quinta-feira, 30 de maio de 2024

CARAVAGGIO REVISITADO

A vida de Michelangelo Merisi, dito o Caravaggio (1571-1610), tem inspirado numerosos escritores e cineastas.

Li agora La Course à l'abîme, de Dominique Fernandez, que comprara em 2002, quando o livro foi publicado. Trata-se de um romance (talvez não caiba na designação de romance histórico) em que o autor traça uma biografia imaginária (ainda que respeitando os factos essenciais) de Caravaggio, sob a forma de uma autobiografia do pintor, até às vésperas da sua morte, obviamente.

Homem de uma erudição imensa, cultivando todos os géneros literários, dotado de notável sensibilidade, crítico musical e historiador da arte, profundo conhecedor da Itália e da Rússia, Dominique Fernandez (n. 1929), completará 95 anos no próximo dia 25 de Agosto. Em 1974 obteve o Prémio Médicis, em 1982 o Prémio Goncourt e em 2009 o Prémio François Mauriac. Em 2007 foi eleito para a Academia Francesa, da qual se tornou o decano, em 5 de Agosto de 2023, por morte de Hélène Carrère d'Encausse. A sua obra conta mais de 70 títulos.

Abertamente homossexual, esteve casado entre 1961 e 1971 com Diane de Margerie, de quem tem dois filhos, Laëtitia Fernandez e Ramon Fernandez.

Dominique Fernandez

O livro, de quase 800 páginas, percorre, numa escrita barroca, o itinerário de Caravaggio, semeando estórias inventadas pela imaginação fértil do autor (embora verossímeis) na descrição dos factos reais. Sendo escassa a documentação sobre o "pintor maldito", mesmo assim Dominique Fernandez investigou pormenorizadamente a sociedade do tempo, o que lhe permitiu conferir à narrativa um considerável grau de autenticidade. Também os imensos conhecimentos do autor em História Sagrada e História da Igreja, em vida de santos e mitologia, em pintura e em música, contribuíram para outorgar ao romance um carácter didáctico. 

Ao longo da obra aparecem as personagens da Igreja Católica que, de uma forma ou de outra, protegeram Caravaggio. A começar pelo cardeal Francesco Del Monte e depois pelos cardeais Pietro Aldobrandini, Scipione Borghese, Federico Borromeo, Ascanio Colonna, Odoardo Farnese, Ferdinando Gonzaga ou Benedetto Giustiniani e mesmo os papas Clemente VIII e Paulo V. Ou figuras como monsenhor Maffeo Barberini (mais tarde papa Urbano VIII), o marquês Vincenzo Giustiniani, a marquesa Costanza Colonna Sforza, etc.

O livro dedica especial atenção aos ajudantes, discípulos e amantes de Caravaggio. Especialmente a dois que viveram largo tempo com ele e lhe serviram de modelo para muitos quadros.

Em primeiro lugar Mario Minniti (1577-1640) um rapaz siciliano de 16 anos que conheceu em Roma e posou para várias telas: "Rapaz com um cesto de fruta" (1593), "A Adivinha" (1594), "Os Músicos" (1595), "Rapaz mordido por um lagarto" (1596), "O Tocador de alaúde" (1596), "Baco" (1596), "A Vocação de São Mateus" (1599-1600), "O Martírio de São Mateus" (1599-1600).

O sucessor de Mario foi Francesco Boneri, que Caravaggio abrigou em 1601, tinha o rapaz 12 anos. Boneri, que era tratado pelo diminutivo de Cecco (e ficou conhecido por Cecco del Caravaggio), substituiu Mario, que se afastou do pintor por ciúmes e também porque, na tradição siciliana, pretendia casar-se. Cecco terá nascido por volta de 1589 e desapareceu de circulação em meados dos anos 1620, tendo sido, não obstante o seu feitio insuportável, um razoável pintor. Serviu de modelo para "Amor vincit omnia" (1602), a célebre pintura que se encontra na Gemäldegalerie de Berlim, "Saul I" (1601), "São João Baptista no deserto II" (1602), "O Sacrifício de Isaac II" (1603), "David com a cabeça de Golias II"  (1606), "David com a cabeça de Golias III" (1607). O historiador australiano Peter Robb, indica em M (1998), a sua biografia de Caravaggio, quais os rapazes (e homens e mulheres) que serviram de modelo para as suas pinturas.

Há duas coisas nesta obra que me interpelam. A primeira é  existência em Milão (à época) de uma Igreja de São João Evangelista dos Portugueses, onde Caravaggio, então com 17 ou 18 anos e aprendiz de pintor na loja de Mestre Simone, teria tido, pela primeira vez, relações homossexuais com um rapaz de 25 anos, Matteo, que era já pintor  e seu colega naquela loja. É que, segundo o autor, esta igreja serviria de ponto de encontro da Seita dos Portugueses, ou seja um grupo de homens e rapazes que aí se reuniam e entregavam a práticas sexuais. Mais tarde, viriam a ser todos presos e condenados pela Inquisição. Caravaggio foi também preso mas devido à intercessão da marquesa Colonna ("suserana" da sua aldeia natal), Caravaggio escapou à morte.

A outra interrogação reside no facto de Fernandez chamar Gregorio ao segundo companheiro e modelo de Caravaggio, quando é amplamente sabido que o rapaz se chamava Cecco. Já em 2002, quando o livro foi publicado, a identidade era bem conhecida e certamente não desconhecida do autor. Então, porquê Gregorio em vez de Cecco?

Pode resumir-se assim a vida de Caravaggio: 

1571-1584 - Infância em Caravaggio (Bérgamo).

1584-1595 - Estada em Milão, como aprendiz de pintor, na oficina de Mestre Simone.

1595-1606 - Estada em Roma (incluindo um breve exílio em Génova para onde fugira devido a graves desacatos). Em 1606, mata um sicário, Ranuccio Tomassoni, é condenado à morte pelo Papa e foge para Paliano (a alguns quilómetros a sul de Roma), feudo do príncipe Filippo, sobrinho da marquesa Colonna. Não se encontrando, todavia, em perfeita segurança, parte para Nápoles.

1606-1607 - Estada em Nápoles, aguardando a prometida graça pontifícia, que tarda em chegar.

Alof de Wignacourt, Grão-Mestre da Ordem de Malta (1547, 1601-1622). Encontra-se no Museu do Louvre

1607-1608 - Estada em Malta, para onde se dirigiu com a recomendação do príncipe Fabrizio Sforza Colonna, filho da marquesa e almirante da frota maltesa. Com derrogação de alguns princípios, é feito cavaleiro de Malta pelo Grão-Mestre Alof de Wignacourt (de quem pinta o retrato, acompanhado por um jovem pajem). Em 1608 é preso por gravíssimo delito, nunca explicitado. Segundo a estória de Dominique Fernandez, Caravaggio teria seduzido (ou sido seduzido) pelo pajem do Grão-Mestre (que seria amante deste) e tê-lo-ia raptado, alojando-se ambos inadvertidamente no Albergue da Língua de Castela. Seriam ambos presos. [Segundo um amigo meu, que é cavaleiro da Ordem de Malta, o pajem seria Nicolas de Paris]. Caravaggio consegue evadir-se e ruma numa barcaça para Siracusa, na Sicília.

1608-1609 - Estada em Siracusa, onde os agentes do Grão-Mestre o perseguem.

1609-1610 - Parte para Nápoles, onde o príncipe Luigi Carafa lhe concede alojamento. Continuando a perseguição, e julgando eminente a graça do Papa Paulo V, resolve abandonar a cidade de barco e instalar-se a norte dos Estados Pontifícios à espera do iminente indulto. Está febril e esgotado. É encontrado morto na praia de Porto Ercole (a norte de Roma), devido a doença (ou a assassinato para lhe roubarem algumas pinturas que transportava), sendo o óbito registado  no hospital local em 18 de Julho de 1610. Tinha 38 anos.

A única tela assinada pelo pintor (Michelangelo) é "A Degolação de São João Baptista", que se encontra no Oratório da Co-Catedral de São-João, em La Valetta (Malta).

Registei em meia-dúzia de linhas alguns aspectos da vida do pintor após ter lido o livro de Dominique Fernandez que, sendo ficção, ilustra as obras realmente históricas que já conhecia. A verdadeira biografia de Caravaggio, apesar de desconhecermos muitos factos da sua vida, ocupa largas centenas de páginas.


segunda-feira, 27 de maio de 2024

O MERCADOR DE TCHAIKOWSKY

Revi e reouvi The Merchant of Venice, de André Tchaikowky, numa produção do Festival de Bregenz em 2013, com libretto de John O'Brien, a partir da peça homónima de William Shakespeare.

Importa desde já esclarecer que André Tchaikowsky nada tem a ver com o famoso compositor russo. Trata-se do compositor e pianista polaco Robert Andrzej Krauthammer (1935-1982), mais conhecido por ter legado o seu crânio à Royal Shakespeare Company para ser utilizado na cena de Yorick do Hamlet.

Judeu (e homossexual, segundo o extra do DVD), conseguiu fugir do ghetto de Varsóvia, com papéis falsos sob a identidade de Andrzej Czajkowski, vivendo escondido com a avó até 1945. Emigrou para Inglaterra em 1956, onde viria a morrer prematuramente vítima de cancro. Devem-se-lhe várias peças  musicais, entre as quais dois concertos para piano e a presente ópera, escrita na sua maior parte em 1978. Em 1981 submeteu a obra à English National Opera, sob a presidência de Lord Harewood e a direcção artística de David Pountney, tendo a mesma sido recusada em Março de 1982. Gravemente doente, Tchaikowsky morreria três meses mais tarde, com o desejo de que a ópera fosse levada à cena.

A estreia absoluta teria lugar no Festival de Bregenz em 2013, com a Wiener Symphoniker dirigida por Erik Nielsen e encenação de Keith Werner,  ocorrendo a estreia britânica em 2016, com a Welsh National Opera. 

Admirador de William Shakespeare, Tchaikowsky compôs esta ópera com a intenção de refutar as acusações de anti-semitismo de que é frequentemente alvo o célebre dramaturgo inglês. Não julgo que o tenha conseguido, já que a personagem Shylock evidencia perfeitamente o tipo de usurário que caracterizava os judeus na época isabelina e se prolongou (ainda que em circunstâncias diferentes) até aos nossos dias. No próprio making-of da produção de Bregenz se faz alusão aos Rothschild, a grande família de banqueiros judeus europeus de que Shylock seria uma pré-figuração.

A ideia do compositor seria a de assinalar o contraste (ou semelhança) entre as duas personagens centrais da peça de Shakespeare: António (o mercador), claramente homossexual, e Shylock (o prestamista), realmente judeu, dois tipos de pessoas socialmente excluídas no Renascimento. Sendo Tchaikowsky homossexual e judeu, O Mercador de Veneza servia magnificamente para ilustrar a sua condição de marginal no mundo do seu tempo, ainda que não muito distante do momento actual.

A encenação situa a ópera no século passado e, segundo o propósito do autor (e obviamente o de Shakespeare), a afeição de António por Bassânio não deixa lugar a dúvidas. Tal como a cupidez de Shylock. Curiosamente, há também uma cena de clara ambiguidade sexual entre Pórcia e a sua aia Nerissa. A música é algo estranha, não se enquadrando nas correntes definidas do século XX.


sábado, 25 de maio de 2024

O REGRESSO DA RÚSSIA

Devo ao prof. Manuel Maria Carrilho a indicação deste livro, Russie - Le retour de la puissance, de David Teurtrie, considerado por aquele como essencial para explicar a presente crise internacional.

O livro passou-me despercebido aquando da sua publicação em 2021. É a essa edição que Carrilho se referiu. Ao encomendá-lo agora, verifiquei que foi reeditado (e actualizado) em formato de bolso em 2024. Foi esse exemplar que adquiri.

Trata-se, realmente, de uma obra fundamental para a compreensão da actual situação política. 

O autor começa por proceder a um enquadramento da Rússia no espaço da Eurásia. Analisa o desmoronamento da União Soviética que foi, nas palavras de Vladimir Putin, «a maior catástrofe geopolítica do século XX» e menciona as garantias dadas à Rússia em 1990-1991 de que a NATO nunca se alargaria a Leste, mencionando Helmut Kohl, John Major, François Mitterrand, James Baker, Hans-Dietrich Genscher e Douglas Hurd. Como não houve, nem era natural que houvesse, um tratado entre a NATO e a Rússia, essas garantias foram posteriormente ignoradas, e viriam a ingressar naquela Organização não só os chamados países de Leste mas também a Estónia, a Letónia e a Lituânia que integravam a própria União Soviética. Além disso, a NATO manifestou igualmente o desejo de integrar a Bielorrússia, a Ucrânia, a Moldávia e a Geórgia, o que levou a Rússia a reconhecer a independência da Ossétia do Sul e da Abkhasia. Em 2009, a União Europeia lançou, por proposta da Polónia, a Parceria Oriental com a finalidade de absorver seis países da ex-União Soviética: Bielorrússia (apesar de ser considerada pela UE uma ditadura), Ucrânia, Moldávia, Geórgia, Arménia e Azerbaijão. A Bielorrússia distanciou-se posteriormente desse partenariado.

O diplomata e historiador norte-americano George Kennan, que foi conselheiro do Departamento de Estado e embaixador em Moscovo e em Belgrado (e que chegou a ser, brevemente, encarregado de negócios em Lisboa), escreveu em 1997:

«L'élargissement de l'OTAN serait la plus fatale erreur de la politique américaine depuis la fin de la guerre froide. On peut s'attendre à ce que cette décision attise les tendances nationalistes, anti-occidentales et militaristes de l'opinion publique russe; qu'elle relance une atmosphère de guerre froide dans les relations Est-Ouest et oriente la politique étrangère russe dans une direction qui ne correspondra vraiment pas à nos souhaits.» (pp. 196-7)

Palavras proféticas!

Como toda a gente sabe, a política desastrada de glasnost e perestroïka empreendida por Mikhail Gorbatchov conduziu ao fim da União Soviética em 1991. A presidência da Rússia, exercida por Boris Ieltsin de 1991 a 1999, constituiu um período de desagregação do país, sentido vista pelos seus cidadãos como uma humilhação. As conquistas sociais obtidas no tempo da URSS esvaíram-se e os russos enfrentaram uma situação de calamidade. Nem a aquisição de algumas liberdades formais compensaram o fim dos benefícios alcançados progressivamente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Sem habitação, saúde, educação, transportes praticamente grátis, foi imenso o êxodo de russos (e também de cidadãos das ex-repúblicas soviéticas, sem esquecer os oriundos dos países de Leste) para o Ocidente. E não saíram para procurar a "liberdade", que então já tinham, mas sim para obter o "pão". 

O período de namoro de Ieltsin com o Ocidente, cujo governo foi o mais pró-ocidental da história da Rússia, teve consequências dramáticas. Escreve o autor: «C'est à cette époque que la politique libérale et monétariste suggérée par les conseillers économiques venus des États-Unis et imposée par le FMI a été appliquée à la lettre par le gouvernement russe. La libéralisation brutale et désordonnée de l'économie selon la formule de la "thérapie de choc" a conduit à un effondrement économique et à une catastrophe sociale. » (p.193)

Uma Rússia fraca não conseguiu opor-se ao desmembramento da Jugoslávia, ao bombardeamento da Sérvia e à sua fragmentação em 1999, com a posterior independência do Kosovo. Estive em Belgrado em 2000 e recordo-me bem de um jovem sérvio que me acompanhou na visita me ter mostrado, no Parque Kelemegdan, debruçado sobre a confluência dos rios Sava e Danúbio, o Monumento de Gratidão à França coberto de crepes. E de dizer que não se admirava da atitude dos Estados Unidos, mas que nunca os sérvios, tradicionais aliados da França, supuseram que esta os fosse bombardear. Devo acrescentar que tal decisão inconcebível da NATO (já que a ONU, em violação do direito internacional, não foi consultada) se deveu especialmente ao ultimato da secretária de Estado americana, Madeleine Albright na Conferência de Rambouillet, em 1999.

«Non seulement l'Alliance s'élargit, mais sa première grande décision après l'élargissement est d'entrer en guerre contre la Serbie, ce qui transforme l'OTAN d'un bloc défensif en une alliance offensive. Pour les pays de la région, le message est clair: tout état ne se soumettant pas à la volonté occidentale est susceptible d'en subir les conséquences les plus graves.» (p. 195)

A mensagem para a Rússia não podia ser mais clara: a ideia da "Casa Comum Europeia" de Mikhail Gorbatchov estava morta porque era contrária à dominação americana da Europa.

Também Michael Mandelbaum, director do American Foreign Policy Program da Universidade Johns Hopkins, escrevera em 1997 num ensaio intitulado L'expansion de l'OTAN: un pont vers le XIXe siècle, que o alargamento conduziria ao regresso «de la rivalité entre grandes puissances, des alliances changeantes et d'un équilibre militaire non réglementé. [...] le futur s'avérerait être une version d'un passé lointain pratiquement oublié.» (p. 197)

Também a Rússia, fragilizada, não pôde opor-se ao ataque anglo-americano ao Iraque em 2003, decidido fora do âmbito das Nações Unidas, com a oposição da França e da Alemanha e sob o pretexto (falso) da existência de armas de destruição maciça. Deve recordar-se que o inspector de armas da ONU no Iraque, David Kelly, que negara a existência dessas armas, apareceu entretanto "suicidado" perto de sua casa. O parlamentar britânico Norman Baker escreveu posteriormente um livro, The strange death of David Kelly, onde desenvolve o assunto, tendo ficado a impressão de que o cientista tinha sido mandado assassinar por Tony Blair.

No caso da Síria a situação foi já diferente. Tendo o Estado Islâmico (Daesh ou ISIS), criado na sequência da invasão do Iraque, atacado o regime sírio, em conjunto com uma "Oposição Democrática" apoiada pelos Estado Unidos e a União Europeia, a partir de 2011, na sequência das chamadas Primaveras Árabes, a Rússia teve já possibilidades de se opor a esta manobra, apoiando o governo de Bashar al-Assad.

A eleição de Vladimir Vladimirovitch Putin em 2000, e a sua permanência no poder até ao momento, permitiu à Rússia reabilitar progressivamente a sua economia e reequipar-se militarmente, ao mesmo tempo que foram lançadas iniciativas para recuperar lentamente o estado social aniquilado pelo desmoronamento da União Soviética.

Neste livro, o autor dedica numerosas páginas à economia russa em todos os seus domínios, nomeadamente no campo da energia, à substituição das importações e à desdolarização e independência financeira. Analisa o impacto das sanções e a destruição do Nord Stream.

No que respeita à invasão da Ucrânia, é repetido o que já conhecemos e que Emmanuel Todd descreveu no seu recente livro La Défaite de l'Occident. Um progressivamente afastamento de Kiev em relação à Rússia, a sua hostilidade com os ucranianos de Leste (Donbass), a "revolução laranja" de 2004 que levou à presidência Viktor Yuschchenko, a eleição de Viktor Yanukovitch em 2010, o golpe de Estado de Maidan, em 2014, com a implicação directa da subsecretária de Estado norte-americana Victoria Nuland, que levou à destituição de Yanukovitch (que preconizava uma aproximação com a Rússia, mantendo embora as negociações com a União Europeia), a eleição para a presidência de Petro Porochenko em 2014 e, depois, de Volodymyr Zelensky em 2019, que prometera o regresso à paz. Note-se que a Rússia recuperara a Crimeia em 2014 e apoiava discretamente os ucranianos separatistas do Donbass, ostracizados por Kiev. Em 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia, sob a designação de "operação militar especial",  e os combates prosseguem nos nossos dias, com os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Europeia a apoiarem Kiev. Os Acordos de Minsk I e II (2014 e 2015), patrocinados pela França e pela Alemanha e que previam especialmente a autonomia do Donbass e o não ingresso da Ucrânia na NATO nunca tiveram aplicação.

Em Junho de 1988, a União Soviética festejou com pompa o milenário do "baptismo da Rússia", isto é, a adopção oficial do cristianismo pelo Grão-Príncipe Vladimir em 988. Escreve o autor: «De fait, à partir du XVIe siècle, Moscou s'affirme comme un centre spirituel et civilisationnel autonome en dévelopant le concept de "Troisième Rome". Cette théorie a trouvé son expression la plus célèbre en 1508 dans une lettre du moine Philotée au Grand Prince de Moscou Vassili III: "Souviens-toi que tous les empires appartenant à la religion chrétienne sont maintenant réunis dans ton empire et qu'ensuite nous attendons l'Empire qui n'aura pas de fin... Deux Romes sont tombées, mais la troisième est debout et il n'y en aura pas de quatrième."» E o autor disserta depois sobre a religião ortodoxa russa.

Já em 1862 o imperador Alexandre II inaugurara solenemente um monumento celebrando o milenário da Rússia, referindo-se à instalação em Novgorod em 862 do Príncipe Rurik, fundador da primeira dinastia russa. 

Desde o século XIX que se confrontam na Rússia duas visões de identidade: os ocidentalistas (zapadnik), que desejam transformar a sociedade russa inspirando-se dos modelos europeus, quer sejam socialistas ou liberais, e os eslavófilos, que afirmam dever a Rússia encontrar a sua própria via de desenvolvimento fundada sobre a ortodoxia e uma organização social especificamente russa. O autor desenvolve brilhantemente estas teorias, que não é possível traduzir aqui, a menos que se transcrevessem dezenas de páginas do livro. 

É verdade que Pedro, o Grande estava decidido à ocidentalização mas o tempo encarregou-se de encaminhar o país para o eixo euro-asiático. E os acontecimentos mais recentes de o fazer inclinar claramente para a Ásia. O europeocentrismo russo parece ter terminado. 

Em 1994, o presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbaev propôs a criação da União Euroasiática em coordenação com a Comunidade de Estados Independentes formada em 1991 (Rússia, Bielorrúsia, Ucrânia, Arménia, Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Moldávia, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão. A Geórgia integrou-se em 1992 mas saiu em 2008. A Ucrânia retirou-se em 2014). Em 2001, foi criada a Comunidade Económica Euroasiática, constituída pela Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão. Em 2011, Putin anunciou a criação próxima de uma União Económica Euroasiática, que seria estabelecida em 2014, integrando a Rússia, Bielorrússia, Arménia, Cazaquistão e Quirguistão, altura em que acabou a Comunidade Económica Euroasiática. Foi também fundada em 2002 a Organização do Tratado de Segurança Colectiva (na sequência do Tratado de Segurança Colectiva assinado em 1992), com a participação da Rússia, Bielorrússia, Arménia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão. Em 1993 aderiram ao Tratado o Azerbaijão e a Geórgia, que posteriormente se retiraram. O Uzbequistão aderiu em 2006, mas viria também a retirar-se, na sua lógica de recusa de defesa colectiva. 

A União Económica Euroasiática (que sucedeu à Comunidade), um novo mercado comum de 185 milhões de habitantes, foi estabelecida em 2015, pela Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão, com a adesão posterior da Arménia e do Quirguistão.

A criação e modificação destes mecanismos associativos é pormenorizadamente descrita no livro.

O fim da União Soviética conduziu a uma aproximação duradoura entre Pequim e Moscovo, começada por Gorbatchov e que pôs fim ao contencioso territorial. Em 2001 foi assinado um Tratado de Boa Vizinhança, Amizade e Cooperação que foi formalmente prolongado por Xi Jinping e Vladimir Putin em 2021. Em 2001 foi também criada a Organização de Cooperação de Xangai com a participação da China, da Rússia e das repúblicas da Ásia central.

«De fait, Pékin et Moscou partagent le refus d'un monde unipolaire dominé par les États-Unis et font face tous deux à la pression occidentale dans leur voisinage immédiat: élargissement de l'OTAN et activation des structures euro-atlantiques jusque dans "l'étranger proche" de la Russie; dégradation des relations sino-nipponnes; revendications japonaises réaffirmées sur les îles Kourilles; activisme militaire américain aux frontières des deux pays; soutien renforcé des Étas-Unis à Taiwan et à l'Ukraine.» (p. 230)

A China aparece como o parceiro de Moscovo na estruturação da Grande Eurásia. O lançamento por Pequim, em 2013, da Nova Rota da Seda suscitou algumas interrogações em Moscovo devido a contornar a Rússia pelo sul, mas em 2016 o projecto tornou-se Iniciativa de Cintura e Rota aberto a todos os países desejosos de participar. 

Também as relações entre a Rússia, a China e as repúblicas da Ásia Central são pormenorizadamente detalhadas mas a sua descrição não cabe neste espaço.

«L'appropriation du projet euroasiatique par les élites russes a été progressive et résulte en bonne partie de l'absence d'alternative: les projets d'union slave intégrée à la Grande Europe n'ayant pu aboutir, Moscou construit désormais l'Union économique euroasiatique au sein de la Grande Eurasie.» (pp. 237-8)

O autor analisa a seguir as forças armadas russas, que tinham atingido elevado grau de degradação durante o período de Boris Eltsine e que começaram a ser reequipadas em homens e armamento a partir da ascensão de Vladimir Putin ao poder. Os anos 2000 foram marcados pela vontade da Rússia de recuperar o estatuto de grande potência. São descritos os contingentes de tropas russas presentes no estrangeiro próximo, isto é, Tajiquistão, Quirguistão, Arménia e Moldávia (na Transnístria) e também na Ossétia do Sul e na Abkhasia. Juntamente com o contingente destacado na Síria o total perfaz 25 000 homens (à data da publicação do livro), o que contrasta com 35 000 homens do exército americano na Alemanha. Mas existem 200 000 soldados americanos destacados no estrangeiro. Há também uma cooperação securitária com as repúblicas da África Central e esteve prevista a construção de uma base naval no Sudão (Mar Vermelho). O autor salienta a importância da paridade estratégica e refere-se com pormenor à situação na Ásia Central.

O capítulo 8 (Ukraine: Guerre Européenne, Guerre Mondiale) abre com o seguinte parágrafo: «La guerre en Ukraine est l'aboutissement d'une lente dégradation des relations russo-occidentales qui renvoie à des perceptions opposées de la place de la Russie dans le monde post-guerre froide: pour Washington, la Russie a perdu la guerre froide et doit en payer le prix en termes géopolitiques. Pour les élites européennes, la Russie est, dans le meilleur des cas, un pays européen périphérique qui doir appliquer (sans pouvoir participer à leur élaboration) les règles et les normes décidées à Bruxelles afin de bénéficier des bienfaits de l'État de droit et du doux commerce. Pour les élites russes au contraire, la Russie a participé à la liquidation de l'empire soviétique afin de rejoindre le concert des nations européennes en tant que membre à part entière et puissance souveraine.» (p. 271)

E masi à frente: «Le renversement de le président ukrainien en 2014 à conduit à l'arrivée au pouvoir à Kiev d'une alliance hétérogène de forces nationalistes et pro-occidentales soutenue par Washington. L'adhésion de l'Ukraine à l'OTAN, qui a été mise en sommeil sous la présidence de Viktor Ianoukovitch, est soutenue par le nouveau pouvoir. Elle implique la fermeture de la base navale de Sébastopol qui abrite la flotte russe de la mer Noire depuis le XIXe siècle. Le Kremlin a réagi en annexant la Crimée et en soutenant les séparatistes pro-russes qui, dans l'Est de l'Ukraine, sont opposées à l'arrivée des nationalistes originaires de l'ouest du pays. Les accords de Minsk, signées en 2014-2015, ont été l'occasion pour la France et l'Allemagne de tenter de se réappoprier le dossier ukrainien afin de trouver une solution négociée au conflit dans le Donbass. Il aura fallu le déclenchement d'un conflit armé meurtrier sur le continent pour que Paris et Berlin sortent de leur passivité et tentent de réaffirmer leur leadership en Europe face à Washington et Varsovie qui poussent à la confrontation. Cependant, les années passent et le processus de paix reste au point mort. Les Occidentaux continuent d'appliquer des sanctions envers la Russie pour son rôle dans le conflit mais ferment les yeux sur la politique ukrainienne de remise en cause des accords de Minsk. En effet, "malgré la signature des accords qui les contraignent à négocier avec les séparatistes, les autorités officielles de Kiev refusent de leur reconnaître une quelconque légitimité. " Le pouvoir ukrainien refuse non seulement d'accorder l'autonomie au Donbass prévue pr les accords, mais il a mis en place un blocus des régions séparatistes et n'abandonne pas la possibilité de les reprendres par la force. En effet, la signature des accords a été avant tout perçue par les autorités ukrainiennes comme une possibilité de gagner du temps afin de consolider les forces armées du pays. Angela Merkel et François Hollande ont prétendu que "les accords de Minsk devaient donner du temps à l'Ukraine", ce que signifierait que leurs bons offices n'auraient été en réalité q'une manoeuvre dilatoire. Quoi qu'il en soit de la sincérité de ces affirmations a posteriori, elles décrédibilisent la diplomatie européenne et contribuent à alimenter l'argumentaire du Kremlin.» (pp. 272-3)

O autor explica a seguir todas as diligências efectuadas (debalde) pelo Kremlin junto de Washington para travar a ideia da adesão da Ucrânia à NATO. A invasão teve lugar em 24 de Fevereiro de 2022, com a designação de "operação miitar especial" e desenvolveu-se em diversas frentes. Não sabemos hoje quais os objectivos reais do Kremlin entre várias opções possíveis, sendo a mais provável a substituição do regime de Zelensky por um regime pro-russo, o que teria permitido evitar a confrontação com o dispositivo principal do exército ucraniano e estabelecer uma Ucrânia confederal que desse grande autonomia às regiões russófonas, sem que a Rússia procedesse a uma anexação formal. Desde 28 de Fevereiro que se realizaram reuniões de emissários russos e ucranianos na Bielorrúsia com vista a um acordo de paz. Em 7 de Março, Zelensky aceitou o abandono da adesão à NATO e o princípio de "neutralidade da Ucrânia". No começo de Abril começou nova ronda de negociações, primeiro na Bielorrússia e depois na Turquia, países que anunciaram a proximidade de um acordo. Em Agosto, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson bez uma visita surpresa a Kiev fazendo pressão para que a Ucrânia pusesse fim às negociações. Entretanto, os Estados Unidos e a Europa, que já haviam começado a enviar ajuda, militar, humanitária e financeira à Ucrânia, intensificaram o seu apoio, aumentando as sanções à Rússia. 

Em Setembro de 2022, o Kremlin, vendo afastar-se as perspectivas de uma paz negociada, anunciou a anexação das auto-proclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk e dos oblasts de Zaporojie e Kherson na sequência de um referendo que o Ocidente considerou ilegal. Desde o início do conflito que as forças russas foram apoiadas por três grupos principais: as milícias das repúblicas do Donbass (que se encontravam na frente face ao exército ucraniano desde 2014), os combatentes chechenos de Kadyrov e os mercenários do grupo Wagner, chefiados por Evgueny Prigogine. Este, em desacordo com o Estado-Maior russo, viria a tentar marchar sobre Moscovo em Junho de 2023, tentativa neutralizada pelo presidente bielorrusso Alexandre Lukachenko. Tendo Prigogine morrido dois meses mais tarde num acidente de viação e decapitado o estado-maior de Wagner, o que significou o fracasso da privatização das forças armadas russas, sem que as sociedades militares privadas tenham desaparecido por completo, a situação retomou a normalidade.

O Kremlin tem procurado manter o esforço de guerra nos limites razoáveis da economia russa, com o aumento progressivo das despesa militares que, todavia, sofreram um aumento de 70% no orçamento de 2024, para atingir o equivalente a 106 mil milhões de euros, ou seja 6% do PIB russo, o que, sendo importante, não pode ser assimilado a uma economia de guerra. 

«À l'été 2022, les dirigeants occidentaux font preuve d'un optimisme sans faille: la Russie a été logiquement condamné par l'assemblée générale de l'ONU pour la violation de la souveraineté de l'Ukraine, l'unité transantlantique a été restaurée sous leadership américain, l'OTAN est non seulement ressuscité de sa "mort cérébrale" mais l'Alliance s'élargit à deux nouveau membres (la Finlande et la Suède); surtout, les sanctions massives prises de concert à Bruxelles et Washington vont conduire à l'effondrement de l'économie et de l'armée russes. Cette dernière, commandée par des officiers jugés incompétents, bientôt dépourvue d'armements faute de petrodollars et de composants électroniques, ne pourra pas résister à une armée ukrainienne héroïque, qui est equipée, conseillée et financée par les Occidentaux. L'hégémonie occidentale en sortira considérablement renforcée car une fois la Russie vaincue, quelle puissance osera défier "l'ordre internationale fondée sur des règles"?» (pp. 288-9)

O autor discrimina a seguir a ajuda colossal prestada à Ucrânia nos últimos dois anos pelos Estados Unidos, União Europeia e outros países aliados.

«En Ukraine, l'invasion russe et la poursuite de la guerre, avec son cortège de victimes et de destructions, provoque une radicalisation de l'opinion publique. Le régime ukrainien, poussé par les nationalistes radicaux, en profite pour accélérer la dérussification du pays mise en place depuis 2014. En février 2023, la députée Evguenia Kravchuk se félicite de l'élimination "de onze millions de livres en langue russe des bibliothèques du pays" depuis le début du conflit. Dans le même temps, les monuments rappelant l'histoire et la culture communes aux deux pays sont systématiquement éliminés. C'est ainsi que plusieurs dizaines de statues du poète Alexandre Pouchkine sont détruites dans toute l'Ukraine. La littérature russe est exclue des programmes scolaires tandis que l'utilisation du russe dans la sphère publique est punie par des amendes. Enfin, les prêtres de l'Église orthodoxe ukrainienne sont expulsés des lieux de cultes ou même emprisonnés à l'instar du métropolite Pavel, vicaire de la laure de Kiev.» (p. 291)

O livro não refere mas poderíamos lembrar as sanções culturais no Ocidente, pelo menos nos primeiros tempos da guerra, que levaram à interdição de executar a música de compositores como Tchaikovsky, ou proibir conferências sobre Dostoievsky, ou obrigar cantores de ópera a assinarem declarações contra o regime russo como foi o caso de Anna Netrebko. O grande maestro Valery Gergiev, que se recusou aos ditames, foi expulso dos palcos ocidentais. Houve um surto de loucura anti-russa na Europa, cada país a procurar ser mais severo do que os outros. Julgo mesmo, que na melhor tradição europeia, se chegaram a queimar livros de autores russos. Todavia essa febre passou e a normalidade cerebral está a recompor-se.

Encorajado por Washington e Londres, «En octobre 2022, le président Zelensky signe un décret interdisant toute négociation avec Vladimir Poutine, fermant ainsi la porte à toute solution diplomatique. Il est conforté quelques mois plus tard par la décision de la Cour pénale internationale (CPI) d'émettre un mandat d'arrêt à l'encontre de Vladimir Poutine pour la "déportation illégale d'enfants" de l'Ukraine  vers la Russie. Contestée par les authorités russes, qui parlent d'évacuation des civils hors des zones de combats, cette décision du procureur britannique Karim Khan apparaît d'une surprénante célérité alors que la CPI examine depuis 20 ans l'opportunité d'ouvrir une enquête sur les crimes présumés de l'armée américaine en Afghanistan. L'un des arguments pour ne pas lancer de procédure à l'encontre des États-Unis est qu'ils ne sont pas signataires du traité fondateur de la Cour, un argument qui n'a visiblement pas été retenu dans le cas de la Russie. La décision de la CPI qui vise directment le président russe a pour conséquence de gêner ses déplacements vers les pays signataires du Statut de Rome, ce qui contribue à l'objectif d'isoler la Russie pousuivi par chancelleries occidentales.» (p. 292)

O autor relata a seguir o risco de uma guerra nuclear, na sequência da escalada militar ocidental com o propósito de infligir uma derrota estratégica à Rússia. E lembra a crise dos mísseis em Cuba, em 1962. Recordo-me bem desse dia em que o conflito nuclear foi evitado por um triz. Khrushchov pretendia colocar armas nucleares em Cuba, que é um país soberano; Kennedy considerou inaceitável por a ilha estar próxima do território americano e ameaçou com um ataque nuclear; a URSS retirou os mísseis e o "apocalipse nuclear" foi evitado. Para salvar a face soviética, os EUA retiraram armas ofensivas da Turquia. A política actual de Biden, em relação à colocação dessas armas na Ucrânia é a oposta à de Kennedy, com a vontade assumida de humilhar o adversário. Putin tem ameaçado com a utilização de armas nucleares em caso da intervenção directa do Ocidente no conflito e anunciou em Outubro de 2023 que se retirava do tratado de interdição dos ensaios nucleares. E em Maio de 2023 Lukachenko anunciou que tinham sido colocadas armas nucleares tácticas no território bielorrusso.

Em Agosto de 2023, os BRICS's (Brasil, Rússia, India, China e África do Sul) anunciaram a adesão de seis novos estados: Egipto, Emirado Árabes Unidos, Arábia Saudita, Etiópia, Irão e Argentina (que viria a retirar-se por decisão do novo presidente Milei). Esta poderosa organização, que pretende afastar o Sul Global da dependência financeira do dólar, tem novos candidatos à espera de aderir: Indonésia, Tailândia, Vietnam, Argélia, Venezuela, Nigéria, etc.

«De fait, le conflit ukrainien cristallise le relatif isolement de l'Occident dont la lecture du conflit est loin d'être partagée par le reste du monde. Non seulement la grande majorité refuse la politique de sanctions occidentales, mais nombreux sont les pays émergents qui, à l'instar de la Chine et de plusieurs pays africains, rejoignent la lecture russe sur la responsabilité supposée de l'OTAN et des États-Unis dans la montée des tensions autour de l'Ukraine.» (p. 296)

«Néamoins, l'administration Biden estime que la poursuite du conflit est dans l'intérêt des États-Unis: en Octobre 2023, alors que les pertes de l'armée ukrainienne s'élèvent à plusieurs centaines de milliers de morts et de blessés graves, le chef du Pentagone déclare que "l'assistance à la sécurité de l'Ukraine constitue un investissement intelligent dans notre sécurité nationale. Cela contribue à prévenir un conflit plus vaste dans la région et à dissuader une agression potentielle ailleurs, tout en renforçant notre base industrielle de défense et en créant des emplois hautement qualifiés pour le peuple américain".» (p. 303-4)

No campo das tecnologias de informação a Rússia encontra-se em lugar dianteiro e é o único país, juntamente com a China, capaz de concorrer com os GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) no mercado interior. Vkontakte, muitas vezes designado como o Facebook russo, foi criado por Pavel Durov e depois adquirido pelo grupo Mail.ru (o principal serviço russo de mensagens electrónicas), o que foi considerado como uma tomada por uma empresa próxima do Kremlin. O segundo actor da internet russa é o grupo Yandex. O Yandex.Taxi é o equivalente russo da Uber. O grupo Sberbank, o maior banco do país, controlado pelo Estado, diversificou as suas actividades construindo um ecosistema digital. A prioridade decidida pelo Kremlin à indústria digital foi confirmada em 2020 por Vladimir Putin que concedeu importantes vantagens fiscais ao sector da electrónica e às novas tecnologias da informação. 

«La construction d'un Runet (Internet russe) souverain "vise à construire un réseau entièrement indépendant du réseau de l'Internet mondial sur l'ensemble de sa structure (depuis la couche matérielle du réseau jusqu'à sa couche applicative)". Elle fait donc partie d'une stratègie plus large de souveraineté numérique qu'implique notamment le développement d'applications russes (systèmes d'exploitation, logiciels, réseaux sociaux, etc.) qui puissent donner à la Russie une capacité souveraine dans l'ensemble du domaine informationnel et des réseaux de télécommunication.» (pp. 314-5)

O autor descreve pormenorizadamente a modernização do soft power russo.

O último capítulo diz respeito à "Politique d'influence: entre Eurasie, 'monde russe' et étranger lointain". 

«Le tournant conservateur du Kremlin est le plus souvent interprété sous le prisme des rapports avec l'Occident. Ce positionnement permet en effet au Kremlin de se rapprocher des mouvements populistes eurosceptiques et conservateurs, ce qui renvoie à l'objectf d'affaiblir l'Union européenne ou tout du moins de la réorienter vers un positionnement plus conforme aux intérêts russes.» (p. 323)

«Cependant, le credo conservateur du Kremlin ne peut être réduit au seul objectif de développer un discours alternative permettant de donner une dimension idéologique à l'opposition russo-occientale. La défense des valeurs traditionnelles et la mise en avant d'une identité euroasiatique sont également censées rassembler les principales composantes ethnoreligieuses de la société russe (slaves et turcophones, orthodoxes et musulmans). Il s'agit de proposer un dénominateur commun capable de contrer l'islamisme radical tout comme le nationalisme ethnique russe, deux tendances qui s'alimentent mutuellement et menacent la cohésion de la Fédération de Russie.» (pp. 323-4)

«L'Église othodoxe russe est au coeur du "monde russe" dans la mesure où le territoire canonique du Patriarcat de Moscou s'étend sur la majorité des républiques ex-soviètiques et qu'il tente de renforcer sa présence auprès des communautés russes émigrées pour lesquelles l'Église orthodoxe sert d'espace de socialisation et de référent identitaire avec une dimension diasporique. Le Patriarcat de Moscou a effectué d'importants progrès en ce sens; en effet, au sortir de l'URSS, la majorité des paroisses de la "diaspora" était rattachée au Patriarcat de Constantinople ou bien à l'Église orthodoxe russe hors frontières (une structure indépendante) du fait de la grande méfiance des Russes blancs vis-a-vis d'un Patriarcat de Moscou considéré comme inféodé au pouvoir soviètique. Mais en 2007, l'Église orthodoxe russe hors frontières est rentrée dans le giron du Patriarcat de Moscou sous la forme d'une structure autonome.» (pp. 327-8)

«La défiance des élites nationales des voisins de la Russie, qui s'exprime depuis la fin de l'URSS vis-à-vis de l'ancienne métropole, n'a pu qu'être sensiblement renforcée par l'annexion de la Crimée et les ingérences russes dans le conflit ukrainien. Cette défiance se traduit non seulement par des restrictions vis-à-vis des droits linguistiques des russophones, mais a également des conséquences dans le domaine religieux. C'est ainsi que l'ancien président ukrainien Petro Porochenko a oeuvré à la création d'une nouvelle Église ukrainienne en rupture avec l'orthodoxie russe. Pour ce faire, il est parvenu à convaincre le Patriarcat de Constantinople de soutenir "l'autocéphalie" de l'Églie ukrainienne. Mais les résultats de la création de cette nouvelle structure n'ont pas été à la hauteur des espoirs du pouvoir ukrainien: en effet, le clergé de l'Église orthodoxe ukrainienne canonique (ratachée au Patriarcat de Moscou) a très majoritairement refusé de rejoindre la nouvelle Église, malgré les fortes pressions exercées par le pouvoir (arrestation de prêtres, perquisitions de lieux de culte...). La nouvelle Église rassemble donc les structures préxistantes qui étaient déjà en rupture avec Moscou et ont été "légalisées" grâce à la reconnaissance de Constantinople, tandis que l'Église orthodoxe ukrainienne est restée majoritairement fidèle au Patriarcat de Moscou. L'initiative du président ukrainien Porochenko a donc encore aggravé les divisions au sein du pays et illustré à quel point la politique de rupture avec le "monde russe" est loin de faire l'unanimité dans son pays. Néamoins, la décision de Constantinople ayant été perçue par l'Église orthodoxe russe comme une ingérence injustifiée dans ce qui relève de son territoire canonique, le Patriarcat de Moscou a rompu ses relations avec Constantinople.» (pp. 329-330)

Para desenvolver a sua diplomacia cultural, o governo russo apoia-se em diversas instituições, algumas herdadas da União Soviética. São geridas pela Agência Federal Rossotrudnichestvo que depende do Ministério dos Negócios Estrangeiros. A acção da Agência é completada por algumas fundações privadas ou públicas, sendo a mais importante, fundada em 2007 por Vladimir Putin, a Fundação Russky Mir (Mundo russo), cuja principal missão é o ensino da língua e da cultura russa no estrangeiro. A diplomacia cultural apoia-se nomeadamente na idade de ouro da cultura russa do século XIX em todos os domínios da cultura clássica: Tolstoï, Dostoïevsky e Turgueniev em literatura, Tchekhov no teatro, Tchaïkovsky na ópera e no bailado, são apenas alguns nomes entre uma plêiade de autores, de compositores e de artistas russos que são o melhor cartão de visita da Rússia no estrangeiro. «Les autorités russes cherchent ainsi à mettre en valeur cet avantage comparatif de leur politique d'influence: elles ont notamment lancé un programme intitulé "Cent livres incontournables de la littérature russe". Il s'agit de proposer aux maisons d'édition de chaque pays de choisir 100 titres parmi une liste de 150 dont la Russie finance intégralement la traduction et la publication. Le programme a débuté aux États-Unis, en Chine et en Grande-Bretagne, et s'est poursuivi en France. Le financement du programme de traductions de oeuvres russes bénéficie du soutien d'oligarques tels que Mikhaïl Prokhorov ou Roman Abramovitch: une tendance importante de la stratégie russe de soft power qui tente d'associer les initiatives privées à l'action des autorités.» (p. 331)

É de notar também a influência do cinema russo, das competições desportivas (grande êxito dos Jogos de Inverno em Sotchi em 2012 e da Taça do Mundo de Futebol em 2018), embora a participação de atletas russos esteja agora suspensa devido à invasão da Ucrânia. Ao nível da informação houve um grande desenvolvimento da cadeia de televisão Russia Today (RT), o símbolo mais conhecido da política de influência russa nos media. Em 2013 o Kremlin criou a agência Rossia Segodnia que agrupa nomeadamente a agência de imprensa Ria Novosti (conteúdos em russo) e a agência Sputnik (simultaneamente agência de imprensa e rádio internacional). A difusão de ambas foi proibida pela União Europeia devido igualmente à invasão da Ucrânia. 

Face ao domínio sem partilha da "big pharma" ocidental, a Rússia criou a vacina Sputnik-V contra o coronavírus, o que lhe permitiu afirmar-se como uma das grandes potências vacinais. A utilização de Sputnik-V foi aprovada em mais de 70 países. As exportações de Sputnik-V atingiram em 2020-2022 o valor de 1,3 mil milhões de dólares, sendo especialmente clientes na Europa a Hungria e a Eslováquia. A vacina foi credibilizada pelas revistas ocidentais Lancet e Nature

Nas Conclusões, o autor escreve: «Dans leur quête de puissance, les élites russes mobilisent des concepts géopolitiques ancrés dans l'histoire d'une puissance singulière, à la fois "Troisième Rome" slave-orthodoxe et Russie-Eurasie pluriethnique et multiconfessionnelle héritière de "l'Empire des steppe".» (p. 341)

E acrescenta: «La tragédie ukrainienne résulte de la collision entre la volonté des États-Unis d'Amérique de conserver leur hégémonie mondiale quoiqu'il en coûte et la volonté décomplexée des puissances ré-émergentes (Russie, Chine, Turquie...) de participer à la reconfiguration d'un monde multipolaire incarné par la montée en puissance des BRICS. De fait, la contestation de l'ordre internationale occidental ne se limite pas à la Russie ou la Chine, elle est exprimée de manière toujours plus vindicative pr une grande partie des élites du "Sud global".» (p. 346)

«Les difficultés de la relation avec l'Occident contrastent avec la capacité de la Russie à mener une politique équilibrée sur la scène internationale, ce qui lui permet d'entretenir de bonnes relations avec de nombreuses puissances - souvent antagonistes - et de multiplier les partenariats avec les pays émergents. La réussite de cette politique dépendra cependant de la capacité de la Russie à s'affirmer en tant que partenaire fiable et attractif comme le démontrent les succès de la diplomatie vaccinale permis par Spoutnik-V.» (pp. 347-8)

«Il faudra compter avec la Russie dans la gestion des affaires mondiales et ceci sans doute beaucoup plus qu'on ne pouvait le croire il y a encore quelques années. La Russie reste une puissance majeure qui est parvenue à maintenir une réelle autonomie stratégique.» (p. 348)

A concluir, o autor designa a "democracia soberana" de Vladimir Putin como uma "monarquia electiva" e recorda que a principal fraqueza interna do regime reside no facto de não existir qualquer mecanismo de sucessão institucionalizado. E considera que o após-Putin se impõe progressivamente na agenda, não sendo as elites monolíticas mas diversificadas entre conservadores e liberais sistémicos, membros dos serviços e tecnocratas, oligarcas e patrões das corporações estatais.

* * *

Procurei transmitir uma visão global deste importantíssimo livro, que descreve com pormenor todos os assuntos tratados pelo autor, encontrando-se as afirmações devidamente documentadas. Em alguns casos, por fidelidade ao texto, optei pela transcrição de parágrafos. Mas os interessados deverão ler integralmente esta obra, que importaria traduzir em língua portuguesa.



quinta-feira, 9 de maio de 2024

A SOMBRA DE CARAVAGGIO

Recebi finalmente, e vi, Caravage (L'ombra di Caravaggio), de Michele Placido (2022), que me provocou alguma perplexidade. 

Trata-se de um filme indubitavelmente interessante, em que o realizador pretende reproduzir na película a atmosfera das telas do notável pintor, mas que se me afigura apresentar uma figura de Caravaggio não precisamente conforme à ideia que dele possuímos, traduzida nos numerosos textos ou filmes já produzidos sobre o mesmo, como os de Derek Jarman e Angelo Longoni. Não sendo (infelizmente) um especialista de Caravaggio, tenho algumas dúvidas sobre a reconstituição histórica dos factos, embora não fosse porventura essa a principal preocupação do realizador. Também me parece que há, recorrentemente, uma violência excessiva, ainda que tal violência não seja propriamente estranha à época.

A introdução de uma figura de ficção, a Sombra (um inquisidor particular ao serviço do Papa Paulo V) para averiguar da vida e da obra do pintor, e que serve de fio condutor do filme, é uma liberdade cinematográfica que servindo os objectivos do realizador acaba por condicionar a estória.

Devo à Providência a graça de ter visitado, em 2010, a primeira grande retrospectiva mundial de Caravaggio, em Roma, no Palácio do Quirinale. E de ter observado os seus quadros nos museus europeus e nas igrejas italianas e de Malta. 

Catálogo da exposição no Quirinale

E li alguns livros sobre a vida e a obra de tão singular criatura, cuja projecção universal só começou a ser reconhecida no século passado.

Em 2010, publiquei aqui http://domedioorienteeafins.blogspot.com/2010/04/caravaggio-em-roma.html um post sobre a exposição de Roma. Nada mais tenho, por agora, a acrescentar.

Publico a capa de três livros sobre o Mestre.

"M" (de Michelangelo Merisi da Caravaggio)

domingo, 5 de maio de 2024

OS PODERES DAS TREVAS

Em 1986 comprei, por sugestão de um amigo, Les puissances des ténèbres (1981), de Anthony Burgess (1917-1993), publicado no ano anterior com o titulo Earthly powers. Conhecia do autor A Clockwork Orange (A Laranja Mecânica), editado em 1962, de que Stanley Kubrick extraiu o filme homónimo, realizado em 1971, que vi pela primeira vez em Londres em 1973 (estava então proibido em Portugal) e que, dado o sucesso retumbante, haveria de dar a volta ao mundo.

Mas, como acontece com muitas centenas de livros, apesar do meu presumível interesse no assunto, deixei ficá-lo numa estante, aguardando oportunidade de leitura, já que então tinha outros compromissos. Por um acaso do destino (se é que há acasos do destino) o mesmo amigo falou-me dele há dias, e, interrompendo outras leituras, merecendo também prioridade, decidi lê-lo agora, sem mais demora, apesar das suas quase 1 300 páginas, na edição francesa a que me refiro.

Anthony Burgess (1917-1993) é um dos grandes escritores britânicos do século XX e, sendo vasta a sua obra, Earthly powers é um dos seus melhores livros, certamente superior a A Clockwork Orange, também famoso mas que beneficiou do incomparável sucesso do filme, onde Kubrick empenhou o seu génio criador.

Não tenho a pretensão de fazer aqui uma resenha do livro, até porque seria impossível, dada a extensão da obra e a variedade dos temas tratados. Pode, todavia, afirmar-se que o requintado sentido de humor de Burgess é magistralmente demonstrado nesta obra. Sendo um homem cultíssimo, o autor não é minimamente alheio a qualquer dos assuntos versados e são notáveis os seus conhecimentos de literatura, música, teatro, religião, sexualidade; bem poderíamos dizer, parafraseando Terêncio, que nada do que é humano lhe é estranho. Tratando-se de uma obra de ficção, ela está situada num período histórico que vai do começo da Primeira Guerra Mundial até próximo da altura em que foi escrita (1980), constituindo um grande fresco do meio século central do século passado. Por ela perpassam figuras reais, amigos e conhecidos do protagonista (e do autor), como James Joyce, E.M. Forster, Graham Greene,  Aldous Huxley, T.S. Eliot, Rudyard Kipling, Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Alice Toklas e outros hoje menos conhecidos do público em geral.

Por curiosidade, transcreve-se o primeiro parágrafo do livro : «C’était l’après-midi de mon quatre-vingt-unième anniversaire, et j’étais au lit avec mon giton, lorsque Ali vint m’annoncer la visite de l’archevêque.»

A acção desenvolve-se em torno da vida do protagonista, Kenneth Toomey, escritor homossexual mundialmente conhecido (em alguns aspectos um alter ego do autor, porém mais precisamente do escritor britânico Somerset Maugham), mas Burgess incrusta numerosas estórias paralelas ao longo da narrativa (82 capítulos), porventura supérfluas para a economia do enredo mas possivelmente indispensáveis para a criação do clima em que pretende envolver o leitor. E o trajecto do romance é, também, de alguma forma, autobiográfico, reproduzindo em certa medida o percurso geográfico do autor. É por isso que as 1 300 páginas talvez não pudessem ser reduzidas a umas 600 ou 700, ainda que sem prejuízo da trama mas em detrimento de um horizonte que se desejava mais vasto.

As personagens centrais são o referido Kenneth Toomey (o narrador), sua irmã Hortense e o seu marido, Domenico Campanati, e o irmão deste, Carlo Campanati, que seria, nos últimos anos de vida, o Papa Gregório XVII (que nunca existiu na Santa Sé, embora tenha havido um prelado que assim se intitulou e a quem nos referiremos mais abaixo).

O romance de Anthony Burgess é uma crítica impiedosa, e irónica, da sua época e antecipa a emergência de alguns fenómenos que viriam a revelar-se por vezes de forma radical, nos nossos dias, como o feminismo, o climatismo, o racismo anti-branco, a disseminação de seitas religiosas.

Há uma questão que é recorrente ao longo do livro: a recusa da aceitação da homossexualidade pela Igreja Católica, cuja doutrina, cerimónias e história são do perfeito conhecimento do autor. Aliás, Burgess é um especialista em religiões, e as dissertações teológicas de Toomey nas conversas com o seu cunhado Carlo Campanati, o futuro Papa, revelam um profundo conhecimento da matéria.

Uma parte razoável do livro refere-se à permanência do narrador na Alemanha, antes e durante o período nazi, onde este tenta facilitar (debalde) a fuga de um célebre escritor judeu alemão, Strehler, que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1935. Note-se que não existiu esse escritor Strehler e o Prémio não foi atribuído em 1935, o que evidencia que Burgess esteve sempre atento à relação da ficção com a realidade. Ainda na Alemanha, anteriormente, Toomey terá instintivamente salvo o Reichsführer Henrich Himmler de um atentado, o que lhe valeu a benevolência germânica ao envolver-se na tentativa de salvar Strehler.

O padre Carlo Campanati é uma figura fundamental na obra. Irmão do compositor Domenico Campanati, que se casaria com Hortense, irmã de Toomey, viria a ser cunhado do protagonista. Homem corpulento e vulgar, possuía ideias pouco ortodoxas sobre a religião católica. Escreveu mesmo um livro, a coberto do nome famoso do cunhado (capítulo 44), A Verdadeira Reforma: Projecto de Reorganização das Instituições do Cristianismo, Acompanhada de Algumas Notas sobre as Técnicas da Associação com as Confissões Aparentadas), onde expunha a sua concepção do catolicismo, desejando uma transformação profunda das práticas vigentes e a convocação de um Concílio. Mais tarde, seria diplomata da Santa Sé na Nunciatura Apostólica em Washington, bispo de Moneta (esta cidade não existe, talvez seja uma piscadela de olho a Modena ou a invocação da deusa Juno, de que é um epítome), arcebispo de Milão, cardeal e finalmente Papa, com o nome de Gregório XVII, após a morte de Pio XII em 1958. No Conclave que o elevou ao sólio pontifício fora eleito o débil Patriarca de Veneza, que recusou a eleição e caiu fulminado por um ataque de coração. O caso foi mantido no segredo do Conclave e foi realizado novo escrutínio em que Carlo Campanati obteve a necessária maioria de dois terços. 

Devo esclarecer que pela Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis, do Papa João Paulo II a regra dos dois terços foi substituída pela maioria absoluta.

Voltemos a Campanati. Como o leitor já compreendeu, Gregório XVII é de alguma forma uma personificação de João XXIII, sem todavia se poder identificar com ele. O Papa ficcionado de Burgess identificaria o cristianismo com o marxismo, viajaria até Moscovo e por todo o mundo, o que neste caso o torna mais próximo de João Paulo II, o Papa globetrotter. Também é curiosa a morte no Conclave do Patriarca de Veneza, que teria sido envenenado pelo próprio Campanati antes do escrutínio fatal. Outra piscadela de olho de Burgess à História, já que o Papa João Paulo I, que morreu misteriosamente após 33 dias de pontificado, fora Patriarca de Veneza.

Importa, todavia esclarecer que houve realmente um Papa Gregório XVII, Clemente Domínguez y Gómez, membro da Igreja Cristã Palmariana e homossexual público, que foi proclamado Papa após a morte não de Pio XII mas de Paulo VI, em 1978. A Igreja Palmariana ainda hoje existe, em Sevilha. Por sua morte, em 2005, foi eleito Manuel Corral, que tomou o nome de Pedro II e exerceu funções até à sua morte em 2011. Também teve um sucessor, Ginés de Jesús Hernández, com o nome de Gregório XVIII, que renunciou em 2016, para casar com uma freira. Sucedeu-lhe Markus Joseph Odermatt, com o nome de Pedro III, suíço, o primeiro não espanhol a aceder a essa cátedra e que ainda se mantém em funções. Anthony Burgess nada deixou ao acaso.

A Igreja Cristã Palmariana é uma seita religiosa tradicionalista, que tem entre os seus santos Francisco Franco, Luis Carrero Blanco, Primo de Rivera, Calvo Sotelo e Escrivá de Balaguer, mas reconhece todos os santos canonizados pela Igreja Católica até à morte de Paulo VI.

Voltemos ao romance. Estando Campanati em missão nos Estado Unidos, onde também habitava o seu irmão Domenico, encontrou-se com Toomey (em digressão literária) num hospital onde se encontrava moribundo, vítima de um atentado da Máfia, o seu outro irmão Raffaele. É nessa altura que Campanati opera um milagre, curando uma criança. Quando no começo do livro se refere que ele é visitado (em Valeta, onde então residia) pelo Arcebispo de Malta, a missão do prelado é exactamente pedir o seu testemunho para a canonização de Carlo, que entretanto morrera em odor de santidade. Toomey habitou um certo tempo (depois de deixar Marrakech e Tânger) em Valeta com o seu secretário e amante, o jovem e belo negro americano Ralph Pembroke, irmão de Dorothy Pembroke, uma outra negra, bela e inteligente, que vivia com Hortense, a irmã de Toomey, que tendo-se separado de Domenico se tornara lésbica (ou sempre o fora). 

Deve ainda notar-se que Campanati procedia a exorcismos e que no dia da sua morte um dirigente de uma seita religiosa americana, Godfrey Manning, procedeu ao extermínio pelo fogo de milhares dos seus seguidores para tentar fugir dos Estados Unidos. Manning fora a criança que Campanati salvara outrora da morte através de um exorcismo.

A vastidão de episódios narrados por Burgess ao longo do livro não permite mais do que alguns apontamentos. Por exemplo, a oposição de Campanati (então no Vaticano) ao Duce a propósito do Tratado de Latrão (11 de Fevereiro de 1929), entre a Itália e a Santa Sé, assinado por Mussolini e o Cardeal Pietro Gasparri, Secretário de Estado. Escreve Anthony Burgess (capítulo 43) que na realidade não houve um tratado mas três. Em primeiro lugar, o Pacto de Latrão, que criava o novo Estado da Cidade do Vaticano. A seguir, uma convenção financeira, nos termos da qual a Itália entregava ao Vaticano o equivalente a noventa milhões de dólares, uma parte em fundos líquidos e a outra em títulos do Estado e concordava em pagar o salário dos sacerdotes das paróquias. Por fim, uma concordata que isentava de imposto o clero e reconhecia ao Vaticano o controlo financeiro de certas organizações ditas eclesiásticas em toda a Itália. A concordata interditava também a Bíblia protestante e as reuniões evangélicas, mesmo privadas. O catolicismo era reconhecido como religião oficial do Estado italiano e ensinado nas escolas. 

A sucessão de lugares onde a acção decorre, o elevado número de personagens te o vasto horizonte temporal torna por vezes difícil seguir o "fio da meada" mas o livro é verdadeiramente fascinante.

Anthony Burgess

Não me alongarei, recomendando com insistência a leitura desta obra de grande fôlego.