sábado, 26 de outubro de 2024

D. SEBASTIÃO E A CONSANGUINIDADE

No seu livro El-Rei Dom Sebastião - Ensaio Biológico, de 1972, Joaquim de Moura-Relvas ocupa-se dos problemas de consanguinidade, dos antecedentes hereditários de D. Sebastião e dos seus aspectos psíquicos e somáticos.

Começa o autor por se referir às doenças hereditárias e ao papel dos genes, que podem ser recessivos ou dominantes. E também letais ou subletais. Não cabe aqui essa discriminação, mas pode ler-se na página 6: «Duma massa enorme de observações resulta que a consanguinidade não produz taras, mas também não cria qualidades.»

Refere depois o autor a endogamia da Casa de Áustria e da Casa de Avis. Não vamos desenvolver a árvore genealógica de D. Sebastião mas recordar apenas a parentela mais próxima. O rei era filho do infante D. João Manuel, que por sua vez era filho de D. João III e de D. Catarina de Áustria, e da infanta D. Joana, que era filha de Carlos Quinto e de D. Isabel de Portugal. D. Catarina de Áustria era irmã de Carlos Quinto. D. João III e D. Isabel de Portugal eram filhos de D. Manuel I e de Maria de Aragão e Castela, esta filha de Isabel a Católica, que era mãe de Joana a Louca e avó de Carlos Quinto e de D. Catarina de Áustria. A infanta D. Joana era irmã de Filipe II (que era tio de D. Sebastião) casado com D. Maria Manuela, filha de D. João III. O infante D. Carlos (que Schiller imortalizou romanticamente num célebre poema dramático) era filho de Filipe II e de D. Maria Manuela e primo de D. Sebastião.

Podíamos recuar várias gerações mas fiquemos por aqui. Houve sempre a preocupação de casar os príncipes portugueses com princesas espanholas (mesmo quando ainda não havia Espanha, mas tão só Castela e Aragão) e essa política atingiu o máximo expoente no tempo de Carlos Quinto.

À intensidade da endogamia correspondeu a intensidade da mortalidade infantil. Não vale a pena mencionar aqui o número imenso de príncipes nado-mortos ou mortos em tenra idade. 

Conclusões do autor (p. 15):

«1) A consanguinidade não pode ser afastada como elemento etiológico da elevada mortalidade infantil registada. É empiricamente mais provável que na endogamia existam genes letais e subletais idênticos, comuns aos dois progenitores, do que exogamicamente. 

2) A fronte olímpica, patente em D. João III. no retrato de Viena, no retrato de D. Isabel de Portugal (filha de D. João I e duquesa de Borgonha pelo seu casamento com Filipe o Bom), no Museu de Gand, e na gravura de D. Sebastião, da autoria de Jerónimo Cock, indicia heredo-sífilis. 

3) A higiene infantil não existia na época a que nos reportamos.»

Prosseguindo com os antecedentes hereditários, Joaquim de Moura-Relvas escreve: «São bem conhecidos o temperamento exaltado de D. Pedro I de Portugal, as crises depressivas do nosso rei D. Duarte, o temperamento exaltado de seu filho o Condestável D. Fernando, o tipo psíquico ciclóide de seu outro filho D. Afonso V, o temperamento amável, bondoso, de D. João Manuel (pai de D. Sebastião), o temperamento exaltado de D. Sebastião, a lembrar o do trisavô, Condestável D. Fernando, a esquizofrenia de Joana a Louca, o esquizoidismo de seu bisneto o príncipe D. Carlos (filho de Filipe II e da nossa infanta D. Maria Manuela), etc. O caso da infanta Isabel, tia de D. Manuel I, filha do infante D. João, e rainha de Castela pelo seu casamento com D. João II de Castela, é tratado por Pfandl em termos inaceitáveis, como veremos.»

O autor continua a sua dissertação sobre os males destas famílias, destacando a gota e a diabetes de Carlos Quinto, a gota de Filipe II, o esquizoidismo mas não esquizofrenia de D. Sebastião, que era também muito provavelmente diabético e mesmo epiléptico até certa idade.

Analisando detalhadamente muitos reis e príncipes, o autor chega ao infante D. Carlos e a D. Sebastião, que tinham uma certa parecença fisionómica. Nas páginas 45 a 50, há algumas referências interessantes. D. Carlos, como D. Sebastião, não suportava o vinho. D. Sebastião comia com certa sofreguidão mas também bebia muita água. D. Carlos era um glutão desmedido, com tal bulimia que, mal acabava uma refeição, já estava a pensar na seguinte.

O infante Dom Carlos tinha a cabeça grande, apoiada num corpo pequeno, desajeitado e assimétrico, com ombro direito descaído, perna direita mais curta que a do outro lado, escoliótico, com dificuldade de elocução de certas palavras de modo que aos dezanove anos ainda não pronunciava bem os LL e os RR. 

«Como D. Maria Manuela [mulher de Filipe II] ainda não era núbil à data do casamento e era preciso vir um herdeiro, submeteram-na a toda a casta de purgantes e sangrias, conforme o costume da época. Apesar destes tratamentos bárbaros e contraproducentes, a princesa das Astúrias acabou por engravidar. Com efeito, em 1545, dois anos depois do enlace matrimonial, iniciou-se o trabalho de parto. Parto longo, difícil, prolongado por vários dias. A princesa estava emagrecida, sem forças, exausta. [...] Por fim, lá saiu um bébé exíguo, que nem forças tinha para chorar, com os olhos teimosamente fechados. [...] Assim nasceu D. Carlos, débil, ologofrénico e hemiparético. Quanto à mãe, infectada pelas sucessivas manipulações das parteiras durante vários dias, morreu de infecção puerperal no próprio dia do nascimento do filho.» (p. 47)

«D. Sebastião ora se absorvia no seu idealismo, ora se tornava muito mexido sob o império da hiperexcitabilidade e queria ser sempre o primeiro em tudo o que respeitasse a exercícios físicos, fosse nas touradas ou nos torneios. A vida sedentária da capital era-lhe, portanto, enfadonha.» (p. 62) 

«Jerónimo de Mendonça afirma que D. Sebastião "era um príncipe em que nunca se conheceu nem quase se suspeitou vício algum, tanto que por sua pureza, não lhe podendo dizer outra coisa, se lhe arguia ser algo tanto afeiçoado à montaria, cujo exercício, além de ser muito proveitoso a qualquer Príncipe para se exercitar nas coisas da Guerra, nunca lhe tirou as horas de despacho e de governo.» (p. 62)

Sobre a irritabilidade do monarca, conta-se que na conferência de Guadalupe, numa das reuniões em que Filipe II estava acompanhado pelo duque de Alba, e tendo-se este mostrado algo desfavorável às loucas fantasias da expedição a África, D. Sebastião lhe perguntou desabridamente "de que cor é o medo" ao que o general lhe terá respondido "da cor da prudência".

«No dia de S. João, em 24 de Junho de 1578, embarca D. Sebastião para a fatídica jornada. Uma multidão imensa o aclamou com entusiasmo inaudito. Da Junta Governativa para substituir o Rei na sua ausência não faz parte o Cardeal D. Henrique, que tinha ficado regente na primeira jornada de África. Diz o Autor Anónimo da Carta a um abade da Beira: "Os que ficaram governando em Portugal são: o Arcebispo de Lisboa D. João de Almeida, D. João de Mascarenhas, Francisco de Sá de Meneses, Pedro de Alcáçova, D. João Telo, Diogo Lopes de Sousa. Fica o sinete real em forma, fechado em uma arca com tantas chaves quantos são os governadores, e cada um tem a sua; quando querem assinar algum papel, vão todos à arca com grande cerimónia e tiram o sinete e o arcebispo imprime".» (p. 78)

«A maioria dos que partem vai alegre e confiante, mas os do outro partido, agora chefiado pelo Cardeal-Infante, depois da morte de D. Catarina, estão preocupados e muito deprimidos. D. Henrique, a expulsar as suas fezes diarreicas sanguinolentas de tuberculoso intestinal, é o símbolo do pessimismo do seu partido, vendo a Nação empobrecida e agora ainda mais, com as despesas militares. Só via desgraças para a Nação.» (p. 79)

O autor procede depois à descrição dos aspectos da batalha assinalados nas várias biografias.

«A morfologia de D. Sebastião tem sido tratada de modo incerto, sem bases científicas, por vezes embaciada pela emotividade e até pela paixão. [...] O material que temos á nossa disposição para análise positiva e estável consta duma gravura de J. Cock datada de 1561 e representando portanto D. Sebastião aos 7 anos, dum retrato de Cristóvão de Morais, datado de 1565, existente no Mosteiro das Descalzas Reales de Madrid (fundada por D. Joana de Castela, mãe de D. Sebastião), representando o monarca aos 11 anos e o conhecido retrato do Museu Nacional de Arte Antiga, da autoria do mesmo pintor, mostrando o rei por volta dos 17-18 anos.» (p. 99) [Segundo o autor, a gravura de Cock pertence à colecção do conde de Penha Longa]

Sabemos que D. Sebastião vivia obcecado pela castidade e pelo temor do pecado sexual, segundo dizem os livros. Mas o autor afirma várias vezes nesta obra que o rei não tinha defeito e tinha até órgãos sexuais bastante desenvolvidos, como se nota nos retratos. Apenas nos retratos pois, segundo é aceite, jamais ele se despiu diante de alguém, com uma possível excepção para os médicos, e mesmo assim com reservas.

«Se D. Sebastião fosse casto por defeito constitucional, a sua personalidade teria sido totalmente diferente. Uma insuficiência, mesmo parcial, das glândulas genitais conduz ao seguinte quadro clinico: membros inferiores excessivamente longos; órgãos sexuais pouco desenvolvidos; cabelos abundantes; pele fina; palidez; músculos hipotróficos e hipotónicos; apatia; depressão neuropsíquica; tendência para o suicídio; inteligência conservada. Muito rijo de músculos, de boa cor, com órgãos genitais externos desenvolvidos e excitação neuropsíquica bem marcada, D. Sebastião não tinha sinais somáticos nem psíquicos de hipogenitalismo. Se fosse um hipogenital não pediria aos padres que rezassem para se conservar casto e ter-se-ia limitado a exprimir o desejo de propagar a religião.» (p. 106) O autor insiste também que D. Sebastião não era misógino nem insensível aos encantos femininos, o que contradiz as afirmações de quase todos os biógrafos sobre a misoginia do rei, baseadas em episódios da sua vida.

Ainda: «Está averiguado que D. Sebastião foi portador, a partir dos 11 anos, de um corrimento uretral, com fases de agravamento provocadas por excesso de alimentação e de exercícios físicos, em especial de equitação, e com fases de remissão, desde que se moderasse no comer e se abstivesse de exercícios físicos. Não é plausível que fosse uma uretrite blenorrágica, porque a prática da equitação agravava somente o corrimento em outras complicações ao passo que, tratando-se de uma blenorragia esta agravar-se-ia com orquite e outras perturbações que nunca foram referidas. Tratar-se-ia portante duma uretrite banal, que se tornou crónica por se instalar num terreno diabético. Mas os cronistas e documentos da época falam também de outras perdas, descritas em termos de se dever pensar m espermatorreia. Como D. Sebastião foi fisicamente muito precoce, é provável que aos 11 anos já fosse viril e nestas condições obrigava a natureza a explodir sob a forma de poluções que não sendo salutares, também não prejudicam a saúde, em regra. Todavia, Marañon considera que a espermatorreia foi prejudicial a D. Sebastião: "Padecia desde muy temprano de uma rebeldíssima espermatorreia que le originaba vahidos, gran flojedad en las piernas y otos transtornos." Em conclusão, D. Sebastião porque era casto e ardente, tinha espermatorreia e, porque era diabético, tornou cronica uma uretrite banal.» (p. 108)

Não refere o autor que a blenorragia é uma infecção sexualmente transmissível, apenas contagiada por contactos sexuais. Admiti-la, significaria que o rei tivesse relações sexuais com mulheres (que ele abominava) ou com homens, o que sendo possível (o professor Harold Johnson afirma-o) se afigura um tanto improvável, uma vez que o monarca era amplamente escrutinado. É certo que D. Sebastião se afastava por vezes largo tempo do convívio dos seus próximos, em caçadas ou passeios solitários, como acontecia muitas vezes quando se encontrava em Sintra, ou mesmo em Almeirim. Não seria impossível um contacto ocasional, mas nunca o saberemos.

Neste livro, além de alguma confusão de nomes, constatam-se afirmações precipitadas, contraditórias e até erradas que o leitor verificará. Há, por outro lado, uma preocupação de "normalizar" D. Sebastião mesmo nos aspectos mais controversos da sua vida. Dos muitos estudos sobre a sua figura constata-se que o rei era tudo menos uma pessoa "normal" mesmo para os padrões da época. A satisfação das suas vontades prejudicou gravemente o reino, terminando no desastre de Alcácer-Quibir. Depois da batalha, o país ficou exangue, não só de riqueza mas de homens. E perdeu-se, praticamente, a independência, ainda que Portugal nunca tivesse sido absorvido por Espanha. Filipe II foi cuidadoso nesse aspecto, os seus descendentes menos, caso contrário talvez não tivesse havido 1640.

Creio que foram aqui anotados alguns dos aspectos mais significativos do livro de Joaquim Moura-Relvas.


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