quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O ÚLTIMO AMOR DE MARGUERITE YOURCENAR

Acabou de ser publicado um interessante livro de Christophe Bigot, Un autre m'attend ailleurs, consagrado aos últimos anos de Marguerite Yourcenar, desde os últimos tempos de vida de Grace Frick, sua companheira e tradutora, até à morte da escritora, isto é, durante o período em que conviveu com a sua última paixão, o norte-americano Jerry Wilson que, apesar da imensa diferença de idades, a precedeu no túmulo.

O autor descreve esses anos, apaixonados mas também tumultuosos, seguindo os dados biográficos mas recriando as situações, já que de um romance se trata. E dá-nos uma visão, que aliás já conhecíamos, de aspectos da vida de Yourcenar que só com esforço encaixam na ideia concebida da austera académica (a primeira mulher a ingressar na Academia Francesa) com um perfil de estátua clássica. Mas a escritora conseguiu sempre conciliar a sua predisposição transgressora com um comportamento convencional que as circunstâncias lhe impunham.

Não subsiste qualquer dúvida de que Marguerite Yourcenar foi sempre uma personalidade complexa. Tendencialmente lésbica, mas com intermitências heterossexuais, viveu com Grace Frick durante quarenta anos, teve numerosas aventuras no feminino, mas também se apaixonou por alguns homens, como André Fraigneau (seu editor na Grasset) que repudiou qualquer aproximação, André Embirikos e, finalmente, Jerry Wilson, todos homossexuais, sendo que é possível ter havido com este último contacto sexual pelo menos uma ou duas vezes, ainda que só possamos saber pormenores em 2037, quando forem disponibilizados os arquivos de Yourcenar, conservados em Harvard.

A escritora (então com 76 anos) conheceu Jerry Wilson (46 anos mais novo) em 1978, por acaso, mas ele insinuou-se no seu espírito e tornou-se-lhe indispensável. Passou a exercer funções de secretário particular e acompanhou Yourcenar nas numerosas visitas que esta realizou na Europa, na Ásia, em África, depois da morte de Grace Frick. A relação com Wilson degradou-se com o tempo, devido aos seus exageros de álcool, de droga, de aventuras homossexuais, chegando a maltratar e, inclusive, a agredir a escritora. 

Jerry Wilson morreu em Paris, vítima de sida, em 1986. Marguerite Yourcenar sobreviveu-lhe, mas morreu em 1987, em Petite Plaisance, a sua casa no Maine.

Este livro de Christophe Bigot, de que aqui fazemos sumária referência, é duplamente interessante, quer pela forma como recria, com verossimilhança, os últimos anos de Marguerite Yourcenar, em estilo perfeitamente biográfico, quer pela revelação de numerosos aspectos do comportamento da escritora, alguns eventualmente já conhecidos dos especialistas, outros certamente inéditos.

Deve ler-se!

* * *

N.B.: "O amor tem razões que a razão desconhece", mas permita-se-me uma nota pessoal: é para mim incompreensível que Marguerite Yourcenar se tenha apaixonado por Jerry Wilson, que não só psiquicamente mas também fisicamente se me afigura nos antípodas do gosto da escritora! Daí a ser o seu Antinous americano, como tem sido insinuado, vai uma incomensurável distância.


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