sábado, 15 de abril de 2023

OS OTOMANOS

Por sugestão de um amigo, comprei e li o livro Os Otomanos - Cãs, Césares e Califas, de Marc David Bauer, no original The Ottomans - Khans, Caesars, and Caliphs.

A narrativa apresenta-se desorganizada e confusa, o que alonga o livro para mais de 500 extensas páginas. Falta de sistematização, informação desnecessária e repetitiva, mistura de acontecimentos, incorrecção dos factos, de tudo isto sofre a narrativa. Superficialmente detectei vários erros, alguns dos quais anotei. Mas é possível que existam muitos mais, que não procurei confirmar.

Na pág. 142, o autor escreve que Solimão I «foi o primeiro sultão a denominar-se califa». Não é verdade. O primeiro sultão que se tornou califa foi o pai deste Selim I, após a conquista do Egipto em 1517. Mais adiante (pág. 149) escreve que «Selim I não se proclamou califa. Transferiu Al-Mutawakkil, o califa descendente dos membros da dinastia abássida que tinham sobrevivido ao saque de Bagdade pelos mongóis e que se haviam refugiado junto dos mamelucos, do  Cairo para Istambul». É verdade que após a conquista do Egipto, Selim I levou para Istanbul o último califa abássida, Al-Mutawakkil III, mas este transferiu para Selim I a dignidade califal, até porque as relíquias do Profeta Muhammad já tinham sido levadas de Meca e de Medina para a capital otomana.

Na pág, 161, o autor escreve: «Carlos V estava mais concentrado em conquistar a península italiana do que em solucionar a disputa interna na Alemanha, e o seu filho Fernando, que pôs à frente da Alemanha...». Ora Fernando não era filho de Carlos V, mas irmão, e só ficou à frente da Alemanha depois da abdicação de Carlos Quinto (1556), quando foi proclamado imperador do Santo Império Romano Germânico, pela Dieta Imperial em 1558).

Na pág. 190, o autor escreve: «Em vez de seguir a rota direta através do Mediterrâneo e mar Vermelho e depois cruzar o oceano Índico até à costa de Malabar, na Índia, Vasco da Gama desceu ao longo da costa ocidental de África, contornou o cabo e em seguida subiu pela costa leste, em 1497, porque os otomanos e o Império Mameluco no Egito controlavam o comércio no Mediterrâneo Oriental». Não existindo à data o Canal de Suez, pergunta-se como poderia Vasco da Gama ter efectuado o percurso sugerido pelo autor?

Há, todavia, um aspecto que transforma o livro numa calamidade: a tradução. Não li o original inglês mas não é necessário para mergulhar num pântano de disparates. Não é só a tradução geral que é medíocre, a tradução dos nomes próprios chega a ser ininteligível, porque não respeita qualquer regra de uniformidade. E na transliteração de nomes árabes, os ingleses até costumam ser melhores do que os franceses, por isso admito que o original esteja de acordo com as regras. Ninguém deveria traduzir livros com nomes árabes ou turcos (até Atatürk os turcos utilizavam o alfabeto árabe) sem possuir umas noções elementares de árabe.

Eis alguns exemplos: 

- Hádice em vez de hadith

- Gidá em vez de Jeddah

- Mocha em vez de Mokha 

- Mádi em vez de Mahdi

- Hayreddin em vez de Khair ed Din

- Gazi em vez de Ghazi 

E muitos mais, inumeráveis.

Na página 82, está escrito: «Numa escaramuça, a infantaria otomana abateu o cavalo de João Hunyadi, que se desmoronou debaixo dele..». Não é usual um cavalo desmoronar-se.

Na página 210, diz-se que harém significa lar. Verdadeiramente, harém significa o que é proibido, ao contrário de halal que significa o que é permitido. Na sua significação corrente usa-se para indicar o lugar reservado às mulheres do sultão no seu palácio, um local por natureza proibido, mas não é propriamente um lar.

Há muitos outros disparates que não anotei.

Existe, todavia, um aspecto enfatizado pelo autor ao longo de todo o livro, e ao qual dedica mesmo um capítulo especial: a Pederastia. Sabemos todos que as relações homossexuais masculinas foram hábito corrente e normal entre os turcos durante todo o Império Otomano e mesmo depois, embora desde há mais de um século, devido aos complexos ocidentais, os turcos se empenhem em omitir este facto ou a desvalorizá-lo. Essas relações eram mantidas entre homens em geral, mas mais particularmente entre homens e rapazes. Nunca ninguém pensou que pudessem ser classificadas de crime ou pecado. Se alguém o dissesse aos turcos, ou até aos árabes, receberia de resposta uma expressão de espanto e um sorriso compadecido.

Os turcos não chegaram ao refinamento dos antigo gregos, que fizeram praticamente da pederastia uma instituição, mas eram extraordinariamente receptivos à prática, apesar de algumas equívocas condenações no Corão, decorrentes dos textos da Torah e da Bíblia judaica, aliás os mesmos livros. A pederastia turco era menos codificada, e por isso mais livre, do que a pederastia grega, assemelhando-se mais à romana e à que teve grande expressão na Europa durante o Renascimento, em especial no Renascimento italiano.

Mas Marc David Baer empenha-se em recordar-nos alguns episódios historicamente documentados, para lá de descrever o clima reinante, quer no Palácio Imperial, quer entre os cidadãos comuns.

O capítulo em questão começa por incluir um poema de Maomé II (Mehemet II) dedicado a um seu jovem amante cristão. «Os poetas que eram atraídos por mulheres em vez de rapazes eram descritos como estranhos» (p. 237). As cidades que possuíam os rapazes mais belos eram, segundo o autor, Belgrado, Bursa, Edirne, Istanbul e Rize. 

Na zona de Gálata, do outro lado do Corno de Ouro (a parte genovesa da cidade) havia então um bairro onde nas suas tabernas os turcos se deleitavam com rapazes cristãos seus amantes.

Havia também mulheres que amavam mulheres, embora isso fosse inconcebível para a maioria dos homens otomanos. No teatro de sombras otomano, possivelmente trazido do Egipto para Istanbul por Selim I, eram representadas peças libidinosas, nas quais ninguém tentava conservar a virtude ou lutar contra as tentações de Satanás. 

O historiador otomano Mustafa Ali (século XVI) «apresentou uma etnografia sexual de rapazes de diferentes nações. Olhando com sobranceria para os orientais (árabes e turcos), o escritor de origem bósnia louvou "os rapazes escravos, altos e de lábios grossos, da Bósnia [que] estão sempre recetivos para o serviço". Os curdos imberbes eram "irrepreensíveis e obrigados a ser afáveis e muitíssimo obedientes em tudo o que lhes seja proposto" e tingiam-se "no baixo-ventre com hena". Aqueles que desejavam a "célebre beleza do rosto e queriam fervorosamente ser servidos por ciprestes de corpo argênteo, de estatura elevada e movimentos elegantes" voltavam-se para os bailarinos do Sudeste da Europa, ou os circassianos, ou os "croatas almiscarados e deleitáveis saídos dos janízaros". Os albaneses roubavam o coração aos seus amantes, mas eram "impertinentes e obstinados". Os georgianos e russos também estavam disponíveis para "prazeres eróticos". (p. 242)

 

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Independentemente da tradução e para lá de uma narrativa quiçá desorganizada e com algumas incorrecções, o livro dá-nos uma perspectiva da importante posição do Império Otomano na Idade Moderna (que começou, segundo os historiadores, com a tomada de Constantinopla, em 1453) e na Idade Contemporânea. O Império foi um poderoso estado euro-asiático e contribuiu em muitos aspectos para a modernidade. Como potência muçulmana, foi muito mais tolerante com as outras religiões do que a Europa cristã, acolhendo geralmente bem os judeus, que para lá emigraram depois da expulsão de Espanha e de Portugal. Ao longo de cinco séculos, o Império Otomano foi uma realidade incontornável numa Europa católica, ortodoxa e protestante. O sultão, e também califa, pretendeu desde muito cedo tornar-se césar (afinal, era o "sucessor" do imperador bizantino) e conquistar Roma (e talvez encarnar o Papado (?). Mas a ambição da Sublime Porta, a designação habitual do Governo otomano, foi travada às portas de Viena. Diga-se, de passagem, que a Sublime Porta (ela mesma, a porta, Bab i-Ali) ainda existe. Era a porta que dava entrada para o palácio do Grão-Vizir, nas proximidades do palácio de Topkapi. Tenho uma fotografia minha à entrada. Também podemos considerar que se registou um Renascimento naquela extremidade da Europa que, ao contrário das versões que circulam entre nós, era extraordinariamente culta. A nota negativa vai mais no sentido da crueldade muitas vezes verificada em circunstâncias injustificadas, se é que alguma vez ela se justifica. Especialmente, o hábito dos sultões, quando subiam ao trono, mandarem matar todos os irmãos (e às vezes tios e primos) para evitar disputas da sucessão. Mas o Ocidente, naqueles séculos, não era também muito clemente. E foi no Império Otomano (aliás, logo a seguir à sua queda e à proclamação da República da Turquia) que se operou a mais notável modificação de escrita do último século, quando Mustafa Kemal Atatürk decidiu substituir o alfabeto árabe que era utilizado pela língua turca pelo alfabeto latino.

Os últimos tempos do Império encontram-se bem documentados ainda que a descrição, como habitualmente, seja emaranhada. O livro dedica largo espaço ao extermínio dos arménios, ensaiando explicações para o sucedido, um acontecimento estranho no Império que, ao longo dos séculos, e salvo situações pontuais, se empenhara, de uma maneira geral, na convivência dos seus súbditos, independentemente de raça, língua ou religião. Conclui Marc David Baer que tal se ficou a dever à simultaneidade de um conjunto de circunstâncias, no decorrer da Primeira Guerra Mundial. Na sequência desta, e da ocupação da Turquia pelos exércitos ocidentais, Mustafa Kemal organizou o restante das forças turcas, promoveu a constituição da Grande Assembleia Nacional, que viria a determinar a extinção do Sultanato, em 1922 e a abolição do Califado, em 1924. Em 1923, foi proclamada em Ancara a República Turca, secular e ocidentalizada. O Estado Otomano tinha acabado.

 

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