segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

EÇA DE QUEIROZ "ÍNTIMO»

Só agora tive oportunidade de ler José Maria, A Vida Privada de um Grande Escritor, de José Calvet de Magalhães, que comprei em 1994, data em que foi publicado. Após este livro sobre Eça de Queiroz, Calvet de Magalhães escreveria também um livro sobre Almeida Garrett, em 1996, e outro sobre Antero de Quental, em 1998.

Pelo título, pode pressupor-se que se trata de um livro relatando os aspectos mais íntimos da vida do grande romancista, mas não é o caso. Esta obra é na verdade uma biografia do escritor, embora em moldes diferentes das anteriormente, ou posteriormente, publicadas. O embaixador Calvet de Magalhães não segue os critérios usuais no estabelecimento de uma biografia, antes procede à descrição dos factos que se lhe afiguraram de maior importância na vida de Eça de Queiroz, quer no plano pessoal, quer no diplomático, quer como romancista.

Para minha admiração, e considerando que o embaixador Calvet de Magalhães foi um distinto diplomata, com vasto curriculum e autor de numerosas obras, este livro não se encontra particularmente bem escrito. É por vezes complexo na ordenação dos assuntos, confuso na designação das personagens, e servido por uma prosa banal a que não faltam erros de ortografia como, por exemplo, a utilização repetida de "dignatários" em vez de "dignitários".

Também a versão dos acontecimentos é sujeita a uma interpretação pouco coincidente com a consagrada nas biografias "oficiais", como as de João Gaspar Simões ou de Maria Filomena Mónica. Segundo o autor, as circunstâncias do nascimento de Eça são consideradas de forma muito "positiva", não tendo a "ilegitimidade" tido quaisquer consequências na sua vida e salientando mesmo uma profunda ligação à Mãe, com quem conviveria muito frequentemente na infância. Ora esta proximidade à família enquanto jovem não é atestada pelos demais biógrafos. Ao contrário do que escreve Calvet, Eça também não terá sido acompanhado de um profundo sentimento religioso ao longo da vida; os seus biógrafos tendem em concordar que Eça era realmente ateu, ainda que não dispensasse certos formalismos, como o facto de trazer algumas medalhas consigo. No que respeita aos amigos, as opiniões não são igualmente coincidentes: Eça era amigo de Ramalho, com certeza, mas este servia-lhe principalmente para se ocupar dos seus assuntos em Lisboa quando ele se encontrava no estrangeiro; quanto a Antero, as suas relações foram pautadas por alguma distância. 

Numa coisa Calvet de Magalhães corrige os biógrafos anteriores e vindouros: na sua viagem ao Egipto, na companhia de Luís Resende, Eça de Queiroz utilizou um passaporte diplomático com a indicação de "encarregado de despachos", o que é totalmente diferente de "encarregado de negócios", designação utilizada por Maria Filomena Mónica e outros biógrafos. Relativamente às terras do Egipto, Calvet não escreve os nomes faraónicos e árabes correctamente, escreve mesmo pior do que o próprio Eça de Queiroz. Mas onde os nomes se transformam numa imensa confusão, devido a uma transliteração arbitrária, é no livro de ensaios de Maria Filomena Mónica sobre Eça de Queiroz, em que no capítulo I descreve a viagem que fez ao Egipto, "na peugada de Eça", em 2006. Não custa nada aprender as regras oficiais de transliteração, que os ingleses usam correctamente, os franceses nem tanto.

Não vamos descrever aqui o percurso de Eça, descrito nas várias biografias, mas importa salientar a ênfase prestada por Calvet às numerosas viagens do escritor, quer em Portugal, quer de Havana para os Estados Unidos, quer em Inglaterra (a partir de Newcastle e de Bristol, internamente, e para França), quer no interior de França (aquando de férias), quer de Inglaterra e de França para Portugal. Eça de Queiroz vivia confortavelmente mas não era rico. Todas estas viagens, só ou com a mulher e os filhos, seriam certamente dispendiosas. Talvez por isso Eça se queixasse constantemente de falta de dinheiro e por vezes o pedisse emprestado aos amigos ou adiantado aos editores.

Também é conferida particular importância aos problemas de saúde. Desde os seus 20 anos que Eça se queixava de problemas intestinais, a que raramente chamava pelo nome, e que amiúde o retinham em casa. O escritor possuía uma constituição frágil, e na juventude cometera alguns exageros de alimentação. E teria, desde a infância, alguns resquícios de tuberculose pulmonar, circunstâncias a que nunca aludia. A conjunção destas situações terá ditado a sua partida prematura aos 54 anos.

Ao longo do livro são mencionadas algumas das contradições que acompanharam Eça de Queiroz ao longo da vida, como a sua atracção pela família real (todavia, nunca quis parecer um áulico) e pela nobreza (tornara-se amigo de alguns dos fidalgos mais importantes do Reino, como a Duquesa de Palmela, Ficalho, Sabugosa, Arnoso, Soveral, Valbom, para não falar na família da mulher, os Condes de Resende), embora descartasse quaisquer pretensões nobiliárquicas. Disse mal dos portugueses, a quem (com D. Carlos) chamava a choldra. Mas também dos franceses, a partir de certa altura da vida. Note-se que durante a sua permanência em Neuilly nunca conviveu com franceses, nem mesmo com escritores, e só uma vez falou com Zola. E sobretudo disse mal dos ingleses, com algumas excepções. O infame ataque da esquadra britânica a Alexandria em 1882 é soberbamente retratado nas Cartas de Inglaterra.

Autor de vasta obra, Os Maias são o seu principal romance, embora o maior êxito, aquando da publicação, tenha sido O Primo Basílio. O primeiro romance, O Crime do Padre Amaro, pela delicadeza do tema para a época, foi recebido com reservas. A Cidade e as Serras foi já publicado postumamente.

Os seus papéis particulares e a biblioteca perderam-se quando naufragou o navio que transportava o seu espólio de França para Portugal. Felizmente que alguns dos textos não publicados se encontravam em posse de amigos.

Foi de certa maneira um pessimista, como o seu amigo Oliveira Martins, ainda que pretendesse resgatar o país da sua menoridade intelectual.

E não esteve isento de defeitos, mesmo de manias. Todavia, foi um grande cultor das letras pátrias.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

AFINAL, D. SEBASTIÃO NÃO MORREU EM ALCÁCER-QUIBIR ?

Imagem do editor: D. Sebastião adolescente, foto recriada em IA, a partir do retrato do Museu Nacional de Arte Antiga

Leio agora D. Sebastião, O Regresso do Enigma, de Gisela Ildefonso, livro publicado em Dezembro de 2023 e reeditado o ano passado. 

É crença pacificamente aceite que D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir. Todavia, não existe unanimidade, como o mito do Sebastianismo comprova. As obras históricas sobre o destino fatal do rei convergem naquele sentido, embora as obras literárias sejam menos assertivas. Dos livros que já comentámos, subsiste a dúvida no ensaio de António Belard da Fonseca e no romance de Aquilino Ribeiro.

O recente livro de Gisela Ildefonso, que passou praticamente despercebido, sustenta a tese de que D. Sebastião não morreu na batalha. Apresenta mais de cem documentos (especialmente cartas), encontrados no Arquivo da Casa dos Duques de Medina Sidónia, no Arquivo Geral de Simancas, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional de Portugal e em outros arquivos, relativos ao período de 1563 a 1603, abordando eventos desse tempo referentes a Portugal e a Espanha. A correspondência que especialmente nos interessa para o caso é a seguinte:

- A primeira carta (no Arquivo Ducal de Medina Sidónia) que dá conta da prisão de D. Sebastião é enviada em 8 de Agosto de 1578, de Sanlúcar de Barrameda, pelo feitor António Manso para Mateo Vasquez, secretário de Filipe II, dando conta que D. Sebastião se encontra cativo, segundo informação do alcaide de Tetuão. (p. 151)

-  A carta de 9 de Agosto de 1578, enviada de Cádiz, por Pedro Salinas, tesoureiro do duque de Medina Sidónia para o licenciado Tebar, de Madrid, confirma que António Manso lhe disse que o alcaide de Tetuão escrevera ao alcaide de Arzila, referindo que tinha D. Sebastião cativo. (p. 153)

Segundo D. Luisa Isabel Álvarez de Toledo, 21ª duquesa de Medina Sidónia (1936-2008), no seu livro Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible -Tomo I, e baseada no biógrafo de Filipe II, Cabrera de Córdoba, o monarca espanhol recebeu em Madrid duas cartas enviadas pelo duque de Medina Sidónia: o pedido de resgate de D. Sebastião, escrito pelo alcaide de Tetuão e enviado por António Manso (que Filipe guardou consigo) e um pedido de ajuda escrito por D. Sebastião. (p. 157)

Esta obra, editada pela Universidade de Cádiz em 1994, encontra-se hoje absolutamente esgotada

A seguir, a autora menciona cartas sem respeitar a ordem cronológica, que aqui vamos restabelecer.

- Em 12 de Agosto, Filipe II, a partir do Escorial, comunica ao seu secretário António Pérez que recebeu um aviso secreto sobre o que aconteceu ao rei de Portugal e do qual o informará mais tarde. [Nesta carta, a autora faz uma chamada, em nota de rodapé, ao Marquês de Santa Cruz, D. Álvaro de Bazán, grande almirante de Espanha, sem que se perceba porquê].

- Ainda em 12 de Agosto, António Pérez responde a Filipe II, acusando o despacho acima e informando que falou com D. Cristóvão de Moura, o qual, em sua opinião, deveria ser enviado a Portugal, para demonstrar os sentimentos sobre o funesto acontecimento.

- Também em 12 de Agosto, o licenciado Ochoa de Villanueva, a partir de Sanlúcar de Barrameda, escreve a Filipe II, aludindo a que este já saberá da derrota do exército português que lhe terá sido transmitida pelo duque de Medina Sidónia, e pedindo instruções sobre os homens que se encontravam no porto a aguardar passagem para servir o rei de Portugal. (p. 159)

 - Em 13 de Agosto, Filipe II escreve ao Duque de Medina Sidónia, agradecendo as informações já prestadas e pedindo-lhe que o avise se algo mais se passar. (p. 160)

- Em 13 de Agosto, Filipe II envia, do Escorial, uma carta ao seu secretário António Pérez, informando da carta do feitor sobre a prisão de D. Sebastião e dando instruções para que se adie a partida para Marrocos de D. Cristóvão de Moura. (p. 162)

- Em 14 de Agosto, Filipe II envia, de Madrid, uma carta ao Duque de Medina Sidónia, referindo que ordenou ao Marquês de Santa Cruz que fornecesse as praças do rei em Marrocos, para socorro e segurança delas. (p. 162)

«A 16 de Agosto Filipe encarrega o seus emissários de fazer chegar o pedido de ajuda ao Cardeal em Lisboa, estimando-se que tenha alcançado o seu destino quase ao mesmo tempo da armada que regressa de Alcácer-Quibir a 24 de Agosto, trazendo a correspondência de Belchior do Amaral. Neste interim, o número de pessoas a par da prisão de D. Sebastião continua a crescer, algo que escapa ao conhecimento de Filipe, aumentando o número a cada dia: 1) O mouro enviado pelo alcaide de Tetuão que transportava o bilhete de resgate e a nota de D. Sebastião; 2) O duque de Medina Sidónia, que manda prender este mouro para evitar a disseminação da notícia, enviando depois a carta através do mensageiro Ângelo Ruis. Este documento conserva-se nas contas da Tesouraria do Duque; 3) O feitor António Manso, que recebe a notícia do resgate; 4) O tesoureiro Pedro de Salinas em Cádiz, por onde passam os cavaleiros vindos da batalha; 5) O Licenciado Tebar, a quem Pedro de Salinas relata o sucedido; 6) O Cardeal, que recebe em Lisboa a carta de D. Sebastião a pedir ajuda; 7) Frei Roque do Espírito Santo, que se encontrava em Puerto de Santa Maria quando foi recebida a notícia.» (p. 157)

- Em 16 de Agosto, Filipe II escreve de Torrelodones (por mão de Mateo Vazquez) ao Duque de Medina Sidónia e informa que mandou se levasse a Portugal o mouro detido em Puerta de Santa Maria. (p. 163)

- Em 19 de Agosto, o Capitão Bastiano escreve, de Madrid, a Ptolomeu Galli [aliás Tolomeu Gallio, decano do Sacro Colégio, conhecido como Cardeal de Como] dizendo que D. Sebastião e o seu exército se perderam em África. (p. 164)

- Em 19 de Agosto, Filipe II envia de Madrid uma carta a seu meio-irmão D. João de Áustria, contando que o rei de Portugal está vivo e ferido, mas sem mais detalhes. (p. 166)

 - Em 22 de Agosto, Filipe II, através do secretário Mateo Vazquez, escreve ao embaixador Francisco de Zúñiga, dando indicações para este se encontrar em Fez ou Marraquexe com o novo rei (o sultão Al-Mansur) a fim de saber quem morreu e quem está cativo. (p. 166)

Em 26 de Agosto, Cristóvão de Moura escreve de Lisboa a Filipe II dizendo, entre outras coisas, que falou com o  Cardeal [D. Henrique] e também que "Um corregedor de Lisboa disse-lhe [ao Cardeal] que era melhor jurar-se por rei destes reinos, pois que assim lhe era de direito, e mostrando-se o Cardeal desapontado, lhe respondeu que a seu tempo trataria disso, se bem que todos concordam que não desgosta de tratar destas coisas, pela larga experiência que tem de governar. E a partir daqui começou a exercer o governo, dando sempre mostras que não tinha por certa a morte do rei. Sobre isto há opiniões tão diferentes que homens muito honrados afirmavam estar o rei vivo e neste reino, dado testemunho de quando o tinham visto. E por quanto é normal dar crédito a coisas semelhantes, nesta província predomina mais isto, que em todas no mundo. E neste encantamento se passaram alguns dias, até que ao amanhecer, que foi quando aqui entrei, se ouviu ter morrido o rei e se publicou em todo o reino. Antes disto, o Cardeal trazia luto e estava retirado, mas não deixava de negociar com todos, como faz agora." (p. 168)

Escreve a autora: «Neste ponto, citamos Álvaro Lobo, o cronista do Cardeal em Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura (1840):

O Cardeal, enquanto não tinha certeza da morte d'el-rei D. Sebastião, não tratou de fazer mudança alguma no Reino, até que veio D. Francisco de Souza, que trouxe a carta de Belchior do Amaral com a certeza da morte d'el-rei D. Sebastião, que afirmava, como testemunha de vista, que o sepultara.» (p. 170)

«Não obstante encontrar-se na posse do bilhete enviado por Filipe com o pedido de ajuda de D. Sebastião, o Cardeal é obrigado, face à carta de Belchior do Amaral, a assumir oficialmente a morte de D. Sebastião. É levantado rei a 28 de Agosto de 1578, não lhe restando por hora alternativa a não ser negociar o corpo, para legitimar a sua ascensão ao trono, evitando uma trama por parte de Filipe.» (p. 170)

«Em contraste com a versão oficial da morte que até hoje temos como a versão oficial dos eventos, deparamo-nos com os documentos anteriormente citados, descritos no livro publicado em 1992 por D. Isabel Álvarez de Toledo. Nascida em Portugal e descendente de D. Alonso de Guzmán, cujo casamento da filha Luísa de Gusmão com D. João IV possibilitou a Restauração de 1640, a sua contribuição foi recebida com indiferença. Não obstante ser proprietária do maior arquivo privado documental da Europa e descendente dos Medina Sidónia - além de possuir o título nobiliário hereditário mais antigo de Espanha -, a ausência de transcrição e tradução levou a que os documentos descobertos em 1955 passassem despercebidos.» (pp. 170-1)

 «O Estado teve até agora a última palavra no que concerne ao domínio da História, como bastião defensivo para evitar a queda da versão burguesa. Contudo, será difícil negar a veracidade destes documentos, acessíveis a qualquer cidadão, por se articularem rigorosamente com a documentação privada de Filipe detida pelo governo espanhol no Arquivo de Simancas. Neste, guardam-se, até hoje, as cartas que Filipe recebia do Duque, do mesmo modo que o arquivo privado de Medina Sidónia guarda as cartas que o Duque recebia de Filipe, completando-se mutuamente.» (p. 171)

Menciona a seguir, e pertinentemente, a autora, a recusa de Filipe II em garantir o adiamento do repatriamento do Duque de Barcelos. Passo a explicar. Aquando da expedição de D. Sebastião a África, o monarca fez-se acompanhar pelos mais altos fidalgos do Reino. Ora a primeira posição era ocupada pelo Duque de Bragança, na ocasião D. João I, que não pôde embarcar por se encontrar doente. Resolveu enviar como representante seu filho D. Teodósio (que viria a ser D. Teodósio II, como Duque de Bragança), então com dez anos, isto contra a vontade da mãe a Duquesa D. Catarina, infanta de Portugal e filha do rei D. Manuel I. O rapazinho fora agraciado com o título de Duque de Barcelos por D. Sebastião, que gostava muito dele e a quem tinha feito seu pajem. Sabendo Filipe II da sobrevivência de D. Sebastião, mas dado que a morte deste tinha sido oficialmente declarada por Belchior do Amaral, não convinha o regresso do jovem a Portugal pois constituiria uma ameaça para as ambições do rei de Espanha. O próprio Duque D. João I, por morte do Cardeal D. Henrique, haveria de diligenciar para que fossem reconhecidos os direitos de sua mulher à Coroa mas acabou por aceitar as mercês de Filipe II que o fez Condestável de Portugal e lhe entregou o colar do Tosão de Ouro. Compreende-se pois a insistência junto de Al-Mansur a fim de que este protelasse a entrega do pequeno Duque de Barcelos.

A autora transcreve uma passagem da página 123 do Tomo I de Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible, obra que citámos acima, donde se conclui que o Cardeal D. Henrique sabia que D. Sebastião estava vivo: «As pretensões de Filipe, favorecidas pela passividade do Cardeal, tinham deixado de ser secretas. Ambicioso e intriguista, o velho Cardeal afeiçoou-se ao trono, e disposto a conservá-lo até ao fim dos seus dias, não moveu um dedo para salvar D. Sebastião.»

Também é referido um salvo-conduto emitido por Filipe II, a pedido do Cardeal D. Henrique, a favor do judeu Abraham Samuel, vivendo em Alcácer, no reino de Fez, e da sua família para se deslocarem a Cádiz. Admite-se que D. Sebastião, incógnito, pudesse figurar entre os retornados de África. (pp. 197-8-9)

É também mencionada (página 246) uma passagem da obra do Padre José Pereira Baião, o livro Portugal Cuidadoso, e Lastimado Com A Vida e Perda do Senhor Rey Dom Sebastião, o Desejado de Saudosa Memoria (1737) em que é referida a passagem de D. Sebastião, incógnito, por um mosteiro do cabo de São Vicente, no seu regresso de África. As alusões do Padre Baião ao segredo de que o rei estava vivo são relatadas em algumas das obras sobre D. Sebastião que comentámos anteriormente neste blogue.

No seu livro, Gisela Afonso reproduz muitos mais documentos, alguns de grande interesse, relativos quer ao período anterior quer ao período posterior à batalha de Alcácer Quibir, mas apenas mencionei os que considerei relevantes para sustentar a tese de que o rei D. Sebastião realmente não morreu naquela trágica batalha.

Mas permanece a interrogação. Qual foi então o destino do rei de Portugal?

 * * * * *

NOTA: Considerando que o livro não apresenta o fac-simile das cartas, nem sequer a grafia original ou a língua original (quando não em português), e que, por vezes, o destinatário ou o remetente são imprecisamente designados e a uniformidade do tipo de letra induz também à confusão entre o que é o texto das cartas e o texto da autora, consultei por escrito o Archivo General Fundación Casa Medina Sidonia, para averiguar da autenticidade das mesmas. Obtive como resposta que os acontecimentos ocorridos em Alcácer Quibir são analisados no Tomo I do livro (esgotado) Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible, de D. Luisa Isabel Álvarez de Toledo, 21ª Duquesa de Medina Sidónia, publicado em 1994 pela Universidade de Cádiz. Quanto à minha questão relativa ao livro Alcazar Quivir, também da Duquesa de Medina Sidónia, publicado em 1992 pela Fundación Universidad Complutense, igualmente esgotado, foi-me respondido que se tratava da transcrição de uma carta de 1578, escrita por Pedro Salinas ao licenciado Tebar, agente da Casa de Medina Sidónia em Madrid, carta que mencionei acima. Desta troca de correspondência com a Casa de Medina Sidónia resulta que, não sendo negada a existência das cartas ou que as mesmas tenham sido forjadas, e encontrando-se as mesmas publicadas, é tacitamente admitido que elas são autênticas. Assim sendo, confirma-se que o rei D. Sebastião não morreu na batalha de Alcácer Quibir e que a História de Portugal persiste há cerca de 500 anos na consagração de uma impostura.                      

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

D. SEBASTIÃO, UMA CRÓNICA ANÓNIMA?

Em 1978, a Imprensa Nacional - Casa da Moeda publicou, com prefácio de Francisco de Sales Mascarenhas Loureiro, Jornada del-rei Dom Sebastião à África e Crónica de Dom Henrique.

O prefaciador descreve D. Sebastião com as características que lhe são habitualmente atribuídas, recorrendo amiúde à obra de referência de Queiroz Veloso. Salienta-se a educação ministrada pelos jesuítas, com um inusitado relevo dado à castidade, a aptidão para aprender, dotes de inteligência e de memória, e desde muito cedo a sua obsessão pela conquista de África. É aludida também a inegável misoginia do rei, que é parcialmente atribuída ao conhecido problema das suas perdas nocturnas.

Cita Loureiro o prof. Manuel Heleno, quando este, fazendo o elogio de Queiroz Veloso na Academia Portuguesa da História, em 28 de Fevereiro de 1958, se refere ao reinado de D. Sebastião: «A Nação concentrava no novo rei todas as suas esperanças e aguardava que ele, restaurando as antigas virtudes e reagindo contra os costumes de que Clenardo nos dá uma imagem, encarnasse os anseios da alma portuguesa e restituísse ao País as suas glórias passadas. Mas o temperamento do monarca, mais religioso que político, mais Quixote do que prático, excitado pelo ambiente e pela lisonja, não permitiu a realização desse ideal, mau grado as suas boas intenções.» (p. XXXI)

Também Joaquim Veríssimo Serrão (in D. Sebastião à Luz dos seus Itinerários) é citado: «Reconheçam-se em D. Sebastião as marcas de uma personalidade não equilibrada - falta de bom senso, tendências impulsivas, fraco poder de reflexão, um caprichoso desejo de se ver obedecido -, se bem que se não possam estranhar essas marcas num homem que se sentia quase divinizado como rei e que viveu numa época em que a máquina do governo se centrava em formas de autoridade.» (p. XXXII)

Escreve o prefaciador que «Em um manuscrito que Rui Barreto de Meneses endereça de Moura, a 12 de Outubro de 1618, ao cronista-mor do Reino, que tudo indica tratar-se de D. Manuel de Meneses, refere o mesmo que da Jornada de África havido três histórias "muy particulares" em mão de Fr. Bernardo de Brito, escritas por pessoas que se acharam presentes não só no Exército, mas igualmente nos conselhos. Acrescentava ainda que uma elas não tinha o nome do seu autor, estando riscada em muitas partes, e que, todavia, lhe parecera boa.» (pp. XXXIII-XXXIV) Mais acrescenta que a edição das crónicas agora publicadas, embora tendo por núcleo original a Jornada de África de autor anónimo, que Fr. Bernardo de Brito possuíra, foi acrescentada com inserções de outras proveniências. O nome completo desta crónica é Iornada de ElRey Dom Sebastião as partes de Africa aonde se perdeo Na Batalha q deu aos Mouros em o anno & Era de 1578, cujo manuscrito se encontra na Biblioteca Municipal de Viseu.

«A obra, em si, consta de três livros, desdobrados numa série de capítulos, o primeiro abrangendo vinte e oito, o segundo vinte e sete, enquanto o terceiro, dedicado ao governo do cardeal-rei, se desenvolve por dez. Verifica-se, deste modo, que na sua quase totalidade ela é votada ao período sebástico e que neste a jornada de África tem uma relevância muito especial. Não é, pois, por acaso que o historiógrafo designa a sua obra por Jornada Del-Rei D. Sebastião de Portugal às Partes de África. »(p. XXXIX)

«Seja o exemplar da Jornada, que é razão das nossas considerações, apenas uma cópia de um original que se perdeu, o que justifica que o mesmo não venha assinado; seja, todavia, o próprio original que aguardava uma última redacção, que o autor por motivos circunstanciais não teve oportunidade de efectuar; seja ele ainda motivo de um anonimato, para escapar à sanha filipina, pelo seu portuguesismo, como mesmo à da Companhia, que tão copiosamente ataca - o que parece incontroverso é a nossa convicção de tratar-se de um trabalho lúcido, que abre perspectivas sobre um período histórico ainda bastante confuso.» (p. XL)

Entre as múltiplas hipóteses de autoria das crónicas de D. Sebastião e do cardeal D. Henrique há que considerar, devido a várias similitudes, a de Fernando de Góis Loureiro, que foi moço de câmara de D. Sebastião e, enquanto jovem fidalgo, acompanhou o rei na fatal expedição de 1578. De regresso ao país, foi ordenado presbítero e permaneceu depois largos anos em Roma. 

«Segundo o autor da Biblioteca Lusitana, "por ser muito versado na História política e militar deste Reino escreveo e dedicou a D. Vicente Gonzaga de Austria, Duque de Mantua e Monserrato, Breve Summa y Relacion de las vidas, y hechos de los Reys de Portugal y cosas sucedidas en aquel Reyno desde su principio hasta el ano de 1595. Mantua, 1596, e Tratado de la Jornada de Africa. M.S.". Na dedicatória com que abre a Breve Svmma, demonstra Góis Loureiro a sua formação humanística. Cita, entre outros, Plínio, Plutarco, Diodoro.» (p. XLI)

O prefaciador aduz depois vários argumentos tendentes a provar que o autor da Crónica é realmente Góis Loureiro, em especial pelo paralelismo que existe entre esta e a Breve Svmma, cujo capítulo XVII é dedicado a D. Sebastião. 

«O facto de a Jornada Del-Rei D. Sebastião abranger, em vários capítulos, o governo do cardeal-rei nada tem de extraordinário. Significa apenas que o autor o englobou na matéria da Jornada, não só por ele ser o coroamento natural desse episódio infeliz, que foi a expedição a África, como ainda pela necessidade de dar conta aos leitores, e sobretudo aos vindouros, de toda a problemática com que se encerra o percurso histórico da dinastia de Aviz.» (p. XLV)

Analisando o conteúdo da obra, Mascarenhas Loureiro escreve: 

«Traduz ainda manifestações do despotismo de D. Sebastião a asserção do autor, no mesmo capítulo, quando refere "e tudo corria por seu appetite e uontade".

Essa faceta despótica da personalidade do monarca fica expressivamente marcada no capítulo XVIII da Jornada quando el-rei reúne os grandes do Reino, que em Lisboa se encontravam, para lhes comunicar a sua disposição de passar a África, com vista à conquista de Larache, "sem se submeter ao parecer dos que estauam prezentes". E aí o autor mais uma vez se insurge contra a atitude adulatória dos que assistiam a essa reunião, nobres e prelados, que no final se chegaram a D. Sebastião "a lhe beiar a maõ como que recebiam merce de os leuar ao Martirio".» (p. XLIX)

«Toda a obra, que vem servindo de interesse ao nosso estudo, é entretanto dominada, de princípio a fim, pela ideia de que os infortúnios pátrios são a expiação dos erros cometidos. A concepção providencialista, que faz intervir no jogo dos acontecimentos históricos o factor divino, é concepção dominante no tempo, encontrando-se em numerosos cronistas e escritores dos séculos XVI e XVII.» (p. L)

Continuando com a análise da obra, o prefaciador escreve: «Desta forma e, em conclusão, segundo o autor da Jornada, ao rei faltaram-lhe os homens entendidos no sentido preciso do termo, concebidos na sua dimensão própria.» (p. LVIII)

«A Iornada, ou antes a Jornada, como decidimos chamá-la, é um documento da mais alta importância para a análise do período sebástico e pós-sebástico.  E deverá ser-lhe reservado especial lugar na historiografia dos fins do século XVI.» (p. LIX)

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

UMA FALSA CRÓNICA DE D. SEBASTIÃO

Convenhamos que a Crónica não é falsa, o autor sim.

A presente Chronica d'El-Rei D. Sebastião foi atribuída por Alexandre Herculano a Fr. Bernardo da Cruz, sendo muito citada nos livros que tratam da figura do "Desejado". O próprio Herculano, no Prólogo, se refere ao monge como tendo vivido na segunda metade do século dezasseis, acrescentando que «embarcou-se na frota que transportou a África El-Rei D. Sebastião e o seu exército».

Na prossecução do estudo que venho fazendo sobre D. Sebastião, interessou-me saber quem foi Fr. Bernardo da Cruz. E numa primeira pesquisa, com recurso á Wikipédia, constatei que o monge viveu de 1505 a 1565, o que torna impossível que tivesse escrito esta Chronica, que começa com os últimos tempos do reinado de D. João III e se prolonga até à batalha de Alcácer-Quibir e ao reinado do Cardeal D. Henrique. Tendo morrido em 1565, Fr. Bernardo não podia ter sido testemunha desses eventos. 

Tendo à mão a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, por onde todos estudámos, procurei a figura de Fr. Bernardo da Cruz, para saber algo sobre a sua obra. Nenhuma "entrada" particular mas uma nota de rodapé: «Queirós Veloso, em Estudos Históricos do Século XVI, Lisboa, 1950, demonstrou que a crónica atribuída por Alexandre Herculano e A. A. Costa Paiva a Bernardo da Cruz (edição 1837, reeditada em 1903), não pode ser deste autor, e atribui-a a António de Vaena. Francisco Rodrigues, in Brotéria, 1926, vol. III, fasc. IV, págs. 193-195, mostrou a inconsistência da atribuição desta obra a Amador Rebelo, feita por Ferreira Serpa na edição incorrecta de 1925, Porto. Queirós Veloso descobriu capítulos que continuam esta crónica, ficando a saber-se, deste modo, que ela abrangia provavelmente todo o reinado de D. Henrique. A Relação da vida de El-Rei D. Sebastião de Amador Rebelo acha-se inédita na Torre do Tombo, códice 1745 da Livraria» (p. 471)

As grandes figuras da nossa literatura, como Alexandre Herculano, também se enganam.

Mas quem foi António de Vaena? Continuando a minha pesquisa, apurei que Augusto Ferreira do Amaral, que foi presidente da Causa Monárquica, dirigente do Partido Popular Monárquico e ministro do VII Governo Constitucional,  publicou em 1982 um livro intitulado António de Vaena e a Crónica d'El-Rei D. Sebastião. Esta obra não se encontra disponível no mercado e não tive oportunidade de procurá-la na Biblioteca Nacional, onde certamente estará depositado um exemplar.

Curiosamente, no Prólogo o próprio Herculano alude a António de Vaena, mas recusando-lhe a autoria desta Crónica: «Escreveu também António de Vaena uma Chronica de D. Sebastião. Este, pelo tempo e circumstancias em que se achou, poder-se-hia crêr auctor do manuscripto: mas cumpre fazer algumas reflexões sobre o que Barbosa traz acerca d'elle na Bibliotheca Lusitana. Nesta obra affirma que Vaena escrevera uma Chronica de que elle possuia a copia, tirada do original que se conservava na livraria do Conde de Vimieiro: ora o Conde da Ericeira, que, em diversas sessões da Academia de Historia Portugueza, deu conta dos manuscriptos mais importantes d'aquella livraria, falla sómente de uma historia do cerco de Mazagão, a que vinham appensas algumas relações dos acontecimentos do reino por aquelle tempo, a qual obra era escripta por Antonio de Vaena, e nada mais diz d'este auctor: assim podemos ter por averiguado que esta era a obra que possuia o Abbade de Sever. E dado que assim seja, é certo que a obra de Vaena não se contem no manuscripto do Porto; porque n'este não se trata do cerco de Mazagão. 

Da Relação da vida d'El-Rei D. Sebastião pelo P. Amador Rebello vimos nós uma copia, que tambem existe na Bibliotheca do Porto. É obra mui succinta, como diz Barbosa; e por nossos proprios olhos nos certificamos de que nada tinha com o manuscripto de Fr. Bernardo da Cruz.

Fr. Manoel dos Santos cita muitas vezes na Historia Sebastica certa Memoria ou Relação coétanea, de que transcreve pedaços inteiros: estes pedaços são exactamente tirados da Chronica inedita que existe na Bibliotheca do Porto. Era esta uma das mais poderosas razões que tinhamos para crêr o mabuscripto de auctor diferente dos já apontados; porque, a ser de algum d'elles, te-lo-hia dito aquelle erudito cisterciense, ou pelo menos formado acerca d'isso algumas conjecturas: as reflexões que acima fazemos nos confirmaram inteiramente nesta opinião.

Parece que foi fado avesso de Fr. Bernardo da Cruz o servirem aos outros suas lucubrações, sem que d'elle ninguem faça menção, e conservando-se o seu nome até os fins do seculo passado em total esquecimento. Não foi somente Santos que se aproveitou do que elle escreveo; tambem Faria e Sousa o copiou, sem d'elle dizer uma unica palavra. Esta anecdota trouxe-a a lume o Bispo de Beja, e nós conferindo-a achámos que era verdadeira.

Notaremos em ultimo logar, que havendo apontado Faria, no principio da sua Asia, as fontes d'onde tirara o que escreveu, traz entre outros manuscriptos, notado um, que tratava d'El-Rei D. Sebastião, o qual diz lhe communicára o Abbade João Salgado de Araujo, e que se atribuia a Pedro de Mariz. Foi por este ut aiunt, que Barbosa ajuntou á lista dos escriptos de Mariz uma Chronica de D. Sebastião. Ora, não apparecendo no Apparato de Faria outro algum escriptor duvidoso, pertencente a essa epocha, pode-se colligir sem temeridade, que era a obra de Fr. Bernardo da Cruz, a que viu Faria e Sousa, e que por ventura não existe a que se attribue a Mariz.» (pp. 13-14-15)

A presente Crónica contém 113 capítulos, em dois volumes. O primeiro intitula-se "Da prosperidade dos reinos de Portugal em tempos d'El-Rei D. João terceiro"; o último "Como El-Rei mandou citar por carta de Editos ao senhor D. Antonio, e da falla que D. Francisco Pereira lhe fez". E abrange, como se disse,  o período final do reinado de D. João III, o reinado de D. Sebastião e o começo do reinado do Cardeal D. Henrique.

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Frei Bernardo da Cruz (1505-1565) foi um frade dominicano e prelado português, que chegou a ser nomeado bispo de São Tomé, embora nunca tenha ocupado a diocese. Nascido em Braga, foi enviado de D. João III a Roma e comissário do Santo Ofício por nomeação do Cardeal-Infante D. Henrique. Exerceu também as funções de reitor da Universidade de Coimbra.

 

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CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

CATÁLOGO TEMÁTICO
DE CRÓNICAS E RELATOS
SOBRE D. SEBASTIÃO

Séculos XVI e XVII

Tradições manuscritas

Bibliotecas portuguesas

Índice
 
Frei Bernardo da Cruz? - Crónica de D. Sebastião  p. 3
P. Amador Rebelo - Relação da vida d’elrey D. Sebastião  p. 9
Anónimo - Sumario de todas as cousas succedidas em Berberia/História da Jornada del Rey D. Sebastião a
Africa  p. 13
Fernando de Góis Loureiro - Jornada del Rey D. Sebastião à África  p. 15
Anónimo - Jornada de África del Rey D. Sebastião  p. 17
Anónimo - Jornada de África del Rey D. Sebastião escrita por um Homem Africano  p. 18
Miguel Pereira - Crónica de El Rey Dom Sebastiam  p. 19
Anónimo - Relação do princípio do governo de D. Sebastião  p. 20
Anónimo - [Relação da infeliz jornada d'El Rei D. Sebastião]  p. 21
Anónimo - Vida d’el-rei D. Sebastião  p. 22
Pedro Rodrigues Soares - Memorial  p. 23
Manuel Teixeira - Sumario breve das coisas que vio e alcansou saber manoel teix.ra da vida del Rey d.
Sebastião  p. 24
Anónimo - Relações ao Dr. Paulo Afonso  p. 25
Anónimo - Relação muito certa do apparato da armada para Africa o anno de 78   p. 27


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

D. SEBASTIÃO (A REABILITAÇÃO ?!?)

Em 1941, Costa Brochado (célebre por dele existir uma icónica fotografia com Fernando Pessoa à mesa do Martinho da Arcada), publicou D. Sebastião, o Desejado, livro onde pretende "reabilitar" a figura do rei D. Sebastião.

Denuncia o autor o "processo de El-Rei", levado a cabo por escritores do século XIX, e também no século XX, a começar por Manuel Bento de Sousa (O Doutor Minerva), José Agostinho de Macedo (Os Sebastianistas) ou Camilo Castelo Branco (Narcóticos), ou ainda Júlio Dantas (Outros Tempos e a Arte de Amar), Sampaio Bruno (O Encoberto), António Sérgio (Ensaios), etc. Considera Costa Brochado que nenhum deles conseguiu penetrar na personalidade do rei, e recorre a Alexis Carrel (O Homem, esse desconhecido) para justificar a sua afirmação.

Na óptica de Costa Brochado, D. Sebastião foi um monarca exemplar, dotado das mais altas virtudes. Rejeita as teorias da epilepsia, do carácter da doença do rei, da sua aversão ao casamento (o que seria apenas motivado pelo alto conceito em que tinha a castidade). Longe de ser um alucinado seria um espírito excepcionalmente dotado com uma aguda visão dos perigos da moirama. O pudor do rei ia ao ponto de jamais se ter despido na presença dos criados de quarto, que nunca lhe viam sequer um pé. Quis mesmo manter-se casto a vida inteira e só admitiu casar-se perante a insistência do seu confessor que lhe demonstrou a necessidade de gerar herdeiros para o trono. Louva o rei por se afastar da vida desregrada da gente do seu tempo (e ainda mais do nosso) e denúncia «o miserável preconceito de que a castidade é uma anomalia patológica» acrescentando que «Hoje sabe-se, pelos condutos das ciências, que o amor não é mais que um meio de que a natureza se serve para realizar a propagação da espécie, e registam-se até casos em que o macho, depois de ter fecundado a fêmea, e portanto tornado inútil, paga com a própria vida o fatalismo do seu género!» (pp. 49-50) E mais, citando o Dr. Roux: «Porque esse "prazer não é mais do que o meio de que a Espécie se serve para atingir os seus fins, a venda que ela põe nos olhos do indivíduo para o forçar ao sacrifício".» (p. 50)

O autor insiste no desejo que D. Sebastião tinha de casar-se e que os pretensos casamentos foram inutilizados por Filipe II. Refere-se a cada passo à existência e confronto dos dois partidos, o "partido português" e o "partido castelhano", este chefiado por D. Catarina, que seria uma fiel executante da política de Carlos Quinto e que nunca aprendeu a língua portuguesa. Trata da questão das regências do Reino e do problema da sucessão. Menciona o entusiasmo dos portugueses com a expedição a África e louva o sentido de Estado de D. Sebastião, a quem não cessa de atribuir as mais notáveis características de personalidade, uma invulgar inteligência, uma cultura excepcional. 

Na descrição geral dos acontecimentos, Costa Brochado segue as obras dos autores que o precederam, mas interpreta sempre os factos na sua óptica da defesa da pessoa do rei, nas culpas da Casa de Áustria e das traições de que foi vítima. Os irmãos Câmara merecem os maiores louvores e a batalha de Alcácer-Quibir foi militarmente ganha pelos portugueses, devendo-se a derrota apenas a um pormenor no momento final.

Mais do que uma interpretação muito pessoal da História, o autor chega a distorcer a mesma para suportar as conclusões que apresenta. O seu livro é uma apologia do "Desejado", aureolado de qualidades infirmadas pelas fontes históricas tradicionalmente aceites. Sabemos hoje, e sabia-se já em 1941, data da publicação do livro, que muito pouco ou nada ocorreu como Costa Brochado desejaria que tivesse ocorrido. 

Não sendo a História uma ciência exacta, este livro todavia exagera os limites permitidos pela razão e pelo bom senso. Alcácer-Quibir não é uma data gloriosa da nossa História, foi uma tragédia nacional.