terça-feira, 30 de abril de 2024

ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DA IDADE

«Je me revois aussi sous l'aspect d'un homme bronzé, dans la soixantaine, sans un pouce de graisse, dispos, mais accusant malgré tout quelques ravages. L'impulsion sexuelle - les hommes de mon âge ne manquent pas de le savoir - ne meurt pas avec les ans: elle devient seulement intermittente, tout en n'abdiquant presque rien de ses anciennes fureurs lors de ses résurgences. Elle a besoin, cependant, d'être stimulée par la jeunesse et la beauté, ce qui implique une certaine unilatéralité de passion. Car est-il jeunesse, est-il beauté qui - exception faite des cas de gérontophilie perverse - puissent être stimulées en retour par des rides et des cheveux gris? Il est vrai que, au fur et à mesure que j'approche des dernières infirmités, c'était de compagnie que j'avais besoin plutôt que d'un partenaire en amour, mais sans que ce fût, comme dans le mariage, la compagnie de quelqu'un de ma génération. Ce que je voulais, c'était une amitié avec des connotations de l'excitation amoureuse, c'est-à-dire l'électricité du toucher, de l'enlacement, des mots tendres, et tout ce qui avait de rassurant, dans la nuit, la présence d'un corps, du moment qu'il était jeune et charmant, respirant à côté de moi. J'étais reconnaissant s'il s'y ajoutait le don de l'intelligence, d'autant plus piquant qu'il y manquait une expérience relative du monde.»

ANTHONY BURGESS, in "Les puissances des ténèbres", capítulo 60 (edição francesa de 1981)

UM BAILE DE MÁSCARAS

Revi ontem Un Ballo in Maschera, de Verdi. Na circunstância, a gravação do espectáculo apresentado em 1975 no Covent Garden, com Plácido Domingo (Gustavo), Katia Ricciarelli (Amelia), Piero Cappuccilli (Anckarström), Elizabeth Bainbridge (Ulrica) e Reri Grist (Oscar). Direcção musical de Claudio Abbado. Encenação de Otto Schenk.

Curiosa a história desta ópera de Verdi, onde a realidade histórica é francamente adulterada. Passemos aos factos.

Em 16 de Março de 1792, durante um baile de máscaras no Palácio Real de Haga, nos arredores de Estocolmo, o rei Gustavo III da Suécia foi baleado pelo capitão Jakob Anckarström, um fidalgo de 29 anos que tinha sido pajem da corte. Em consequência dos ferimentos, o rei morreu alguns dias depois e o facto provocou comoção nas monarquias europeias. 

O assassinato fazia parte de uma conspiração contra a política absolutista do rei a quem se deve, aliás, a criação da Academia Sueca e da Ópera Real. Mas os historiadores aduzem outras razões para o acto como as intrigas dos seus favoritos. Gustavo III era tendencialmente homossexual e o seu círculo íntimo, em que figuravam pessoas como o Conde Axel von Fersen e o Conde Gustav Armfelt, suscitava constantes invejas na Corte. 

As repercussões do assassinato na Europa levaram o célebre dramaturgo francês Eugène Scribe (1791-1861) a escrever uma peça intitulada Gustave III, ou Le Bal masqué, que serviria de argumento à ópera homónima de Daniel Auber (1782-1871), apresentada em 1833. Mas as circunstâncias impuseram uma alteração da verdade histórica. Assim, Gustavo III teria sido assassinado pelo seu melhor amigo, Anckarström, por ciúmes, em virtude do rei tentar seduzir a sua mulher.

Mais tarde, Giuseppe Verdi (1813-1901) interessou-se pelo tema e encomendou o libretto a Antonio Somma, a partir da peça de Scribe. Mas a censura da Corte de Nápoles obrigou a modificações, já que na altura não era conveniente apresentar um regicídio. A ópera designar-se-ia somente Un Ballo in maschera e seria estreada não no Teatro San Carlo, de Nápoles, como inicialmente previsto, mas no Teatro Apollo, de Roma, em 17 de Fevereiro de 1859. E o acontecimento teria lugar em Boston e não em Estocolmo, o rei Gustavo III seria substituído por Riccardo, Conde de Warwick, e o capitão Anckarström por Renato. O motivo seria a tentativa de sedução de Amelia, mulher de Renato, pelo governador Riccardo.

 A ópera, escrita já na idade madura de Verdi, permanece como uma das mais notáveis do compositor.

ADENDA: Escrevi aqui que o rei Gustavo III tinha sido assassinado no Palácio Real de Haga, nos arredores de Estocolmo, conforme algumas fontes. No post que publiquei em 2013 indicara como local o Palácio Real de Estocolmo, de acordo com a maior parte das fontes. Aliás, na ocasião o Palácio de Haga não se encontrava ainda concluído. Vou procurar esclarecer oportunamente esta questão.


Em 2013, publiquei sobre o tema este post: http://domedioorienteeafins.blogspot.com/2013/12/as-mascaras-de-um-baile-de-mascaras.html

 

terça-feira, 23 de abril de 2024

A GUERRA NO DONBASS

O jornalista Bruno Amaral de Carvalho publicou há alguns dias um livro sobre a sua experiência de repórter de guerra na Ucrânia, A Guerra a Leste. Durante oito meses, o autor fez a cobertura da guerra no Donbass, sendo durante muito tempo o único jornalista português no teatro do conflito, do lado "separatista". Mais tarde haveria de juntar-se-lhe o jornalista Luís Peixoto, da Antena 1.

Em todas as guerras é fundamental conhecer os relatos de ambas as partes envolvidas nas hostilidades, a fim de se poder ajuizar da objectividade dos mesmos, já que em confrontações militares a primeira vítima é sempre a verdade.

Acontece que desde a invasão da Ucrânia, e devido à insuportável Ursula ter determinado a proibição na União Europeia de todos os canais russos de difusão de notícias, passámos a ter apenas conhecimento da narrativa “ocidental” divulgando a “verdade oficial”, ainda que soubéssemos (sabe-se sempre) que aquela não correspondia inteiramente à “verdade dos factos”.

Este livro devolve-nos, com grande lucidez, uma informação equilibrada, narrando aquilo que já suspeitávamos, mas agora com informação alicerçada numa testemunha ocular dos acontecimentos. Será essa informação isenta? Decorre da leitura do livro que ela é muito mais consentânea com a realidade do que o relato que nos tem sido veiculado desde Fevereiro de 2022.

A operação militar russa foi iniciada há mais de dois anos e esta obra refere-se tão só a oito meses de combates, mas permite avaliar a veracidade de muitos acontecimentos e a forma distorcida como nos foram apresentados.

Tenho dito e escrito que esta guerra é, mais do que qualquer outra, uma guerra inútil, onde o verdadeiro sacrificado é o povo ucraniano. E que o número de mortos ultrapassa largamente o que seria razoável (e nenhum morto seria razoável) para os interesses em questão.

O estabelecimento das fronteiras da Ucrânia foi efectuado de forma arbitrária em circunstâncias profundamente distintas das actuais. Quando da implosão da União Soviética não houve a preocupação de proceder ao reajustamento das mesmas de acordo com a nova situação estratégica, agora radicalmente diferente.

O Donbass foi incorporado na Ucrânia em 1918, por vontade de Lenin e contra a opinião de alguns dos seus colegas no governo da União Soviética, devido a ser uma importante zona industrial que equilibraria a extensa superfície agrícola do resto do país.

Além das centenas de milhares de mortos, feridos, estropiados, das destruições de casas e de instalações civis, e obviamente militares (para não falar dos milhões de exilados noutros países desde o começo da invasão, ou mesmo antes) acresce uma consequência trágica que é a desavença das famílias, com a quebra de laços afectivos que perdurará por longo tempo.

A Ucrânia é um mosaico étnico, religioso, linguístico e ideológico que pôde funcionar regularmente durante o período soviético. O desmoronamento da URSS foi, nas palavras de Vladimir Putin, a “maior catástrofe geopolítica do século XX”. A guerra na Ucrânia é uma das consequências.

Estou certo de que o cumprimento dos Acordos de Minsk, celebrados entre a Rússia e a Ucrânia, com a participação da França e da Alemanha, teria evitado esta guerra. Esses Acordos estipulavam, no essencial, duas coisas: a não adesão da Ucrânia à NATO (o que é compreensível em termos geoestratégicos) e a regionalização do país (o que permitiria nas zonas de Leste a utilização da língua russa, a manutenção dos antigos costumes, a obediência ao Patriarca Ortodoxo de Moscovo, etc.) Note-se que Volodymyr Zelensky promoveu a criação de um Patriarcado Ortodoxo autónomo em Kiev, para se subtrair à autoridade espiritual do Metropolita moscovita.

A guerra que se trava na Ucrânia é, como toda a gente há muito tempo percebeu, uma guerra entre a Rússia e o Ocidente colectivo, em que os ucranianos são utilizados como “mão-de-obra” descartável ao serviço de interesses que já nem são inconfessáveis. É por isso profundamente imoral.

O que custa a compreender neste conflito, que não data de 2022, nem sequer de 2014 (a revolta de Maidan) mas desde a revolução laranja de 2004, é a submissão total da Europa aos negócios norte-americanos. Nunca o Velho Continente abdicara por completo da sua soberania, embarcando numa aventura de contornos mal definidos e envolvendo riscos de proporções inimagináveis. Apesar da propaganda sistematicamente difundida pelos Governos “ocidentais”, os povos europeus mostram-se contudo cada vez mais cépticos em continuar a acreditar na versão oficial.

Até quando abusarão eles da nossa paciência, e das nossas vidas?

 

domingo, 7 de abril de 2024

OS MALEFÍCIOS DOS ESTADOS UNIDOS

Em 2002, o jornalista e professor Peter Scowen (n. 1959) publicou Black Hole of America, que foi editado nesse mesmo ano em português com o título O Livro Negro da América. Pesquisando na Amazon, este título desapareceu, existindo um outro livro do autor, com o título Rogue Nation: The America the Rest of the World Knows, editado em 2003, e que suponho ser a mesma obra com outra designação e eventualmente actualizada. Mas continuam a estar disponíveis, nos vários sites da Amazon, traduções do livro original, pelo menos em francês e em italiano.

Nesta obra, o autor analisa as intervenções políticas, militares, económicas, sociais, directas e indirectas, dos Estados Unidos em diversos países, com a exclusiva finalidade de afirmar ou consolidar os interesses americanos, ou aquilo que as administrações estadunidenses (democratas ou republicanas) supõem ser os seus interesses. Às vezes enganam-se. 

O texto de Peter Scowen está exaustivamente documentado com a inclusão, em apêndice, de todas as fontes que suportam as suas afirmações.

O autor desenvolve, com detalhe, as intervenções americanas na Nicarágua, Honduras, Guatemala e Chile. Sem esquecer o Vietname, a Malásia, o Camboja, o Sudão. Dedica especial atenção ao bombardeamento (inútil) de Hiroshima e Nagasáqui, a primeira (e até hoje única) vez que foi utilizada uma bomba nuclear. Alude à interferência no Irão para depor Mossadegh. Refere a guerra da Coreia e a guerra (a primeira) do Golfo. E o incentivar da guerra entre o Iraque e o Irão. 

São mencionados os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 e a Cruzada contra o Mal desencadeada por George W. Bush. E a forma como o terrorismo, agora já não o comunismo, justificou levar a cabo no estrangeiro actividades muito questionáveis. 

Dada a data em que o livro foi escrito, o autor menciona a invasão do Afeganistão mas não a do Iraque, que só teve lugar em 2003 e propiciou a criação do "Estado Islâmico". Nem a da Líbia, nem a interferência na Síria ou o apoio às chamadas "primaveras árabes". 

O fundamentalismo americano, só comparável ao fundamentalismo islâmico, levou Bush a considerar que o Irão, o Iraque e a Coreia constituíam um Eixo do Mal. A propagação das igrejas baptistas, metodistas e demais seitas evangélicas contribui largamente para esta mentalidade falsamente puritana que se julga detentora da única verdade e da sua superioridade moral sobre os restantes países do mundo.

É dedicado um capítulo especial à análise das eleições presidenciais americanas de 2000, cujo processo eleitoral foi manipulado por ambos os candidatos, George W. Bush e Al Gore, ainda que pareça ter sido Al Gore o vencedor e não o filho do ex-presidente George Bush. O processo é descrito minuciosamente e apontadas todas as deficiências da máquina eleitoral americana, susceptível das mais assombrosas manobras. 

O autor debruça-se ainda sobre a maneira como o estilo de vida e pensamento norte-americanos se têm introduzido progressivamente nos outros países, através do cinema e da televisão, da música e da forma de vestir, das tecnologias e da alimentação. É recordado, a propósito, o livro de Benjamin R. Barber (1995), Jihad vs. McWorld: How Globalism and Tribalism Are Reshaping the World. Mas existem muitas obras sobre este tema. Convém citar este parágrafo do livro, página 231: «A única defesa contra este imperialismo cultural é o nacionalismo, que tanto pode expressar-se no benigno e ligeiramente hipócrita antiamericanismo francês ou, de uma forma muito mais perigosa, no enraivecido fanatismo racial de Usama bin Laden e do defunto e nada lamentado governo talibã do Afeganistão. No mundo de George W. Bush, as duas únicas escolhas possíveis são entre a McDonald's e bin Laden; entre o bem do capitalismo e da globalização e o mal do terrorismo; entre o acesso sem restrições dos gigantes dos media americanos às cadeias de televisão e às salas de cinema estrangeiras e o Ministério do Vício e da Virtude dos talibãs.»

Poderia transcrever centenas de parágrafos, poderia mesmo transcrever integralmente o livro mas tal não é possível. Tendo sido publicado há vinte e dois anos este livro mantém plena actualidade e só é pena que, dado o intervalo de tempo, não estejam registados os acontecimentos das últimas duas décadas como, por exemplo, o conflito na Ucrânia que, na sua forma militar, já se arrasta há mais de dois anos. 

Para os interessados nas tentativas (grande parte com êxito) dos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial, para controlarem o planeta, impondo uma só verdade, o livro em apreço (muito bem escrito, e bem traduzido) é de inestimável utilidade.