Acabei de ler Pessoa - Uma Biografia, de Richard Zenith, livro publicado no mês passado. Trata-se da tradução de Pessoa - A Biography, editado no ano anterior, e vertido para português por Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes. Está muito bem escrito e a tradução é magnífica. Posso admitir que Zenith, que conhece perfeitamente a língua portuguesa, tenha passado a vista pela versão no nosso idioma, mas esta suposição é irrelevante. Tem ainda o livro a excelsa qualidade de não utilizar a sinistra grafia do Acordo Ortográfico 1990.
Não seria possível comentar aqui, de forma interessante, uma obra com quase 1 200 páginas, tratando da vida daquele que é considerado o maior poeta português (Camões é um caso à parte) e também da sua obra, uma vez que, na linha de Sainte-Beuve que Proust contestava, entendo que a obra não é independente da vida, e que o conhecimento desta é fundamental para a compreensão daquela.
Esta biografia, apesar da sua dimensão, não poderá considerar-se definitiva, opinião corroborada pelo autor. Não só porque na vida nada é definitivo (a não ser a morte) como pelo facto de ainda existirem, na mais célebre arca que este país alguma vez teve, muitos manuscritos por decifrar e Pessoa ser useiro e vezeiro em nos pregar partidas e nos surpreender pelo realmente inesperado. E também porque cada biógrafo privilegiará os aspectos da vida que considere mais importantes.
A primeira biografia de Fernando Pessoa foi publicada em 1950, e deve-se ao empenho de João Gaspar Simões, que conviveu com o Poeta e é de alguma forma o "responsável" pela apresentação dele ao país e ao mundo. Desde então, centenas de livros têm sido publicados sobre Pessoa e a sua obra, a qual começou a ser editada em 1960 e não cessou até hoje de protagonizar sucessivas edições. Também António Quadros publicou uma biografia do Poeta em 1981/1982, em dois volumes, reeditada em volume único em 1984.
A obra de Richard Zenith inicia-se com o elenco das dramatis personae, ou seja, com a indicação dos principais heterónimos e pseudónimos de Fernando Pessoa e seus atributos.
Com tantas obras já publicadas sobre Pessoa, julgávamos saber o essencial da sua vida, ainda que esta nunca fosse de meridiana clareza mesmo para os seus amigos mais íntimos, supondo que considerava amigos os literatos que integravam o seu círculo próximo. Lendo Zenith, podemos concluir que estávamos enganados. O biógrafo procedeu a uma investigação exaustiva da vida do Poeta, elucidando-nos sobre uma parcela pouco abordada, a sua infância na África do Sul. E depois, não parou de nos surpreender sobre aspectos e pormenores que desconhecíamos, ou apenas intuíamos, alguns dos quais referi anteriormente na minha página do Facebook, transcrevendo passagens do livro. Importa salientar que as referências no texto são apoiadas por notas que mencionam as fontes, tudo devidamente documentado em apêndice.
Entre as facetas menos bem conhecidas de Pessoa e que o autor menciona com pormenor estão os esquemas concebidos pelo Poeta para ganhar dinheiro, de que sempre carecia e que o levava a pedir empréstimos à família, amigos, conhecidos e mesmo a colegas de escritório e que a maior parte das vezes não liquidava. Chegou mesmo a utilizar em proveito próprio fundos da herança da mãe. E também a sua incapacidade para manter um emprego estável, a dispersão da sua criatividade e dos seus projectos de vida, a sua suspeita de que era louco ou viria a enlouquecer, a propensão para o ocultismo, desde a invocação dos espíritos em família, depois do regresso a Lisboa, ao interesse pela astrologia, teosofia, cabala, rosacrucianismo, maçonaria, cartomancia, etc.
Também nos são recordados os textos políticos e outros diversos, que evidenciam uma flutuação de convicções sobre república e monarquia, democracia e ditadura, concepções políticas, religiosas, morais, sociais, etc. Muito interessante a forma como nos é demonstrada a sucessiva criação de heterónimos/pseudónimos para se servir desses "outros eus" para as finalidades que julgou convenientes.
Mas o aspecto recorrente ao longo da biografia é a homossexualidade de Fernando Pessoa. O autor está plenamente convencido de que Pessoa era homossexual. Não apenas pelos seus escritos - em especial os poemas ingleses, maxime "Antinoos", muitos poemas do heterónimo Álvaro de Campos e mesmo de Pessoa ortónimo - mas também porque o círculo de amizades do Poeta era essencialmente masculino. Os amigos com quem tertuliava nos cafés de Lisboa, nomeadamente no Martinho da Arcada e na Brasileira do Chiado, eram todos homens, e alguns deles homossexuais praticantes (e públicos). A sua efusiva amizade com Mário de Sá-Carneiro é também um exemplo de profunda dedicação masculina. É claro que houve o episódio Ofélia Queiroz mas tratou-se tão-só de um episódio, a excepção que confirma a regra. E é notável a defesa, que assumiu, por escrito, do poeta António Botto, que não escondia, na literatura e na vida, as suas inclinações homossexuais. No seu longo prefácio aos Poemas Ingleses (edição Ática, 1974), Jorge de Sena sente-se tentado a afirmar que António Botto poderia considerar-se mais um heterónimo de Pessoa, no duplo sentido em que este se "realizou" também na poesia daquele e na vida a que ela correspondia. Mas estando convencido da homossexualidade de Fernando Pessoa, Richard Zenith está igualmente convencido de que Pessoa não passou do pensamento ao acto, sabendo-se como as relações carnais o atemorizavam ou mesmo horrorizavam. Assim, pode quase garantir-se que Fernando Pessoa nunca manteve relações homossexuais, e muito menos relações heterossexuais. Em matéria sexual, ter-se-á ficado pelo onanismo, aliás uma prática universal em todos os rapazes. Evidentemente que pode sempre afirmar-se que alguém praticou um acto quando existem provas, mas nunca pode afirmar-se que alguém nunca praticou um acto, exactamente porque não é possível garantir uma não existência. Subsistirá a dúvida!
Já próximo do fim do livro, Richard Zenith dá-nos uma versão mais elaborada sobre a sexualidade de Pessoa, que transcrevemos em Apêndice a este post.
Nesta monumental biografia de Fernando Pessoa, o autor demonstra uma vastíssima cultura literária e um conhecimento profundo da história de Portugal. E também do panorama literário universal. A sua preocupação pelo rigor das afirmações é sustentada pela referência das fontes, mencionadas no fim do livro, onde figura também a árvore genealógica do Poeta e a cronologia da sua vida.
Encontrando-se publicadas em língua portuguesa algumas centenas de obras sobre Fernando Pessoa e sucessivas edições da sua obra ortónima ou heterónima, especialmente desde as comemorações do quinquagésimo aniversário da sua morte e do centenário do seu nascimento, a presente biografia devida a Richard Zenith é uma valiosa contribuição para o aprofundamento do conhecimento da vida do autor de Mensagem. Ela regista a via sinuosa do seu pensamento e ao mesmo tempo a coerência metafísica como o exprimiu. Imperfeito certamente para os nossos padrões de normalidade de vida, Fernando Pessoa atingiu a genialidade na arte. Devemos-lhe todos um singular tributo.
«I know not what to-morrow will bring.» 29-11-1935
Segundo o registo civil, a morte de Pessoa, no dia 30, ficou a dever-se a "obstrução intestinal". Muitas pessoas indicaram cólica hepática (o que, por si só, não causaria a morte) ou cirrose, ou ainda pancreatite aguda, em resultado da grande quantidade de álcool que consumiu durante toda a vida.
APÊNDICE
Ao longo da leitura do livro, durante os meses de Junho e Julho, transcrevi para a minha página do Facebook alguns períodos que, por várias razões, me despertaram particular atenção. Resolvi resgatá-los agora e inclui-los neste post:
«O termo "campo de concentração" deve a sua origem a estes campos de detenção criados pelos britânicos durante a Guerra Anglo-Bóer e, embora fosse grosseiramente injusto comparar a intenção ou as condições deles com os campos nazis, muitos foram também lugares de horror ignominioso - não intencional, mas evitável.»
"Pessoa - Uma Biografia", Richard Zenith, p. 146
«Pessoa na vida real, como Soares, na inventada, tinha algum receio de mulheres, mas interagia com quase toda a gente - tanto homens como mulheres - a partir de uma pequena mas insuperável distância. Não há provas de que se tenha envolvido em actos de pederastia ou qualquer tipo de sexo com homens, nem há muitas provas de intensidade emocional ou paixão recíproca nas amizades masculinas que cultivou. Passava centenas de horas com homens em cafés e teve amizades que perduraram durante muitos anos, mas como se fosse por acaso, como se ele e os amigos simplesmente pertencessem ao mesmo clube. Raramente abriu o coração a outra pessoa.»
"Pessoa - Uma Biografia", Richard Zenith, p. 150
«I know not death and think it no release -
The bad indeed is better than the unknown»
(«Na morte não vejo a libertação -/É melhor o mau que o desconhecido.» Tradução de Luísa Freire)
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 210
Alguém que desempenhou um papel decisivo na vida de Fernando Pessoa foi o general Henrique Rosa, irmão do seu padrasto, homem de grande cultura e de extrema afectividade, conforme pode ler-se em "Pessoa - uma Biografia", de Richard Zenith (p. 250)
Notei uma imprecisão em "Pessoa - Uma Biografia", de Richard Zenith. Escreve o autor, a propósito de uma certa "histeria" feminina do Poeta: «Henrique Rosa, tio de Pessoa, foi sem dúvida quem lhe recomendou que consultasse o Dr. António Egas Moniz (1874-1955), seu amigo pessoal. Este psiquiatra e neurologista tornar-se-ia famoso depois de ter inventado a lobotomia, invenção que lhe valeu o Prémio Nobel em 1949 - uma distinção que se converteu numa fonte de embaraço para o país quando esta psicocirurgia caiu em descrédito. Em 1907, Pessoa marcou uma consulta com Egas Moniz, que tinha acabado de abrir um consultório em Lisboa para tratar doenças nervosas.» (p. 298)
Nota minha - Acontece que, embora se deva a Egas Moniz a prática da lobotomia, o Prémio Nobel foi-lhe concedido pelo desenvolvimento da angiografia cerebral.
«Em 1908, o Carnaval coincidiu com o início de Março e, como componente das festividades locais, um pai de família de Salsas [aldeia no nordeste de Portugal] vestido como João Franco deu a volta à terreola a cavalo, enquanto um dos filhos e outros aldeões fingiam ser a família real e o acompanhavam de perto numa carroça. Um segundo filho, que se fazia passar por um dos regicidas, saiu subitamente a correr do meio da multidão festiva e apontou uma arma à carruagem real a fingir. Ao contrário do que pensava o jovem, a arma estava carregada e ele atingiu mortalmente o irmão, replicando assim uma cena da ópera "Tosca" de Puccini, cuja heroína grita 'Que actor' quando o amante cai, morto de verdade, no que era suposto ser uma execução a fingir.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 317-8
«Jean Seul [pseudónimo de Fernando Pessoa], segundo o currículo que aparece em "The Transformation Book", nasceu em 1 de Agosto de 1885 e tinha como tarefa principal escrever "sátiras ou obras científicas com um objectivo satírico ou moral". O currículo lista três títulos dessas obras, todos eles deixados numa selecção de fragmentos desconexos. A obra mais surpreendente, "La France en 1950", imagina de forma realista o futuro de um país onde a sensualidade, o sexo e a perversão sexual determinam todas as facetas da sociedade e da vida quotidiana. Efectivamente, podemos lê-la como uma espécie de texto precursor de "Mil Novecentos e Noventa e Quatro", de George Orwell, com o Imperativo Sexual a ocupar o lugar de Big Brother. Também poderíamos considerá-la como uma sequela de "Os Cento e Vinte Dias de Sodoma", de Sade. As pessoas lavam a loiça com o sangue de crianças violadas e assassinadas. O esperma dos animais, depois de uma temporada como bebida preferida, deixou de estar na moda. Em vez de escolas técnicas, há uma École de Masturbation e uma École de Sadisme, com um corpo docente constituído por professores de Aborto e Infanticídio. Uma escola para raparigas chamada Institut Sans Hymen ensina as alunas a ser tão lascivas e pervertidas quanto lhes seja possível, com castigos severos aplicados a todas aquelas que exibam qualquer indício de vergonha ou pudor. Os jornais franceses relatam que crianças com quatro anos se suicidam depois de serem abandonadas pelos seus amantes adultos. E por aí adiante.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 323
NOTA MINHA: A obra de Orwell é "1984", mas Zenith escreve "1994" e eu, naturalmente conservei a grafia.
«Pessoa, com vinte e poucos anos, era zelosamente misógino. Adquiriu vários livros cujo objectivo era provar a inferioridade das mulheres, e num deles fez anotações nas margens que exprimiam calorosa concordância com as teses do autor. Nos seus próprios textos, argumentou que as mulheres eram inferiores aos homens, quer como pensadoras, quer como criadoras, porque eram arrastadas para baixo pela matéria, que as impedia de se elevarem.»
Richard Zenith in "Pessoa - Uma Biografia", p. 419
PESSOA E CAVAFY
«Ao mesmo tempo que Pessoa, em Lisboa, se mantinha a par das suas dívidas, obtinha novos empréstimos e dedicava uma boa dose de energia a esquemas e biscates que não lhe proporcionavam muito dinheiro, o poeta Konstantinos Kaváfis, que vivia em Alexandria, no Egipto, passava todas as manhãs a trabalhar algumas horas para os Serviços de Rega - onde por hábito chegava tarde - e tinha o resto do dia para ler, escrever e praticar outros prazeres. Por que motivo não poderia Pessoa, como o poeta grego, ter um trabalho a tempo parcial, o que lhe teria poupado e evitado tensões nervosas?» (p. 435)
«A orientação sexual pode ser vista como outro ponto de proximidade entre os dois escritores, mas também de separação. Apesar de não ser um homossexual praticante como Kaváfis, Pessoa reconhecia em si uma "inversão sexual fruste". O modo como a sexualidade se apresenta nas vidas e obras de ambos explica em parte por que razão as suas poesias, apesar das similitudes de educação literária, são fundamentalmente diferentes.
Kaváfis pagava sem inibições a empregados de loja, moços de recados e outros jovens biscateiros para ter sexo com eles (vivia convenientemente por cima de um bordel masculino) e depois, como um mestre joalheiro, engastava essas aventuras de uma noite em versos narrativos elegantemente simples, que os fazia sobressair como espantosos solitários memorialísticos.» (p. 436)
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia)
NOTA PESSOAL: Zenith comete aqui um lapso. Kaváfis (ou Cavafy, como se pretender) vivia num andar por cima de um bordel, mas de um bordel feminino, na então Rua Lepsius, hoje Rua Sharm el-Sheikh. Estive algumas vezes na casa que Cavafy habitou e que é hoje uma Casa-Museu, mantida pelo Consulado-Geral da Grécia em Alexandria.
«Pessoa tomou como dado adquirido que Shakespeare era homossexual, com base na famosa sequência de sonetos dedicados a um "belo jovem". Curiosamente, nunca considerou a possibilidade de que esta sequência não fosse autobiográfica. Ainda mais curiosamente, postulou uma relação directa entre a inventividade dramática de Shakespeare e a pretensa homossexualidade dele. Num ensaio inacabado de 1913, escreveu que "nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por ex., a inversão sexual". O que esta afirmação realmente significa, dado que o poeta português se comparava constantemente ao dramaturgo inglês, retratando-o à sua própria imagem, é que a dita intuição e a dita inversão eram inseparáveis na personalidade de Fernando Pessoa.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 438
«[...] a verdadeira ambição de Pessoa era enganar toda a gente, lançando Caeiro como um poeta independente, enquanto ele permanecia nos bastidores, fora de vista. Que Caeiro fosse um imortal literário e ele um completo desconhecido - isso seria, para Pessoa, o maior triunfo. Nunca poderia ter sonhado alcançar nada de parecido com Alexander Search, que não era psicológica nem mesmo biograficamente tão diferente do criador e cuja poesia era boa mas não genial.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 452
«Uma das coisas que Campos aprendeu com Whitman foi a maneira de incluir naturalmente o corpo e a linguagem sexuais na poesia, como parte do seu interesse apaixonado pela humanidade em geral e pela sua humanidade em particular. Em Fevereiro de 1914, Pessoa escrevera um novo soneto para o "Livro do Outro Amor", mas esse "outro" amor continuava a ser transcendental, inspirado por uma "Vénus masculina" que levava o narrador a esquecer tudo sobre "anseios carnais". Álvaro de Campos, aparecendo três ou quatro meses depois, trouxe tudo para baixo, para a terra, e para o seu grande e vigoroso eu. Abertamente bissexual, não se furtava a versificar as suas fantasias de ser maltratado e possuído por piratas selvagens (em "Ode marítima", 1915).”
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 467
«Embora Pessoa, nos seus textos, tenha incansavelmente qualificado Maurras como um reaccionário, partilhava a aversão do ideólogo pela democracia popular e a descrença em relação à viabilidade de uma sociedade sem classes. Não obstante, considerava-se um progressista, por defender um sistema de classes moderno dentro de linhas não tradicionais. Em vez de escolher entre os ideais democráticos como encarnados pela república - que tinha até então produzido resultados bastante desencorajadores - e o projecto integralista de ressurreição da monarquia, engendrou uma solução híbrida para Portugal: uma república aristocrática.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 485
Nota Richard Zenith, na sua obra "Pessoa - Uma Biografia" (p. 521), que durante os quarenta anos a seguir à morte de Pessoa os seguintes versos da "Ode Triunfal", de Álvaro de Campos, publicada pela primeira vez no nº 1 da revista "Orpheu", foram censurados nas edições portuguesas:
«E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.»
Continuando a ler "Pessoa - Uma Biografia", de Richard Zenith, encontro a p. 538 a transcrição dos primeiros versos da "Saudação a Walt Whitman", de que cito os três últimos da passagem referida:
«Espasmo p'ra dentro de todos os objectos de fora,
'Souteneur' de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares, paneleiro de Deus!»
Ignorando até ao momento a expressão "paneleiro de Deus" nesta obra (distracção minha), fui buscar a Obra Poética de Fernando Pessoa, organizada por Maria Aliete Galhoz (MAG) , Aguilar Editora, (1965) e procurei o poema. MAG dá a mesma versão de Zenith, substituindo porém por "..." a expressão em questão.
Resolvi consultar também a Poesia de Álvaro de Campos, organizada por Teresa Rita Lopes (TRL), Assírio & Alvim (2002) e confrontei. TRL fornece, e bem, a mesma versão de Zenith.
Para tranquilidade, abri Poemas de Álvaro de Campos, organização de Cleonice Berardinelli (CB), Imprensa Nacional-Casa da Moeda (1990) e percorri as variantes da Saudação, visto tratar-se de uma edição crítica. Não obstante o meu esforço, não encontrei a expressão em causa.
Por curiosidade, fui ver ainda a velha edição da Ática, Poesias de Álvaro de Campos (1980), organizada por João Gaspar Simões e Luís de Montalvor. A expressão é igualmente substituída por "..." como em MAG, havendo também a substituição de "objectos de fora" por "objectos-força".
Não tendo paciência para procurar as outras edições que possuo, concluo que a expressão "paneleiro de Deus" que Zenith menciona é correcta (Pessoa tê-la-á escrito), tendo sido censurada por questões "morais"!
Com tempo, consultarei as restantes edições da obra do heterónimo Álvaro de Campos, a propósito destes versos.
«A viagem filosófica, visionária, da primeira secção da ode [Ode marítima] ocupa duzentos e dez versos, ponto em que Campos, subitamente possuído pelo "delírio das coisas do mar", dá por si a precipitar-se através "de noites misteriosas e profundas" da imaginação, impelido por um desejo extático. Esta segunda secção, a 'antístrofe' da ode, é uma rapsódia sobre homens duros e rudes que vivem no mar, especialmente piratas, os mais duros e cruéis, e o sonho de Campos é ser a "mulher-todas-as-mulheres" que esperam por eles nos portos, para serem "violadas, mortas, feridas, rasgadas" por eles, para "senti-los num vasto espasmo passivo!"»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 546-7
«Álvaro de Campos tinha pelo menos um apoiante, e mesmo colaborador, em Raul Leal. No mesmo dia em que Afonso Costa deu o mergulho quase fatal da janela de um eléctrico, o fundador, profeta e discípulo único do vertiginismo publicou também um panfleto densamente impresso, no qual castigava o chefe do Partido Democrático por estar "emporcalhando [o mundo] com as suas fétidas exalações de alma, envenenando-a num derramamento de pus em que a sua alma, cancro fatal, cheia de angústias perversas toda se desfaz". 'O Bando Sinistro - Apelo aos Intelectuais Portugueses', que Leal distribuiu por cafés e na linha de comboio de Lisboa-Cascais, continha mais duas mil e quinhentas palavras identicamente brutais de invectiva contra Costa e os seus apoiantes, que alternavam com jeremiadas contra a república e previsões de um futuro mais brilhante e vertiginoso para Portugal.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 550
Transcrevo este parágrafo, porque o nome 'Octávio' evoca-me algumas memórias. E o 'Gil', também.
«Talvez tenham sido as ficções de Sá-Carneiro que inspiraram Victoriano Braga a escrever sobre um homem sexualmente perturbado em "Octávio". O protagonista epónimo da peça, um músico de uma família aristocrática, torna claro no diálogo de abertura com um amigo chamado Gil que não se interessa por mulheres, a não ser como objectos esteticamente agradáveis. Admite, contudo, estar apaixonado por um jovem violinista italiano, e ficamos a saber que convive com outros jovens aos quais Gil chama 'exploradores' - homens, ao que parece, que não pertencem ao seu estrato social e o forçam a pagar caro pelos seus favores sexuais. Contra o conselho de Gil, Octávio casa-se com uma jovem a quem traz apenas infelicidade. O casamento nunca se consuma, ela engravida de um amante e Octávio - já gravemente doente - perde o juízo e morre de desespero quando a sua mãe lhe dá a 'boa nova' de que vai ser pai.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 571
COMO EU COMPREENDO PESSOA!
«[...] Pessoa, que não gostava de feriados e da obrigação de os comemorar [...]»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 578
Em 1916, Fernando Pessoa, nas suas invocações de espíritos em que actuava como médium, criou um Mestre, Henry More, que o aconselhava sobre a sua vida sexual, questão que muito preocupava o Poeta. Este registou, com uma caligrafia infantil, vários dos conselhos do Mestre, que aqui se transcrevem:
«Não deves continuar casto. És tão misógino que vais ficar moralmente impotente e dessa maneira não produzirás nenhuma obra literária completa. Tens de abandonar a tua vida monástica, e já. [...] Manter a castidade é para homens mais fortes que têm de [continuar castos] devido a problemas de saúde. Isto não se aplica a ti. Um homem que se masturba não é forte, e um homem não é homem se não for um amante. [...] Tu és um homem que se masturba e que sonha com mulheres à maneira de masturbador. Homem é homem. Nenhum homem pode mover-se entre homens se não for um homem como eles.»
«Onanista! Casa-te comigo! Acaba com o onanismo já.
Ama-me.
Masturbador! Masoquista! Homem sem virilidade! [...]
Homem sem piça de homem! Homem com clítoris em vez de piça!
Homem com uma moralidade de mulher para o casamento. Animal! Verme brilhante.
Margaret Mansel»
[Margaret Mansel era uma mulher que o Mestre Henry More lhe havia destinado]
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 589-590 e 592
«Os espíritos astrais que comunicaram com William Butler Yeats e Georgie Hyde-Lees, sua mulher e muito mais nova, em cerca de quatrocentas e cinquenta sessões de escrita automática levadas a cabo entre 1917 e 1921, também sublinharam a importância da satisfação sexual, argumentando que o êxito criativo do poeta irlandês dependia disso. Mesmo o êxito das sessões de escrita automática dependia disso, uma vez que a médium - Georgie, ou George, como era tratada pelo marido - só actuava bem quando Willy actuava bem na cama. Os comunicadores lembravam-lhe repetidamente que cumprisse adequadamente as suas obrigações sexuais e disseram em várias ocasiões ao casal que acabasse as sessões de escrita e fosse directamente para a cama.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 591
[NOTA MINHA - Yeats recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1923]
«Num passo de um ensaio inacabado sobre o imperialismo, datado de cerca de 1916, afirma de maneira categórica que um império colonizador procura acertadamente disseminar a sua própria civilização apenas por isso mesmo, para a disseminar, e não porque beneficiaria o colonizado. E prossegue: "A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização."»
«As frases citadas são um dos raros mas não únicos exemplos do sentimento ostensivamente racista de Pessoa. Um par de anos mais tarde haveria de afirmar, em inglês, que os negros "não são seres humanos, sociologicamente falando. O maior crime contra a civilização foi a abolição da escravatura". Estas palavras, publicadas aqui pela primeira vez, são retiradas de um passo no qual argumenta que a democracia na Grécia e na Roma antigas teve êxito porque havia classes sociais distintas, incluindo escravos e aristocratas.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 615
«Muitos europeus que acompanharam os debates da Conferência de Paz consideraram que, apesar de bem intencionado, Wilson simplesmente não era capaz de compreender a Europa. Provavelmente ninguém terá veiculado essa incapacidade com palavras tão francas como as de Pessoa: "Enquanto americano, as grandiosas tradições nas quais a nossa civilização assenta são-lhe estranhas. O senhor está condenado a ignorar o instinto intitulado patriotismo; não pode ser experimentado por uma pseudo-nação como a sua." Noutro passo dessa carta aberta a Wilson que não parou de escrever, Pessoa queixava-se: "Não é um dos menores males desta guerra que, na oposição ao Estado Alemão, tivesse sido a sua voz que foi ficando bem alta. Pois o senhor é a voz de tudo o que é meramente mercantil e não espiritual na civilização dos homens."»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 653
«E todas estas coisas (na imaginação de Pessoa) eram fruto de um mundo de homens. Num passo escrito na Primavera de 1919 para uma das suas cartas abertas sobre a Grande Guerra e o declínio da civilização ocidental, Pessoa declarou que os gregos consideravam que a função da mulher era "exclusivamente sexual", insinuando - não pela primeira vez - que uma verdadeira comunhão de almas apenas seria possível entre dois homens. Com a mesma dose de controvérsia, escreveu que "o facto de a pederastia ser considerada imoral entre nós talvez seja o fenómeno mais típico da nossa civilização decadente". O amor entre homens e rapazes, sustentou Pessoa, "é uma morbosidade própria da natureza, correspondendo a uma amizade intensa e extravagante". A palavra "morbosidade" traz à memória o seu poema, de 1916 ou 1917, em que o narrador, devaneando sobre o amor de meninice que poderia ter vivido com um rapaz ainda mais novo, reconhece estar infectado por "este vício antigo/ Que só os Gregos tornaram belo, porque belos eram". Na visão idealizada de Pessoa, a cultura grega embelezava e justificava a atracção "mórbida" de um homem por outro.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 661-2
«Anos mais tarde, Pessoa revelaria o pleno significado desta última frase num trecho do "Livro do Desassossego": "Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos."»
[...]
«Os tempos que se seguiram trouxeram caminhos separados, mas, sem que um ou outro soubessem, permanecia ainda um elo vital entre os dois: Carlos, o filho de treze anos de Joaquina, a irmã muito mais velha com quem Ofélia ficava várias vezes. Mais um irmão do que um sobrinho para ela, no espaço de cinco anos, tornar-se-ia poeta e amigo de Fernando Pessoa.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 691
«O item mais surpreendente da lista [elaborada por Fernando Pessoa] de possíveis publicações da Olisipo era "Protocolos dos Sábios de Sião", que pretendia corresponder à acta de uma reunião secreta de líderes judeus, com vista a definir a estratégia para conquistar o mundo - infiltrando-se na maçonaria, dominando o sistema financeiro mundial, controlando os meios de comunicação e fomentando a instabilidade política.» p. 698
«Ainda que não tenha chegado a traduzir nenhum dos "Protocolos", escreveu alguns passos para uma introdução, que se propunha demonstrar em termos lógicos como o texto, apesar de plagiar uma fonte francesa do século XIX que nada tinha que ver com os judeus, poderia mesmo assim ser válido. Não estavam os judeus, argumentou, a conseguir exactamente o que se dizia que os supostos Sábios de Sião tinham congeminado na viragem do século? E realçou que, por si só, o plágio não provava qualquer falsificação, já que um homem se podia servir das ideias e palavras de outra pessoa para os seus próprios propósitos.» (p. 699)
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia"
«A "Sodoma Divinizada" de Leal ficou como a última obra publicada pela Olisipo. Dado que a sua lista de apenas cinco títulos também incluía as "Canções" de Botto e o próprio 'Antinous' de Pessoa (que preenchia quase por completo "English Poems I-II)", poderíamos dizer que a Olisipo foi a primeira editora gay de Portugal, se é que não foi a primeira de toda a Europa.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 718
«Após a morte da mãe, a irmã de Pessoa, Teca, mostrara-se surpreendida ao saber que a herança valia tão pouco, mas aceitou as explicações do administrador, Fernando. Quando descobriu, no início de 1927, que o irmão mais velho tinha na verdade utilizado indevidamente fundos da herança e congeminado uma história para ocultar esse facto, teve um ataque de fúria e, a seguir, resignou-se a uma indignação sorumbática. Ainda que lamentasse tê-la transtornado, não há provas de que Pessoa se tenha alguma vez arrependido desse comportamento, que fazia parte de um padrão. A rejeição da verdade e da sinceridade como categorias sacrossantas e evidentes por si mesmas não se limitava a operar consequências na sua escrita; também influenciava a sua forma criativa de gerir as finanças pessoais.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 787
«Salazar, para quem os clubes nocturnos eram antros de iniquidade e a sua extinção uma bênção divina para a sociedade, manteve em Lisboa o mesmo estilo de vida frugal e metódico que tinha cultivado em Coimbra. A sua falta de humor e 'panache' funcionou a favor dele, conferindo credibilidade ao programa pragmático que visava reparar a economia da nação tal como um mecânico experiente arranja um carro avariado.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 802
NOTA: Neste parágrafo, Zenith está mal informado. Salazar possuía um refinado sentido de humor, que apenas demonstrava na sua intimidade, ou na sua relativa intimidade, já que talvez não houvesse propriamente intimidade 'tout court'. Conheço algumas histórias de pessoas que ainda privaram com ele e que referem comentários que sustentam esta minha observação, nomeadamente do tempo em que Salazar exerceu o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, mas não só
«Depois de, em 1919, ele próprio [Pessoa] se ter tornado monárquico, comprou um anel gravado com esse mesmo brasão de família que tinha retratado artisticamente no início da adolescência. Era de prata, e usou-o de vez em quando durante o resto da vida.»
Richard Zenith, in "Pessoa - uma Biografia", p. 808
«O infante D. Henrique foi o grão-mestre mais célebre da Ordem de Cristo, que desempenhou um papel importante nos Descobrimentos mas a seguir esmoreceu lentamente, a ponto de passar a ser uma condecoração atribuída pelo Governo, como uma medalha presidencial, sem papel em coisa nenhuma . até que Pessoa a reinventou. Em 1925, fez uma referência fugaz à moribunda Ordem de Cristo (ver capítulo 50), afirmando que os vestígios que restavam dela estavam na base da criação de uma "Terceira Ordem" portuguesa, que combatia sub-repticiamente uma rede de trezentos judeus e maçons influentes que controlava as finanças e a política mundiais. Nos anos 1930, o interesse de Pessoa na Conspiração dos 300 foi eclipsado pela teoria mais sedutora de que forças espirituais invisíveis governavam o universo.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", pp. 885-6
«Em 27 de Janeiro de 1932, depois de muitos meses sob a ameaça cortês de uma acção judicial, Pessoa acertou finalmente as contas com um escritório de advocacia que representava a Lourenço & Santos, na época a mais elegante alfaiataria de Lisboa. Embora se achasse com frequência sem um tostão, fiando-se na generosidade dos amigos para pagar a conta do almoço, o poeta nunca economizou em roupa ou livros. A verba em atraso com o alfaiate tinha atingido os duzentos escudos (o equivalente a cento e trinta euros na actualidade). Devia ainda cento e cinquenta escudos à Livraria Portugália, relativos a livros sobre ordens e tradições esotéricas adquiridos no Verão anterior, mas nos meses seguintes também conseguiria saldar essa dívida.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p- 903
TAMBÉM FUI CLIENTE, DURANTE MUITOS ANOS, DA LOURENÇO & SANTOS E DA LIVRARIA PORTUGÁLIA, MAS NUNCA FIQUEI A DEVER UM CÊNTIMO.
A LIVRARIA CHAMAVA-SE PORTUGAL E NÃO PORTUGÁLIA, QUE ERA O NOME DE UMA EDITORA.
«"Não são os judeus, mas a ralé da judiaria, quem encontramos por toda a parte ao comando do mundo material. Para os judeus verdadeiramente grandiosos - os judeus portugueses e espanhóis -, os Rothschild, os Rathenau, todos esses falsos com nomes alemães e polacos, são a ralé da sua raça e a ignomínia da sua religião."
Fernando Pessoa, in "The Jews and Freemasonry"»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 944
«Ao longo desta biografia, tenho evitado definir a sexualidade de Pessoa, mas, com base nestas explicações espirituais e à luz da própria "prática", por assim dizer, do poeta, é possível afirmar que, em última análise, ele não era heterossexual, homossexual, pansexual ou assexual, era androginamente monossexual. Os heterónimos podem ser vistos como os frutos da sua autofertilização.»
Richard Zenith, in "Pessoa - Uma Biografia", p. 980
3 comentários:
Numa primeira leitura, um comentário muito apreciável do magnum opus do Zenith,cuja nacionalidade americana,curiosamente (ou talvez não...) nunca é referida. Mas há outro lapso que talvez o bloguista ainda vá a tempo de corrigir,pois é importante. A última frase escrita por Pessoa não é exactamente a transcrita, mas "I know not what tomorrow will bring". O "not" é evidentemente essencial.
Ao anónimo das 19:06:
Muito obrigado pela rectificação. Tratou-se evidentemente de um lapso, que já corrigi, quiçá originado pelo cansaço de ter escrito tão longamente.
Muito bom. Obrigado.
"...Em 1916, Fernando Pessoa, nas suas invocações de espíritos em que actuava como médium, criou um Mestre,...".
"...criou..."?.
O sistematicamente ignorado elefante na loja de porcelana, a mediunidade de F. Pessoa ... e de muitos outros autores.
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