domingo, 31 de janeiro de 2021

PUSHKIN EM ÓPERA


Aleksandr Pushkin (1799-1837), cuja casa visitei em S Petersburgo, é um dos mais famosos nomes do romantismo russo, podendo considerar-se o fundador da literatura russa moderna. Poeta, romancista, dramaturgo, algumas das suas obras serviram de tema a óperas de notáveis compositores seus compatriotas.

Entre as mais célebres, destacam-se Russlan e Liudmila (Руслан и Людмила), de Mikhail Glinka, Eugénio Onegin (Евгений Онегин), de Tchaikovsky, Boris Godunov (Борис Годунов), de Mussorgksy, A Dama de Espadas (Пиковая дама), também de Tchaikovsky, O Convidado de Pedra (Каменный гость), de Aleksandr Dargomyzhsky e Mozart e Salieri  (Моцарт и Сальери), de Rimsky-Korsakov, as duas últimas obras pertencentes ao ciclo das pequenas tragédias, e que agora se apresentam em DVD.

O livro que se menciona inclui as chamadas quatro pequenas tragédias, as referidas O Convidado de Pedra e Mozart e Salieri e ainda O Cavaleiro Avarento e A Festa durante a Peste. Estas obras teriam sido escritas até 1830, uma vez que a elas se refere Pushkin nessa data.

É em Mozart e Salieri que se enuncia pela primeira vez a tese do envenenamento do compositor austríaco por Salieri, por uma questão de rivalidade e inveja pessoal. Esta estória fará carreira no tempo e serviu de argumento à celebrada peça Amadeus, de Peter Shaffer, que obteve sucesso mundial.

No caso de O Convidado de Pedra, Pushkin conheceria El Burlador de Sevila, de Tirso de Molina, mas com muito mais certeza o Don Juan, de Molière e o Don Giovanni, de Mozart, ao qual vai buscar a epígrafe da peça. Curiosamente, a sua versão da estória introduz uma alteração plena de significado: Donna Anna é a mulher e não a filha do Comendador. E surgem duas personagens não existentes na ópera de Mozart: Laura e o seu amante Don Carlos, irmão do Comendador e que Don Juan também matará.

Os espectáculos constantes do DVD foram gravados no Teatro Bolchoi: O Convidado de Pedra, em 1979, com direcção musical de Mark Ermler e encenação de Oleg Moralev; Mozart e Salieri, em 1981, com direcção musical de Ruben Vartanian e encenação de G. Pankov. Ambos durante a vigência da União Soviética.

A casa de Pushkin, situada no nº 12 do embankment do Rio Moika, é hoje um Museu, não sendo permitidas fotografias, mas estando disponível o folheto que se reproduz e também uma interessante colecção de postais (à falta de catálogo), que naturalmente adquiri.


Em cima, três fotografias que tirei no exterior da Casa de Pushkin.


sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

JEAN COCTEAU E O EGIPTO

O escritor egípcio Ahmed Youssef (n. 1955), quando estudante em Alexandria descobriu por acaso a figura de Jean Cocteau (1889-1963) e o seu interesse pelo Egipto, que o levou a visitar duas vezes este país. Debruçando-se mais tarde sobre o mestre francês,  Ahmed Youssef escreveu Cocteau, l'Égyptien (2001), onde relata curiosos aspectos das deslocações de Cocteau ao Egipto, em 1936 e em 1949, viagens antecedidas de uma visita à Argélia (então francesa) em 1912.

O Egipto tornara-se uma paixão francesa desde a expedição de Bonaparte, em 1798, e nomeadamente, depois da inauguração do Canal de Suez em 1869, que contou com a presença da imperatriz Eugénia. E foi o sonho romântico de muitos escritores, como Gérard de Nerval, Gustave Flaubert ou Théophile Gautier, a partir do século XIX, prolongando-se até aos nossos dias. Tornado um dos principais destinos do turismo de massas durante o século XX, o fluxo imparável de visitantes apenas foi travado com a irrupção do novo coronavírus, que agora ergue fronteiras e impede contactos físicos.

As primeiras obras de Jean Cocteau são inspiradas por As Mil e Uma Noites, na tradução de Joseph-Charles Mardrus (1880-1949), que eclipsara a tradução até então utilizada de Antoine Galland (1646-1715). E a personagem de Shéhérazade ocupa um lugar central no seu imaginário.

Em Argel, que visitou na companhia do romancista Lucien Daudet (filho de Alphonse Daudet), Cocteau trava conhecimento com o tenor, compositor e actor Mahieddine Bachetarzi (1897-1986), que, servindo de guia, introduz ambos nos lugares recônditos da cidade. Mais tarde, Bachetarzi (que viria a ser director do Teatro Nacional Argelino) negará nas suas Mémoires (1968) qualquer contacto com Cocteau em Argel.

A primeira viagem de Cocteau ao Egipto terá lugar em 1936, na companhia de Marcel Khil (Mustapha Khélilou Belkacem Ben Abdelkader) (1912-1940), que o poeta conhecera em Toulon em 1932. Cocteau passara um período difícil, com a morte de Raymond Radiguet, a experiência do ópio, e um relacionamento tornado complicado com Jean Desbordes (1906-1944) , seu secretário desde 1926, com o qual viria a romper em 1933. A visita inicia-se em Alexandria, mas antes Cocteau e Marcel passam por Roma, Atenas e Rhodes. Como havia feito em Argel, também em Alexandria Cocteau se interessa em visitar os locais de prostituição feminina, ainda que, agora, já tenha bem claras as suas opções sexuais. Mesmo assim, deslocam-se ao bairro de Kombakir, guiados por um judeu alexandrino e francófono, Assoun Salomon, mas fogem apressadamente de tal sítio, que consideram particularmente sórdido e sinistro e hoje desaparecido [Numa das minhas estadas em Alexandria fui propositadamente a uma rua estreita, cujo nome de momento não me ocorre, perto da Praça Mohammed Ali, considerada como um dos locais onde existiram bordéis em tempos mais recentes, mas em que presentemente só havia lojas de roupas]. No Cairo, Cocteau visita a Esfinge da qual diz: "Le Sphinx n'est pas une énigme, c'est une réponse." No Egipto, fascina-o sobretudo o culto da Morte e é por isso que se interessa muito mais pelo passado faraónico do que pelo passado e presente islâmico, de que francamente não gosta. Aliás, a Morte será uma obsessão de Cocteau ao longo de toda a sua vida e constante também da sua obra. Certas mortes tê-lo-ão atingido particularmente: Jean Giraudoux, Raymond Radiguet, Marcel Khil, Max Jacob, Jean Desbordes... 

Da sua primeira viagem ao Egipto, Cocteau evoca dois fenómenos tipicamente orientais: o bakchich e o haschich. O segundo, todos conhecemos, o primeiro significa hoje simplesmente gorjeta, mas etimologicamente era a "dádiva" que os senhores orientais concediam piedosamente aos místicos que consagravam exclusivamente a sua existência à causa de Deus. «Le haschich est tiré du chanvre indien. Oriental d'origine et de culture, il fut l'expédient de toute une littérature articulée autour du jeu de l'amour et de la mort. Par haschichomanie littéraire, on entend bien évidemment celle qui connurent les romantiques, comme Théophile Gautier et Gérard de Nerval. Mais cette notion peut être étendue à d'autres substances hallucinogènes. La drogue appelle la drogue, laquelle est toujours la soeur d'une autre encore, elles se répondent toutes, surtout si on lui fait face comme Cocteau.» (p. 87)

O livro evoca depois a experiência do ópio em Cocteau (que deu origem ao seu livro, Opium) e ao fascínio que a substância exerceu nos românticos franceses e no inglês Thomas de Quincey. Nerval, Flaubert, Gautier, Rimbaud eram frequentadores do famoso "Club des Haschachins" (título de uma obra de Gautier), situado no Hôtel Pimodan (hoje Hôtel de Lauzun), na ilha Saint-Louis, onde nasceu a tendência de associar o haschisch e o ópio à criação artística. Já Baudelaire o evocara nos Paradis artificiels. Gérard de Nerval, que visitou o Egipto, o Líbano, a Turquia e a Grécia em 1843, publicou em 1851 a sua obra célebre Voyage en Orient, de que a parte intitulada "L'Histoire du Calife Hakem" começa por um capítulo intitulado "Le haschich". E Thomas de Quincey publicou, em 1822, Confessions of an English Opium Eater

A principal obra de Jean Cocteau sobre o Oriente é Maalesh (1949), sub-intitulada "Journal d'une tournée de théâtre", talvez o último grande livro da literatura francesa de viagens, na sequência de Théophile Gautier, Gustave Flaubert, Maxime DuCamp, Gérard de Nerval, e também, Maurice Barrès, André Gide e Maurice Maeterlinck. Maalesh (que, em árabe, significa "não tem problema", "tudo bem", palavra habitualmente usada) é um livro de crónicas de viagem, reflexões filosóficas, descrição de cenas populares, comparações entre os povos das antigas civilizações e, antes de do mais, a obsessão da morte. Relata a viagem de três meses (Março a Maio de 1949) de Cocteau ao Cairo, Alexandria, Beirute, Constantinopla e Ankara. Foi a segunda e última viagem do poeta ao Egipto, numa altura em que a língua francesa era bem conhecida das pessoas cultivadas e o inglês não se tornara ainda no intruso que tenta converter-se em língua de uso universal. Refira-se que Maalesh era o título de uma revista egípcia francófona, que Cocteau conhecera aquando da sua primeira viagem ao Egipto.

O livro foi mal acolhido pelos egípcios, uma vez que Cocteau, fascinado pelo Egipto Antigo e deslumbrado com a riqueza da Corte e afins, pinta com cores sombrias o Egipto contemporâneo, que ele vê, ou seja, a miséria do povo egípcio, não se coibindo das considerações menos convenientes sobre uma população que mal sobrevive. Não seria intenção de Cocteau destratar os egípcios, mas o que parece é, e o livro chegou mesmo a ser proibido no país e suscitou também a cólera dos turcos e mesmo de vários escritores franceses, nomeadamente de Étiemble.

Um dos grandes momentos de Jean Cocteau no Egipto é o seu encontro, em 15 de Março, no Cairo, na Villa Ramattan (hoje Casa-Museu), perto das Pirâmides, com o célebre escritor cego egípcio Taha Hussein, autor de vasta obra, onde se destaca a sua autobiografia Le Livre des Jours (Al-Ayyam), cuja tradução francesa André Gide prefaciou. De origem muito humilde, Taha Hussein estudou primeiro no Cairo e depois em Paris, onde fez o seu doutoramento. De regresso ao Egipto, será professor, ministro, intelectual venerado mas também combatido pelas elites mais conservadoras, que o acuam de recusar a tradição religiosa, logo as próprias bases da sociedade árabe. Estudioso, e tradutor, do grego e do latim, permanecerá empenhado em casar as duas margens do Mediterrâneo, de preferência a voltar-se para o passado islâmico. Em França, Hussein evitará Cocteau, não querendo melindrar Gide, cujas relações com aquele tinham então esfriado, mas virá a ser o próprio Gide o traço de união entre os dois homens. Cocteau escreve em Maalesh: «J'admirais cet homme. Après ma visite je le respecte.» Casado com uma francesa, Taha Hussein recebia na sua residência muitos amigos franceses, como Gaston Wiet, Georges Duhamel, o abade Drioton, André Gide, e agora Cocteau, que regista: «Il est d'origine paysanne. C'est un véritable aristocrate. Cet index et la langue arabe écrite qu'il emploie et que si peu de personnes entendent le maudissent superbement. En face de ses lunettes noires qui vous regardent, il semble que les vestiges de l'ancienne Égypte retrouvent un sens et cessent d'être des buts de promenade. Taha Hussein est l'ex-doyen de la Faculté des Lettres. Politiciens, docteurs, égyptologues viennent se rassurer dans sa maison charmante où rien ne flotte, où cesse le vague, l'absence de contour. Il est oracle et simple.» Uns dias depois do seu encontro com Cocteau, Hussein escreveria um artigo que iria escandalizar a classe política e intelectual egípcia, o qual Cocteau cita em Maalesh: «Il est permis de sortir de son silence quand Jean Cocteau visite l'Égypte. Il se peut que les champs politiques et sociaux nous soient fermés, mais Dieu merci, nous pouvons trouver, dans la littérature pure, quelque soulagement et consolation... Quand donc l'Égypte se réveillera-t-elle de son trop profond sommeil?»

Uma outra personalidade egípcia com quem Cocteau contactou, e a quem dedicou Maalesh, foi o príncipe Mohamed Wahid Eddine, figura de costumes muito particulares. O príncipe, que morreu em 1995, era filho da princesa Chivékiar (mulher cultíssima), que fora casada com o príncipe Ahmed Fuad (futuro rei Fuad I) de quem se divorciara, casando-se depois mais quatro vezes, uma das quais com Selim Khalil, ligação da qual nasceu, em 1919, Mohamed Wahid Eddine. 

Transcrevo do livro: «Une preuve pourrait étayer cette hypothèse [a princesa e o filho frequentavam os salões parisienses]: à son arrivée au Caire, la voiture du fils de Chivékiar attendait le poète à l'aéroport. Et c'est Carullo, le secrétaire particulier du prince, qui emmènera Cocteau à son hôtel. L'ambassade de France aurait voulu envoyer une voiture chercher le plus célèbre des Français d'alors. Le ministre égyptien de l'Instruction publique aurait également proposé la même chose. Mais c'est Cocteau qui trancha en préferant la voiture de Wahid Eddine. Ce qui donne à penser que les deux hommes se connaissaient.» (p. 130)

O príncipe Wahid Eddine ofereceu uma sumptuosa recepção a Cocteau nos jardins do palácio de sua mãe (em reconstrução), mas o poeta retirou-se logo após a chegada tardia da princesa Mohamed Ali Ibrahim, filha do último sultão, alegando um encontro com Taha Hussein. Quem foi a pessoa que usou retirá-lo prematuramente daquele cenário feérico? Pois foi Adbel Rahman Sidky, tradutor árabe de Fleurs du Mal, também ele poeta e autor de uma notável biografia do grande poeta árabe da Idade Média, Abu Nawas. Por razões óbvias, as afinidades intelectuais, e não só, entre Cocteau e Sidky eram de natureza a provocar os ciúmes do príncipe, chegando a fazer acompanhar o poeta de Carullo, o seu secretário particular italiano. Mas surgiu um outro rival de peso, desta vez uma mulher, a grande figura da literatura egípcia Out el-Kouloub El Demardachiah, cujo romance Le Coffret hindou Cocteau haveria de prefaciar [ainda há um exemplar à venda na Amazon por € 100.00]. Esta grande senhora da literatura egípcia (n. 1892) pertencia a uma antiga e rica família muçulmana, desempenhou um papel importante no movimento feminista egípcio e manteve um salão literário onde se encontravam as celebridades egípcias e francesas.

Transcrevo do livro: «Quoi qu'il en soit, entre Cocteau et le prince egyptien, il semble qu'il y ait eu "une certaine tendresse", d'ailleurs remarquée par leurs contemporains égyptiens, mais suggérée aussi par la place qu'occupe Wahid Eddine dans Maalesh, par le ton de Cocteau à son égard et surtout parce que laisse supposer la dernière phrase de la dédicace de Maalesh: "Blâmez-moi en publique et aimez-moi en secret."» (p. 133)

No seu périplo egípcio, após o Cairo voltou Cocteau a visitar Alexandria e, nos passos de André Gide, descobriu o Vale dos Reis, Luxor e Assuão. Regressado ao Cairo, seguiu depois para  a Turquia, onde as recordações de Nerval e Loti disputaram os seus sentimentos, e para a Grécia, uma das suas paixões.  

O livro de Ahmed Youssef termina com a inclusão, em anexo, de um conjunto de passagens extraídas de Maalesh e com uma crónica do escritor francês Étiemble, publicada na revista "Les Temps Modernes", em 1950, sobre Maalesh, em que critica Jean Cocteau pela superficialidade com que se refere ao Egipto, ignorando toda a sua componente árabo-muçulmana, preocupado que esteve com os aspectos mundanos da sua viagem.

Enfim, uma visão interessante de um escritor egípcio francófono sobre a "tentação árabe" do multifacetado, genial mas às vezes superficial, Jean Cocteau.

 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

REVISITANDO O EXPRESSIONISMO

Vi hoje pela primeira vez (e também ouvi, claro) a ópera "Moses und Aron" de Schönberg, gravada na Opéra National de Paris - Opéra Bastille, em 2015. Conhecia a obra através de um LP antigo, que conservo na minha colecção.
 
A gravação em LP foi realizada com a participação da BBC Symphony Orchestra e Coro, com direcção de Pierre Boulez e interpretação de Günter Reich e Richard Cassilly.
 
A gravação em DVD teve a participação da Orquestra e Coro da Ópera de Paris, dirigidos por Philippe Jordan, com interpretação de Thomas Johannes Mayer e John Graham-Hall, com encenação de Romeo Castellucci.
 

Compositor judeu austríaco, criador do dodecafonismo, é natural que Arnold Schönberg (1874-1951) se tenha interessado por temas do Judaísmo. Assim, entre outros, a sua ópera "Moses und Aron", de que foi o próprio libretista, baseada no texto do "Êxodo": na mensagem de Deus a Moisés para libertar o povo de Israel, na sarça ardente, na criação do bezerro de ouro por Aarão, que será o seu porta-voz. A história é conhecida, mas a interpretação de Schönberg é muito particular. O seu Moisés é um homem inspirado, solitário, intransigente, que acaba por confessar a sua incapacidade para convencer o povo do poder desta ideia: um Deus único, eterno, omnipresente, invisível e irrepresentável. Aarão, seu irmão, é a figura de um político. Apesar da sua vontade de seguir a palavra profética que tenta traduzir ao povo de Israel, usando inicialmente de milagres, não hesita em procurar um compromisso, pronto a ceder aos instintos mais primários dos que o pressionam a agir durante a ausência de Moisés. O povo de Israel é representado pelo vasto coro, que necessitou de um ano de ensaios, um caso único num teatro de ópera. 
 
A encenação é particularmente interessante, sintética, a preto e branco, em perfeita harmonia com a música serial, mas onde não falta a presença em cena de um bezerro vivo.
 
A ópera é composta por dois actos, já que Schönberg nunca escreveu a música do III Acto, embora tenha escrito o "libretto". Em 1951 referiu, numa das suas cartas, que admitia que o III Acto pudesse ser simplesmente falado, caso ele não completasse a composição. Há quem tenha procurado explicações para esta hesitação de anos, mas não é este o lugar para especular sobre o assunto.
 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

HOMOSSEXUAIS NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Comecei a ler este livro há cerca de dois anos, uns meses depois de ter sido publicado. Como acontece muitas vezes na vida, vieram outros livros que se tornaram mais prementes e não sendo o tempo elástico ficou este aguardando melhor oportunidade. Retomando há semanas e concluindo agora a leitura, e com o recurso a parcas notas que então registara, e fazendo também apelo à memória, vou escrever sobre ele algumas linhas.

Editado com o apoio da Universidade de Paris-Sorbonne e do Conselho da Europa, Homosexuel.le.s en Europe pendant la Seconde Guerre Mondiale (o título é politicamente correcto!?!), organizado por Régis Schlagdenhauffen, Julie Le Gac e Fabrice Virgili, o livro debruça-se sobre a vida e as perseguições a que foram sujeitos os homossexuais em diversos países durante o tempo do grande conflito que abalou o velho continente.

Os autores dos vários capítulos abordam especialmente o caso da Alemanha, sob o III Reich, e da Áustria, após o Anschluss, e também da Boémia-Morávia, da Alsácia e Mosela, da Hungria, da Itália, da França, da União Soviética, da Jugoslávia, da Suécia e dos combatentes no Exército Britânico.

Estando a obra minuciosamente documentada, anotarei alguns tópicos:

A homossexualidade era praticada largamente e sem grandes constrangimentos na Alemanha antes da ascensão do regime nazi, apesar da existência do célebre § 175 cuja aplicação até 1935 tinha sido muito limitada.

Foi depois da tomada do poder por Adolf Hitler, em 30 de Janeiro de 1933, que, sob o impulso de Himmler, os nazis incluíram no seu index a florescente cultura homossexual alemã. Todavia, até Junho de 1934, os alemães não acreditavam que o regime pudesse ser realmente homófobo, visto o chefe das SA, Ernst Röhm, ser abertamente homossexual. Foi depois de 24 de Outubro de 1934 (Noite das Facas Longas) e do assassinato de Röhm que a Gestapo, dirigida por Herman Göring telegrafou a todos os comissariados de polícia exigindo os ficheiros dos homossexuais conhecidos. Em 9 de Março de 1935 as SS começaram a prender homossexuais. Em 28 de Junho de 1935 o § 175 foi agravado. Milhares de homossexuais foram enviados para os campos de concentração mas a partir de 1944, e considerando as grandes perdas humanas devido à guerra, os mesmos passaram a ser integrados, em condições especiais, na polícia e no exército. Curiosamente, ainda em 1957 o Supremo Tribunal Federal de Justiça da RFA considerou que o § 175 não era inconstitucional. Só em 1985 o Bundestag entendeu que os homossexuais tinham sido vítimas do nazismo.

Em comparação com os outros países europeus, a situação dos homossexuais na Áustria foi muito particular. Era punida pelo § 129Ib do código penal austríaco de 1852 e até à tomada do poder pelos nazis na Alemanha em 1933 as perseguições eram muito mais rigorosas que na República de Weimar, já que nesta só a homossexualidade masculina era punida. Com a anexação em 1938, passou a ser aplicada a legislação alemã. A legislação austríaca esteve em vigor até 1971. A criminalização lembrava que a penalização da homossexualidade feminina na Áustria remontava ao código penal de Carlos Quinto, de 1532. 

As referências que faço à Alemanha e à Áustria são muito sucintas, pois as notas que tomei na ocasião da leitura foram escassas.

Sobre a situação no protectorado da Boémia-Morávia, instaurado em 16 de Março de 1939, traduzo o autor: «A condição homossexual no protectorado não foi apenas agravada pela repressão e pela introdução de disposições penais alemãs. Um outro factor, inesperado, foi a dissolução do exército checoslovaco de antes da guerra aquando da instauração do protectorado. Diversos dossiers judiciários de antes de 1939 dizem respeito a soldados do exército checoslovaco que, enquanto mantinham uma relação amorosa com uma namorada no seu local de residência, partilhavam contra remuneração alguns instantes de intimidade com homossexuais dos sítios onde se encontravam acantonados. Parece mesmo que numerosos homossexuais preferiam passar a noite com um soldado mais do que com um prostituto "vulgar", por causa das suas inclinações pelos uniformes ou por uma maior discrição presumida dos militares, que não tinham qualquer interesse em ser desmascarados enquanto prostitutos.» (p. 81) 

Segue-se, no livro, a descrição da Galeria Koruna, na Praça Venceslau, o local por excelência de engate homossexual em Praga, antes, durante e depois da guerra. 

A situação na Alsácia-Mosela era favorável aos homossexuais antes da derrota francesa e da anexação alemã de 1940. Contudo, a estes territórios anexados de facto e colocados sob a autoridade de uma administração civil dirigida por um Gauleiter, Robert Wagner na Alsácia e Josef Bürclel no Mosela, era aplicado o código penal francês, até 1942. O livro aborda depois a situação híbrida da situação dos homossexuais sujeitos a duas legislações, uma vez que a alemã passou também a ser progressivamente aplicada. As relações homossexuais em França haviam sido totalmente despenalizadas em 1791 pela Assembleia Constituinte Revolucionária, disposição mantida pela Código Penal napoleónico de 1810, inovação que se manteve até 1942. (p. 85)

Não obstante existirem poucas informações sobre a sub-cultura homossexual na Hungria, do ponto de vista legal importa sublinhar que entre 1878 e 1961 a homossexualidade era criminalizada na categoria de "fornicação contra a natureza". O começo do século XX foi para a Hungria a "era do dualismo" após o compromisso austro-húngaro de 1867, marcada por uma independência completa em matéria de política interna.  Com o Código Penal de 1878, cujo artigo 241 fazia da "fornicação contra a natureza" - ou, literalmente da "perversão contra a natureza" (természet elleni fajtalangság) um acto ilegal, esta passou a ser passível de uma pena podendo chegar a um ano de prisão. Esta legislação permaneceu em vigor cerca de um século. A cláusula só foi alterada em 1961, estabelecendo-se então que a fornicação com um parceiro menor de 20 anos seria punida com três anos de prisão. (pp. 105-6) O serviço de trabalho em tempo de guerra foi um fenómeno próprio do regime do almirante Miklós Horthy , regente da Hungria entre 1920 e 1944. Muitos homossexuais a ele foram submetidos. 

Na Itália o problema teve especialmente a ver com a relação entre o fascismo e a masculinidade. Os tempos de guerra são especialmente propícios para as práticas homossexuais, devido às oportunidades que fornecem. No caso italiano houve especial atenção ao papel desempenhado nessas relações: o activo ou o passivo. Coincidindo em Itália a esfera militar com  a esfera civil, o Duce era o próprio modelo do homem e do soldado. «Mussolini devint l'incarnation de tous les mâles italiens: le père de tous les enfants italiens, le mari et l'amant de toutes les Italiennes et le commandant de tous les soldats italiens. (p. 119)

«Emilio Gentile a justement observé que le fascisme cherchait a remplacer la "respectabilité bourgeoise" par une forme de "respectabilité en uniforme" fondée sur le courage, le militarisme et la virilité.» (p. 121) O fascismo julgava os homossexuais incompatíveis com o espírito viril e guerreiro e mal preparados para o campo de batalha. [Um clamoroso erro do fascismo]

«De surcroît, la forte demande de soldats en temps de guerre se traduisit par une plus grande tolérance envers les combattants gays. Que l'homossexualité ait disparu en 1941 de la liste des crimes du code pénal militaire illustre ce changement de politique.» (p.125)

«L'occupation de l'Italie méridionale de juillet 1943 à 1945 créa des conditions qui encouragèrent les relations entre soldats américains et jeunes Italiens disposés à se prostituer pour un peu d'argent, de la nourriture ou des cigarrettes. Les relations avec un soldat surtout étranger, n'étaient pas très difficiles, parce que inévitablement brèves et passagéres. Dans son roman The Gallery (1947), John Horne Burns décrit le bar de Momma, sui generis et chaotique, où les gens expriment un désir que la société reprouve.» (p. 127) [O título refere-se à Galleria Umberto I, em Nápoles, lugar de todos os encontros. Quando por lá passei, há uns quatro anos, pareceu-me quase deserta. Mudança dos tempos ou desacerto de horas, já que só a atravessava no trânsito para o meu hotel.]

«Avec la défaite imminente de l'Italie dans la guerre, la pauvreté, la misère et les conditions sordides semblent avoir poussé plus que jamais à la prostitution féminine, mais aussi masculine. Le roman de Curzio Malaparte La Peau (1949) décrit le climat générale de "corruption" dans la ville de Naples libérée et, malgré le côté exagérément grotesque, représente une dénonciation ouverte des effets de la disparité politique, économique et sociale entre libérateurs et libérés. (p. 128) [No seu livro, Malaparte descreve em pormenor as relações homossexuais entre jovens e não jovens italianos e os jovens soldados americanos desejosos de sexo. As fronteiras de uma certa discrição italiana entre "alta nobreza dos invertidos e a homossexualidade proletária" tinham caído. Mesmo sob o fascismo a Itália continuara a ser o destino de muitos homossexuais europeus, nomeadamente ingleses, exilados do seu país para evitar um processo e eventual condenação.]

«Une étude de ce qu'on vécu des homosexuels en France pendant la Seconde Guerre mondiale est inévitablement confrontée à deux idées reçues, aussi tenaces que contradictoires. La première assimile l'homosexualité à la collaboration, la deuxiéme transfigure l'homosexuel en martyr, victime de l'homophobie des nazis et de leurs suppôts vichystes. Sans être entièrement fausses, elles sont les deux simplistes et réductrices. [...] S'il est vrai que certains homosexuels et lesbiennes ont collaboré (et d'autres ont résisté), nous verrons que dans leur ensemble la plupart vivaient sous l'Occupation comme tous les autres Français, menant leur vie sentimentale et sexuelle à leur guise, y compris parfois avec des soldats allemands. L'ambiance des années 1940 était pourtant de plus en plus hostile à leurs amours et Vichy a même renoncé à cent cinquante années de tolérance légale en instaurant le "délit d'homosexualité" en 1942.» (p. 131) [Entre outros notáveis colaboracionistas, contam-se Abel Bonnard, académico e ministro da Educação, que se exilou em Espanha, tendo-lhe a pena de morte sido mais tarde comutada, e o grande escritor Robert Brasillach, que se recusou a fugir e foi fuzilado.]

A situação em França nesta época foi realmente confusa, embora existam muitos estudos publicados. O chefe da Resistência em França, Jean Moulin, foi preso pela Gestapo, ao que se presume quando aguardava um encontro amoroso com um jovem e transportado para a Alemanha, tendo morrido no comboio. O dramaturgo Jean-Marie Besset publicou há algum tempo uma peça sobre o tema, Évangile.

«...les homosexuels étaient des résistants idéaux car, ayant "l'habitude, la pratique de la clandestinité" et généralement sans conjoints ni enfants, ils pouvaient plus facilement "faire ce saut dans le néant qui est la résistance". Mais l'orientation sexuelle des résistants, relevant de la vie privée, est peu ou pas traitée dans les sources historiques et, en tout cas, n'est sans doute pas déterminante dans leurs choix politiques. Citons néanmois la figure de Roger Stéphane (1919-1994) qui, selon ses propres dires, est devenu résistant afin "d'acquérir l'estime de l'aimé": "Naturellement, je n'aimais pas Vichy; naturellement, je souhaitais la victoire alliée. Mais ces sentiments ne m'ont point déterminé [...] C'est pour Jean [Sussel] que je suis entré dans la Résistance."» (p. 134)

«Les relations sentimentales et sexuelles entre occupants et occupés masculins constituent un sujet délicat: il n'y a pas que les femmes qui couchent avec les Allemands! Le militant trotskyste Daniel Guérin (1904-1988) refuse cependant de céder "à la tentation de frayer avec ceux de la Wehrmacht, bien que l'envie m'en tourne parfois la tête. Je ne prendrai la liberté de céder à ma nature [...] que lorsqu'ils ne seront plus occupants, mais captifs et asservis. Ai-je eu raison ou tort? Les jeunes Allemands sous l'uniforme sont des êtres humains, qui, malgré les excès et les crimes qu'on leur fait commettre, souffrent de l'hostilité environnante, ont besoin de tendresse et d'exutoire sexuel."» (p. 137)

O livro debruça-se depois sobre numerosos testemunhos de relações homossexuais entre franceses e marinheiros e soldados alemães, muitos deles reportados em obras literárias.  «Comme le note Jean-Louis Bory (1919-1979), qui était étudiant dans Paris occupée: "Il est certain que la présence allemande à Paris pouvait exercer une certaine fascination sur les homosexuels: le mythe de la virilité."» (p. 139)

«Le 6 août 1942, une ordonnance du maréchal Pétain modifie l'article 334 du code pénal, relevant à 21 ans la majorité sexuelle pour actes homosexuels; elle reste fixée à 13 ans pour les héterosexuels. Dorénavant, sera puni d'une ammende de 200 a 60.000 francs et d'une peine de six mois à trois ans d'emprisonnement "quiconque aura commis un ou plusieurs actes impudiques ou contre nature avec un mineur de son sexe âgé de moins de 21 ans."» (p. 141) [Mesmo assim, a legislação de Vichy era mais tolerante que a legislação de algumas das actuais democracias liberais europeias.]

«Pour le reste, la grande majorité des homosexuels, comme la majorité des Français, fêtent l'avènement d'une nouvelle ère de liberté. Un soldat américain de 27 ans est en permission à Paris en 1944-1945 quand il découvre le mythique Boeuf sur le toit: "C'était une formidable boîte gay! [...] Vous entriez, et tout à coup vous vous rendiez compte de l'étendue de l'homosexualité - de sa portée globale! Il y avait des centaines de mecs de partout dans le monde en uniformes de toute sorte: il y avait des Polonais libres dansant avec des soldats américains; il y avait des Écossais dansant avec des Algériens; il y avait des Français libres; il y avait des Russes. C'était comme une ONU des gays. C'était incroyable. [...] Je n'avais jamais vu pareille chose de ma vie! Pour moi, c'était un peu comme une Journée de la Victoire pour les gays - avant le véritable 8 Mai."» (p. 147)

Sobre a URSS pode ler-se o seguinte: «En URSS, on assiste avec les années 1920 à l'émergence d'un nouveau regard sur l'homosexualité. La dépénalisation est entérinée par les bolcheviks dans le code pénal de 1922 puis de 1926. Il s'agit d'une démarche intentionnellement révolutionnaire qui, aux côtés de l'autorization de l'avortement, d'un droit au divorce dont la procédure est aussi simple que la procédure ordonnant le mariage civil, marque une rupture avec le régime tsariste.» (p. 156)

«La recriminalisation de l'homosexualité masculine a été entérinée en mars 1934 avec l'aval de Staline, qui a refusé de reprendre les termes de la loi antisodomie ukrainienne prévoyant un article spécifique pour réprimer les prostitués masculins qui exerçaient leur activité dans la rue. [...] Peu de documents rendent compte des motivations qui présidaient à la réintroduction de la pénalisation de la sodomie.» (p. 158)

«Dans la correspondance que Iagoda, à la tête de la police politique de l'État (la Guépéou), entretient avec Staline, il dénonce "la corruption de la jeunesse" et des jeunes marins par ce qu'il appelle les "pédérastes" qui porteraient atteinte à la sécurité de l'État. Dans une stratégie similaire de discrédit de l'adversaire idéologique, Maxime Gorki publie dans la Pravda et les Izvestia le 23 mai 1934 son article "L'humanisme prolétarien". Il légitime la pénalisation de l'homosexualité au nom de la préservation de la santé du prolétariat soviétique qu'il oppose ainsi au peuple allemand en proie à l'alcoolisme, la syphilis et l'homosexualité, lesquels concourent à sa dégénérescence. Il resume ainsi sa pensée: "Exterminez les homosexuels, le fascisme disparaîtra."» (pp. 158-9) [Esta afirmação de Gorki é uma nódoa na carreira do grande escritor]

«Après la mort de Staline en 1953 et à l'initiative de Khrouchtchev les juristes soviétiques travaillent à une refonte du code pénal afin de modifier ou supprimer de nombreux textes législatifs de l'époque stalinienne. Pourtant, dans le même temps, la loi anti-sodomie est renforcée et ne sera abrogé qu'en 1993.» (p. 162)

Em 1958 o ministério do Interior da República Socialista Federativa Soviética da Rússia publica secretamente uma directiva visando reforçar a luta contra a sodomia. O novo código penal é aprovado em 27 de Outubro de 1960. 

«Les promenades nocturnes, dont Kouzmine témoigne dans les années 1930, ne retrouvèrent probablement pas après-guerre leur importance. En revanche, les lieux de rencontres fixes - les pleski (lugares públicos no centro da cidade: jardins, proximidade de estações de caminho de ferro ou de monumentos, em que pode haver encontros em clima de anonimato, como nos urinóis públicos) - relevaient d'une subculture homosexuelle soviétique dans les grandes villes, par exemple près du Bolchoï de Moscou ou au jardin de Catherine II à Leninegrad, avec une culture des toilettes qui rappelle celle qui existait à la même époque dans des pays européens ou aux États-Unis.» (p. 165)

«A imagem dominante da situação dos homossexuais na Suécia no decurso da Segunda Guerra Mundial é de uma política progressista e de tolerância crescente da homossexualidade e dos homossexuais. De facto, os actos homossexuais, tanto masculinos como femininos, que tinham sido interditos desde a adopção do Código Penal de 1864, foram descriminalizados em 1 de Julho de 1944 sob o governo de coligação conduzido pelos socialistas.» (p. 165, tradução minha)

A partir dos anos 1930, o novo regime restringiu a liberdade de fazer escolhas pessoais e teve tendência a regulamentar a vida em todos os seus pormenores. 

«Parallèlement, l'historiographie jusque-là dominante de la Suède concernant la Seconde Guerre mondiale a été contestée à partir des années 1990. Un nombre croissant de chercheurs ont remis en cause le paradigme du petir État, suivant lequel la Suède, en tant que petit pays entouré de puissants ennemis, n'avait guère d'autre solutions que de rester à l'écart de la guerre et d'accéder aux demandes de l'Allemagne nazie. Une nouvelle génération a adopté une perspective plus moraliste, faisant valoir les liens culturels et idéologiques anciens des deux pays, une longue tradition antisémite et une forte sympathie pour le projet nazi qui inclina la Suède à céder aux exigences de Berlin. Pour ces chercheurs, maintes concessions du temps de guerre ne furent pas le fruit de la nécessité mais des sentiments proallemands et pronazis de nombreux Suédois.» (p. 167)

«Entre 1864 et 1944, la "fornication contre nature" (otukt som emot naturen är) était passible d'une peine maximale de deux ans de travaux forcés en vertu du chapitre 18, article 10 du code pénal suédois. à la différence de la plupart des autres pays, mais comme l'Autriche et la Finlande, la Suède criminalisait aussi les actes homosexuels commis par les femmes.» (p. 168)

 O autor do capítulo dedicado à Suécia relata pormenorizadamente as perseguições efectuadas aos homossexuais, especialmente de 1930 a 1944, com o recurso a armadilhas instaladas nos lugares públicos de encontros habituais. Inclusive com violação do domícilio e extensivas às lésbicas. E com o recurso ao internamento dos homossexuais em hospitais psiquiátricos. Com a lei de 1944 os actos homossexuais tornaram-se lícitos desde que os parceiros tivessem mais de 18 anos, ou de 21 anos, se estivessem em relação de dependência em relação ao parceiro mais velho.

A hostilidade em relação aos homossexuais andou sempre a par com o anti-semitismo e as simpatias pró-nazis dos suecos, bem como da sua recusa dos fluxos migratórios. «Quand en 1929 le gouvernement conservateur présenta au Parlement son projet d'une nouvelle loi sur les étrangers, il déclara: "On ne saurait surestimer combien il est précieux que la population de notre pays soit une race exceptionellement pure et non mélangée." (p. 183)

O autor do capítulo dedicado à Jugoslávia insiste no facto dos sérvios e dos croatas acreditarem que a homossexualidade dos seus cidadãos é  devida às influências recebidas do Império Otomano, ao tempo em que essas regiões dele faziam parte, uma vez que consideram que os muçulmanos são especialmente inclinados a essa prática. Sobre a situação dos homossexuais durante a guerra fornece apenas dois exemplos, retirados dos partisans: um, simples soldado mas dotado de grande bravura, que teria na juventude sido corrompido por um bey, pôde permanecer no exército mas foi excluído do Partido Comunista; outro, oficial, que tinha adquirido especiais competências e exercia funções que lhe permitiam o acesso a informações confidenciais, foi condenado à morte. A fundamentação jurídica da política dos resistente jugoslavos assentava no seguinte: corrupção sexual da juventude; perversidade e imoralidade da personalidade homossexual egotista e anti-socialista; ofensa ao exército e à nação. O autor não conhece outros casos em tempo de guerra, mas admite que «as regras de disciplina contra os homossexuais foram aplicadas de maneira selectiva e com muita flexibilidade, muitas vezes em função da pessoa em causa ou da situação concreta. O pragmatismo militar era o princípio subjacente e a preocupação maior o interesse superior da nação ou da guerra.» (p. 204) «La masculinité était donc déniée aux hommes qui aimaient d'autres hommes et avaiennt des relations sexuelles avec eux; dès lors, on ne pouvait leur accorder le droit de porter honorablement l'uniforme du partisan.» (p. 205)

O último capítulo do livro é dedicado aos homossexuais que combateram no exército britânico.  Dado o estado precário em que se encontravam as forças armadas britânicas imediatamente antes da Segunda Guerra Mundial, para responder ao esforço de guerra teve o governo de proceder à conscrição obrigatória dos homens dos 18 aos 41 anos e também a uma mobilização de mulheres, numa escala sem precedentes. Segundo o autor, 6 508 000 homens e mulheres serviram nas forças armadas entre 1939 e 1945 e é possível que pelo menos 1 179 000 dentre eles tenham conhecido alguma forma de intimidade com pessoas do mesmo sexo. John Howard elaborou o conceito de "homosexo" para designar a actividade sexual do mesmo sexo sem contudo prejudicar a sexualidade dos seus participantes. Entre os homens, a manifestação mais frequente e largamente admitida do homosexo era talvez a masturbação mútua. Maioritariamente considerada como fonte inofensiva de alívio sexual era mais satisfatória do que a masturbação a solo, já que o prazer era controlado e dirigido pela mão de outro.

«Parlant de la Navy, John Beardmore, ancien sous-lieutenant homosexuel racconte: "Les marins étaient des gars assez délurés, et la masturbation n'était pas rare du tout. On pouvait descendre chez les hommes de quart, entre minuit et 4 heures, et entendre quelqu'un chuchoter depuis un hamac, 'tu nous fait une branlette?', ce qui était parfaitement admis par les matelots du pont inférieur." (p. 209)

«Dans l'argot de la marine, masturber un camarade était connu sous le nom de flip - mot suggérant que l'activité était à la fois comprise et assez courante. Dans l'armée de terre également, le sexe entre hommes était souvent perçu par les officiers et les autres comme une réponse légitime à l'absence de femmes et à la nécessité d'un soulagement sexuel sans risque. Résumant l'homosexe entre ses camarades dans la RAF, Frank Bolton observe: "Ça se passait entre amis. Il y avait des tas [...[ de liaisons entre gars qui n'étaient pas naturellement homosexuels. Ils [les officiers] fermaient les yeux parce que cela aidait des gars qui ne rêveraient jamais de quitter leurs femmes"» (p. 209-210)

O autor entra depois nos pormenores desses relacionamentos, destacando a forma como os oficiais escolhiam para ordenanças os mais bonitos dos marinheiros e soldados. É evidente que quer a lei civil, quer a lei militar puniam os actos homosexuais, mas no teatro de guerra os superiores fechavam os olhos, já que estes relacionamentos fortaleciam o espírito de combate e contribuíam para o esforço de guerra. Entre 1939 e 1945, os tribunais marciais julgaram apenas 1 813 casos de indecência no exército de terra, na RAF e na Navy e pronunciaram 1 428 condenações.

Porque este post já vai longo, aqui termino, podendo os interessados encontrar no livro informação pormenorizada, fruto de uma investigação levada a cabo durante anos.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

A FORÇA DO DESTINO

"La vita è inferno all'infelice..."
 
"Urna fatale del mio destino."
 
 
Recebi ontem o dvd de uma das gravações de La Forza del Destino, de Verdi, que faltava na minha vídeoteca, a da célebre récita, no Teatro di San Carlo, de Nápoles, em 15 de Março de 1958.
 
Espectáculo memorável, teve o elenco seguinte:
 
Giorgio Algorta (Marquês de Calatrava)
Renata Tebaldi (Donna Leonora)
Ettore Bastianini (Don Carlo di Vargas)
Franco Corelli (Don Alvaro)
Oralia Dominguez (Preziosilla)
Boris Christoff (Padre Guardiano)
Renato Capecchi (Fra Melitone)
 
A Orquestra foi dirigida pelo maestro Francesco Molinari Pradelli, que vimos durante anos no nosso Teatro Nacional de São Carlos.
 
Recordo-me especialmente de Renato Capecchi, também visita habitual, com quem conversei muitas vezes aquando das suas prestações em Lisboa.
 
O argumento do libretto de La Forza del Destino baseia-se no drama espanhol Don Álvaro o la fuerza del sino"(1835), de Ángel de Saavedra, Duque de Rivas. A ópera foi estreada no Teatro Imperial Bolshoi Kamenny, de São Petersburgo, em 10 de Novembro de 1862, chamado depois Mariinsky, depois Kirov, e agora novamente Mariinsky.
 
A imagem (a preto e branco) desta antiquíssima gravação é naturalmente deficiente, mas o som é bom e dá-nos a grandeza de intérpretes de uma qualidade que hoje se afigura rara.
 
Esta ópera não foi apresentada em Portugal durante décadas, pois sendo considerada uma ópera que "porte malheur", o dr. José de Figueiredo, que foi director do Teatro Nacional de São Carlos ao longo de muito anos, receava a ocorrência de uma fatalidade, dizia-se nos corredores que temia a morte da mãe, uma senhora já idosa.
 
Se a memória não me falha, a ópera só voltou a ser apresentada em Lisboa depois da substituição de José de Figueiredo por João de Freitas Branco.
 

domingo, 10 de janeiro de 2021

CURIOSIDADES HISTÓRICAS

Foi-me oferecido, na passada quadra festiva, por um amigo que conhece o meu interesse pela História, o recém publicado livro O Pénis perdido de Napoleão: e mais 222 perguntas de História, tradução portuguesa de El pene perdido de Napoleón: y otras 333 preguntas de la Historia, de Ad Absurdum, um colectivo de três historiadores espanhóis (Isaac Alcântara, David Omar Sáez e Juan Jesús Botí) bem conhecido no país vizinho, e que se dedica a fomentar o gosto pela História através de comentários, episódios e reflexões, donde não está isento um acentuado sentido de humor, sendo já autores de Historia absurda de España e Historia absurda de Cataluña. Como não conheço o original espanhol ignoro a razão da diferença entre as 222 perguntas portuguesas e as 333 espanholas, mas admito que se trate de curiosidades especificamente espanholas.

O livro apresenta questões sobre a guerra, o sexo, a arte, a ciência, a comida, o desporto, a religião, a economia, a saúde, a geografia, a moda, a antropologia, a política e a homeo-história (que os autores consideram uma manipulação da História ou uma pura intrujice e cuja conceito dizem ser inspirado de homeopatia: do grego, hómoios [mesmo]  e do latim, historia [história], para designar o que é semelhante. Talvez ficasse melhor homo-história, mas não sei se a palavra é da tradução portuguesa ou do original castelhano).

As respostas às perguntas formuladas são na generalidade correctas. Uma parte delas é do conhecimento das pessoas interessadas na matéria, mas sempre se encontram algumas novidades: coisas que não sabíamos ou que simplesmente havíamos esquecido. Detectei alguns erros, ou meros lapsos, mas confesso que, não os tendo anotado na altura, não me recordo agora deles. A tradução é fluente, embora siga o famigerado acordo ortográfico.

O título do livro decorre exclusivamente das técnicas de marketing, já que ao pénis de Napoleão não é dedicada mais do que uma página. Mas com certeza contribuiu para aumentar o volume de vendas da obra. De facto, existe a lenda de que o pénis do imperador lhe foi retirado depois da autópsia, aquando da sua morte na ilha de Santa Helena. E, durante anos, circulou pelas mãos de diversos coleccionadores o que teria sido o imperial falo, não se sabendo quem o possui agora. Segundo as memórias do criado de quarto de Napoleão, o que foi extraído ao imperador, na autópsia, terá sido realmente um tendão.

Outra curiosidade diz respeito a Adolf Hitler. Estamos habituados a ouvir dizer que o Führer era vegetariano e abstémio, mas sabemos que não era exactamente assim. O que os autores do livro confirmam, referindo que por vezes ele gostava de comer salsichas e almôndegas ou mesmo de beber vinho e espumante. Terá sido Goebbels que fez circular a lenda de Hitler rigorosamente vegetariano e abstémio, procurando convertê-lo num puro asceta que não comia, não bebia, não fumava e não copulava. Não referem os autores mas acrescento eu que em matéria de vinho Hitler abria uma excepção para o vinho branco Riesling, produzido na zona da Alsácia-Lorena, território que tem pertencido alternadamente à França ou à Alemanha, havendo marcas comerciais dos dois países.

Também nos esclarecem os autores que os uniformes da Guarda Suíça não foram desenhados por Miguel Ângelo. Os actuais uniformes da guarda papal foram concebidos em 1914 por Jules Repond, advogado e professor suíço que foi seu comandante, e inspiraram-se em frescos de Rafael e em uniformes do Renascimento italiano.

Não querendo abusar da paciência dos leitores, uma última questão: quem foi o último czar da Rússia? Ao contrário da convicção geralmente instalada, o último czar não foi, legalmente, Nicolau II mas sim seu irmão Miguel (Nicolau, em plena revolução de 1917, afastara a ideia do seu filho menor Alexis lhe suceder) em quem Nicolau II abdicou e que assumiu o cargo como Miguel II, ainda que por poucas horas, pois foi igualmente obrigado a renunciar ao trono.

Estou convencido de que os leitores deste livro encontrarão matéria para aprofundar os seus conhecimentos e também para se divertir, já que o texto cultiva quer uma ironia subtil, quer algumas piadas mais ousadas mas sempre do agrado comum.