das cartas, nem sequer a grafia original ou a língua original (quando não em português), e que, por vezes, o destinatário ou o remetente são imprecisamente designados e a uniformidade do tipo de letra induz também à confusão entre o que é o texto das cartas e o texto da autora, consultei por escrito o Archivo General Fundación Casa Medina Sidonia, para averiguar da autenticidade das mesmas. Obtive como resposta que os acontecimentos ocorridos em Alcácer Quibir são analisados no Tomo I do livro (esgotado) Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible, de D. Luisa Isabel Álvarez de Toledo, 21ª Duquesa de Medina Sidónia, publicado em 1994 pela Universidade de Cádiz. Quanto à minha questão relativa ao livro Alcazar Quivir, também da Duquesa de Medina Sidónia, publicado em 1992 pela Fundación Universidad Complutense, igualmente esgotado, foi-me respondido que se tratava da transcrição de uma carta de 1578, escrita por Pedro Salinas ao licenciado Tebar, agente da Casa de Medina Sidónia em Madrid, carta que mencionei acima. Desta troca de correspondência com a Casa de Medina Sidónia resulta que, não sendo negada a existência das cartas ou que as mesmas tenham sido forjadas, e encontrando-se as mesmas publicadas, é tacitamente admitido que elas são autênticas. Assim sendo, confirma-se que o rei D. Sebastião não morreu na batalha de Alcácer Quibir e que a História de Portugal persiste há cerca de 500 anos na consagração de uma impostura.
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