Li agora, tinha-o comprado aquando da sua publicação, Les enfants d'Alexandrie (2011), de Françoise Chandernagor, I volume da Tetralogia La reine oubliée, que a autora dedicou aos filhos de Cleópatra VII, e cujos volumes seguintes foram: II - Les dames de Rome (2012); III - L'homme de Césarée (2020); IV - Le Jardin des Cendres (2022).
As "crianças de Alexandria" são, pois, os filhos de Cleópatra VII Filopátor (69-30 AC), a saber: Ptolemeu XV Césarion (47-30 AC), fruto da sua ligação com Júlio César (100-44 AC); os gémeos Alexandre Hélios (40-29 AC) e Cleópatra Selene II (40-6 AC) e Ptolemeu Filadelfo (36-29 AC), os três fruto da sua ligação com Marco António (83-30 AC).
A "rainha esquecida" é Cleópatra Selene II, a única que chegou à idade adulta, tendo casado com Juba II, rei da Numídia e de Cesareia (Mauritânia Romana). Ptolemeu XV Césarion foi mandado assassinar por Octávio César Augusto (não lhe convinha um filho de Júlio César vivo). Alexandre Hélios e Ptolemeu Filadelfo foram levados por Octávio para Roma, tendo sido perdido o seu rasto (é suposto terem morrido entre 29 e 25 AC).
A narrativa de Françoise Chandernagor é brilhante. A autora explica em 'Note de l'Auteur' a forma como concebeu a estória. Ela assenta nas fontes históricas existentes (e manifestamente insuficientes quando se trata dos filhos de Cleópatra), que constituem a estrutura do romance. Os hiatos são colmatados pela criação ficcional, que tenta imaginar, com a proximidade possível, o que teria sido a realidade. Não sendo propriamente um romance histórico, o livro é um romance profundamente alicerçado na história. Essas explicações, que tratam dos nomes das personagens e dos lugares, e dos costumes, começam por aludir à grande obra de referência do género, as Mémoires d'Hadrien, de Marguerite Yourcenar. Lembro-me, a propósito, de outros clássicos semelhantes, os livros de Mary Renault, sobre Alexandre Magno, ou de Gore Vidal, sobre Juliano.
É justo reconhecer e enaltecer a grande erudição de Françoise Chandernagor, que lhe permite referências exactas à História Romana e do Egipto Ptolemaico e, simultaneamente, pertinentes alusões ao presente, um exercício difícil mas coroado de êxito.
Conta-se a vida quotidiana das crianças em Alexandria, mais tarde acompanhadas de Antyllus, filho de Marco António e de Fúlvia, e de Iotapa, filha do rei Artavasdes, da Média Atropatene, até à célebre batalha naval de 2 de Setembro de 31 AC, em que Octávio derrota (ou obriga a fugir) António.
Depois da batalha de Actium (ao sul de Corfu), a autora imagina um diálogo entre o fantasma de Júlio César e Marco António, e que termina por uma alusão a Cleópatra, ambos navegando no navio almirante da esquadra derrotada: «Baise-la, Marc Antoine, c'est la seule chose que tu fasses mieux que moi, ne l'en prive pas; baise-la» (p. 213).
Transcrevo das páginas 215/6: «Mais peut-être lui, jusque dans les moments d'égarement, continue-t-il à dialoguer avec César? Cette femme qu'ils ont tous les deux possédés, Antoine, ce soir, prend plaisir à la contraindre, à l'humilier: le corps de Cléopâtre est son seul empire désormais - trop petite pour être partagé! Vaincu, il veut vaincre - obliger la Reine à avouer qu'avec César elle n'a jamis joui, qu'il baisait maigre, comme un prêtre végétarien, l'un de ces dévots d'Isis qui sentent le navet: "Et ça, il te le faisait, ton amant, dis? Is savait, ton grand homme, que tu es une salope? Une pute, qu'il faut baiser en pute!" Le bateau craque de toutes ses membrures sous les paquets de mer. Les dieux interdisent de s'aimer sur un navire en marche, mais elle veut qu'il oublie. Et elle dit "mon maître", dit "encore", dit "seulement toi"...»
«Pour la sexualité, les Anciens sont "modernes". Rien moins que puritains. La position du missionaire, très peux pour eux! Ce qui n'empêche pas qu'ils aient, comme un chacun, leurs dégoûts et leurs tabous. Différents des nôtres: rien de plus ordinaire à leurs yeux que la bisexualité, une notion qui n'a même pas de sens pour un Romain -"on baise, ou quoi?"; et rien de plus banal, de plus charmant, que la pédophilie: tous les partenaires sont permis pourvu qu'on garde un rôle "actif"; mais pas question, entre amants convenables, de s'ébattre en pleine lumière (on éteint la lampe), ni de confondre le haut avec le bas - dans la gymnastique amoureuse, le haut ne comunique qu'avec le haut, et le bas qu'avec le bas. Chez un "homme libre" et une femme respectable, la pureté des lèvres, la propreté de la langue sont sacrées. Fellatio? Cunnilinctus? C'est du latin, d'accord, comme Irrumo ("je t'en mets plein la bouche"), mais ce sont des insultes. Sauf quand on s'adresse à des esclaves. Ou à des courtisanes.»
Uma das coisas que muito indignou Marco António foi a violação do seu testamento, depositado à guarda das Vestais, antes da sua segunda campanha na Arménia. Octávio cometeu um acto sem precedentes, ilegal e sacrílego: ameaçar a Grande Vestal para que esta lhe entregasse o testamento de um homem vivo! Era, nesse tempo, mais chocante de que violar uma sepultura (p. 225). Pois Octávio quebrou os selos e leu partes do testamento no Senado, ocultando a data. O documento repartia os reinos (do Oriente) pelos filhos de Cleópatra e confirmava a filiação de Césarion. Como as chamadas Doações de Alexandria não tinham sido ratificadas pelo Senado, António parecia confirmá-las para desafiar o povo romano. Chegou-se ao ponto de pretender que, qual pai indigno, havia deserdado as filhas nascidas de Octávia.
Octávio César Augusto, que todos veneramos, que foi o primeiro imperador de Roma, o artífice da Pax Romana e que transformou o Mediterrâneo no Mare Nostrum, é realmente (mesmo para os padrões da época) um carácter mesquinho, vingativo, ambicioso, cruel, calculista, puritano, dissimulado. Os grandes homens têm defeitos (por vezes grandes) mas Octávio exagerou e foi muito diferente de seu tio-avô e pai adoptivo, Júlio César.
«Un personnage de théâtre: depuis que, par Séléné, j'ai découvert Marc Antoine, je le vois comme un héros shakespearien - Shakespeare n'a-t-il fait de lui le protagoniste de deux tragédies? L'une où rayonne l'Antoine juvénil, orateur superbe et conquérant, force de la nature et soleil invancu; l'autre où s'éteint le vaincu d'Actium, l'homme humilié des dernières années dont le regard s'embue de tristesse et d'álcool. Personne, cependant, n'a la moindre idée du physique d'Antoine: Octave a détruit ses portraits... On sait juste qu'il fut d'une "éclatante beauté". À vingt ans, pareille beauté vaut titres; à quarante, la vie exige bien d'autres garanties pour consolider le crédit» (p. 244).
Les enfants d'Alexandrie é um romance sobre os filhos de Cleópatra. Mas é também um romance sobre Cleópatra e sobre Marco António. E sobre Octávio. Françoise Chandernagor não esconde a sua antipatia por Octávio e exprime-a sempre que a oportunidade surge. Octávio, que ficou para a História pelo seu génio político, é uma figura humanamente pouco recomendável. Quanto a Cleópatra, a posição de Chandernagor é mais equilibrada, apontando-lhe as supostas qualidades e defeitos. Mas quem a autora verdadeiramente aprecia é Marco António, cujas virtudes, a par de menores vícios, se compraz em exaltar. E eu estou de acordo com ela. António é um ser humano, talvez demasiado humano, e merece por isso a minha simpatia. Belo, culto, valente, amante dos prazeres da vida, generoso e solidário, foi o oposto de Octávio. Creio, mas posso estar errado, que o grande Júlio César (que poderia ter sido historicamente o primeiro imperador de Roma) se situa entre Octávio César Augusto e Marco António.
* * * * *
Mas António foi abandonado pelos deuses e perdeu Alexandria e tudo o mais. Não resisto em publicar aqui, a propósito, o célebre poema de Constantin P. Cavafy, o eterno Poeta da cidade:
O deus abandona António
Quando, subitamente, à meia-noite,
ouvires passar um cortejo invisível,
com música deliciosa, com vozes –
não lamentes a tua sorte, agora vacilante,
as tuas obras que fracassaram, os teus projectos de vida
que se revelaram um equívoco, não os lamentes em vão.
Como homem há muito preparado, como homem cheio de coragem,
diz o teu último adeus à Alexandria, que se afasta.
Acima de tudo, não te iludas, não digas
que foi um sonho, ou que os teus ouvidos te enganaram;
não te humilhes a esperanças tão vagas.
Como homem há muito preparado, como homem cheio de coragem,
como convém a quem foi digno de uma tal cidade,
aproxima-te resolutamente da janela,
e escuta, com emoção, mas não
com as lamentações e as súplicas dos covardes,
escuta, é o teu último prazer, os sons
da música deliciosa desse estranho cortejo,
e diz o teu último adeus à Alexandria que perdes.
(Tradução minha a partir do original grego e das versões portuguesas, francesas e inglesas)
* * * * *
O livro termina com o ataque de Octávio ao Egipto e o suicídio de Marco António e de Cleópatra. A descrição não corresponderá exactamente à verdade histórica, mas também não conhecemos os detalhes do que verdadeiramente ocorreu em Alexandria. Ptolemeu XV Césarion fugira para sul do país, por decisão de Cleópatra, mas sabemos que posteriormente regressou à cidade e foi mandado assassinar por Octávio. Alexandre Hélios, Selene e Ptolemeu Filadelfo foram enviados para Roma para serem incorporados no desfile do Triunfo de Octávio. Antyllus foi também mandado assassinar por Octávio ainda em Alexandria. Iotapa, devolvida à sua família. De Alexandre Hélios e de Ptolemeu Filadelfo, cujo rasto se perdeu, supõe-se que terão morrido pouco tempo depois. Quanto a Selene, a autora dedica-lhe os três seguintes volumes da obra.
As notas que Françoise Chandernagor inclui no fim deste I volume revelam profunda ilustração, fornecem preciosas indicações, especialmente para quem não esteja familiarizado com o tema, e contribuem para uma ampla compreensão da forma como a autora imaginou e escreveu a obra.
Logo que possível, lerei os restantes volumes que compõem a Tetralogia. Nunca tinha lido Chandernagor. Não perdi o meu tempo.
2 comentários:
Mais uma vez o autor do blog desperta justa curiosidade e interesse na leitura de um livro por cá pouco (ou nada) referenciado. O fim do Helenismo histórico é uma época fascinante,e não por acaso inspirou boa parte da poesia de Kavafis.Procurarei assim ler Chandernagor. Só notaria que, de acordo com as fontes correntes Cesarion terá sido executado a mando de Octávio,não em Roma,mas sim em Alexandria, tendo-se gorado o plano de sua mãe quanto a uma fuga para a Índia.
Para o Anónimo das 02.29:
Vale a pena ler Chandernagor.
Césarion foi morto em Alexandria, não tendo sido enviado para Roma com os irmãos. Um lapso que já corrigi. No volume seguinte, a autora descreve a viagem para Roma dos três irmãos sobreviventes, que participaram no desfile do Triunfo de Octávio, e dos quais só Selene chegaria à idade adulta.
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